Por Anderson Couto
Sempre tive certo incomodo com a teoria da consciência atribuída com a qual os militantes marxistas trabalham para de certa forma explicar o fracasso e a estratégia de divulgação das teses comunistas. Nessa teoria os operários padecem de uma miopia acerca de sua condição enquanto explorados pela máquina capitalista. A relação do operário com a realidade é viciada pela própria condição do meio em que se encontra inserido, nas relações de produção e meios de produção. A teoria do fetiche, a teoria da alienação, a teoria da reificação tentam demonstrar que o mundo do capital encontra-se anuviado por certo conjunto de discursos através dos quais fica escondida toda espécie de exploração. Existe no plano das idéias, uma representação apenas ilusória daquilo o que realmente está disposto no real enquanto relação de classe. Cabe então aos militantes marxistas mostrarem e desmistificarem o encantamento do mundo através de um discurso e prática condizente com uma espécie de "realidade", de uma "representação" que capte o objeto em sua dialeticidade.
O papel do Partido fica justificado, dentre alguns teóricos, como uma espécie de objetivação de uma espécie de consciência de classe, cabendo divulgar e tornar acessível ao grosso da população a mensagem e propostas condizentes com a classe dita e descrita ser a operária. Mas quem descreve e determina quais são aqueles que no processo social estão explorados e são operários? Se os operários estão inseridos na máquina, sem oportunidade de alçar ao conhecimento dos mecanismos de sua exploração, como podem de repente tornarem-se conscientes de todos os percalços do sistema? O marxismo sempre contou com dificuldades em torno dessa problemática. Sempre foi perigoso esse tipo de raciocínio e foi ele que deu possível surgimento a uma espécie de burocracia de intelectuais e técnicos que tomaram para si "as dores" dos pobres explorados do sistema. A “intelegentista” russa surgiu embrionariamente na teoria da alienação e da ideologia. Nada mais condizente com a tradição ocidental de trabalhar o conhecimento e valorizar os indivíduos a partir do capital intelectual.
Aristóteles, na Grécia, chamava os escravos de instrumentos vocais. Ele dizia que os operários manuais são como um corpo que queima porque não sabem os motivos e as causas pelas quais fabricam ou produzem os produtos. Ele queria elevar aqueles que detêm os conhecimentos a um patamar superior àqueles que são colocados a trabalhar a partir da técnica sem saber o porquê, os trabalhadores manuais. Nesse sistema Aristotélico quem detinha o conhecimento deveria ter eminência já que tinha acesso ao conceito e as essências das coisas, porque captava a realidade dos objetos. Tirando a dialeticidade com a qual os marxistas descrevem a materialidade das coisas, a tese de Aristóteles não soa muito diferente da tese da desmistificação do discurso ideológico propalada aos quatro ventos pelos militantes das siglas de esquerda. Os marxistas defendem que seu discurso capta o objeto que descrevem. O conceito abarca a realidade material no seu processo de dialeticidade e relação com o próprio homem. Resta saber somente se do mesmo modo relatado por Aristóteles, os teóricos marxistas devem está no mesmo patamar dos trabalhadores manuais? A "realidade" e a história contam-nos algo muito diferente. Os marxistas mais ingênuos dirão que seus militantes estão imbuídos com o mais genuíno sentimento de alteridade. Penso o contrário. O marxismo per si é fruto da visão moderna de conhecimento instrumental não pode ser descrita dessa forma, preocupada com o outro, tendo em vista que simplesmente tem preocupação com o plano descrito racionalmente.
Platão, da mesma época de Aristóteles, falava de uma ilha de conhecimento somente acessível a uma espécie de casta que teve contato, antes da vida, ao mundo das idéias. Uma espécie de tese de rememoração. Somente poderia ter acesso ao conhecimento quem antes tivesse tido contato com esse mundo. Platão disse que esses iluminados sofreriam perseguições acaso se permitissem divulgar e ordenar o mundo de acordo com o plano mais fiel da essência encontrada através dos raciocínios técnicos. Segundo Platão, o mundo sensível deveria ser ordenado no plano pragmático de acordo com o plano. Além das coisas vistas serem representações de uma realidade transcendente, além delas, aquele que governa e age deve gerir os fatos com base em raciocínios e discursos verídicos, somente acessíveis aos conhecedores da verdade. Na República, livro de Platão sobre a Política, o governo mais perfeito é aquele que se conduz pelo conhecimento e pelos mais sábios. O resto da população deve seguir, por conseguinte, segundo esse sistema teórico, o conhecimento do chefe já que ele tem acesso ao mundo da verdade. Ou seja, aquele que tem a porta de entrada do conhecimento, deve mostrá-lo ao resto da população, com obrigação de ditar aos seus concidadãos tudo àquilo que descreve como normal. Por que para Platão a maioria da população é descrita como assombrada com as aparências de verdade e é subjugada por farsantes. No caso de Platão, os farsantes são chamados de sofistas.
No caso dos marxistas os farsantes são chamados de burgueses. Eles devem ser desmascarados como Platão fez com os sofistas na Grécia. O discurso dos burgueses é tachado de ideológico e deve ser substituído pelo discurso de referência do materialismo histórico. Quem garante que o marxismo traga (trouxe) a verdade e não uma aparência de verdade (realidade)? Há correspondência entre discurso e objeto? Algo problemático. Forma-se então um círculo vicioso. O que sempre fica é essa vontade de planejar os despossuídos do conhecimento, os sem-terras da verdade, sempre manipulados pelos melhores curadores de seus anseios, os quais são descritos e manejados por um conjunto de pessoas além deles próprios, uma casta de iluminados.
A filosofia sempre trata (ou) a massa de forma pejorativa. A luz da verdade deve abrir os olhos dos iletrados. Não era a meta do próprio iluminismo, o conhecimento ao acesso de todos os membros da sociedade e a ciência como benfazeja do mundo? O marxismo, inserido no projeto moderno, não fugiu a regra. Falam em dialeticidade e anseiam por planejar o futuro das pessoas, de doar um caminho de felicidade. O marxismo nada mais é que o amor pelo plano que se apresenta de forma sempre matizado no ocidente. É o governo e amor pelo saber, é a vontade de verdade sempre renovada. O marxismo surgiu de uma briga interna das elites - tese ousada - que sempre se renovam e entram em atritos entre si. O governo dos sábios não precisa, para se firmar, sempre dos mesmos assuntos. Ele basta–se do papel emprestado ao sábio e da conjuntura histórica de surgimento das teorias através das quais se concretiza enquanto espaço de elites políticas. O certo é que a figura do sábio (conhecimento) sempre foi uma elite política benquista no mundo ocidental e sempre acorreu para justificar seu comando apesar de assumir diversas formas.
O marxismo na Europa apareceu como trampolim para subida ao poder de certo grupo. O manejo no discurso da verdade para ingresso nas carreiras políticas por jovens que não tinham acesso pelas vias normais significou o aparecimento da corrente materialista histórica. Através do discurso da piedade o marxismo se fez a via de entrada ao poder, com a manipulação sempre ordeira daqueles que sempre foram descritos como imersos na escuridão, o grosso da população. Por isso, a tese da consciência atribuída. Ela significava a adoção dos interesses dos operários por um conjunto de burgueses traidores. Mas por que alguns burgueses traíram (riam) sua classe? Piedade ou Solidariedade? Interesse ou hipocrisia? O discurso marxista significou o manejo e substituição dos sábios (conhecimentos) de outrora com ganho correlato a partir dessa prática dos benefícios de ganhar para si a pecha de verdade. O discurso verídico tem seus encantos. Gera dividendos políticos. E o marxismo sabia que os famintos eram o força política da vez. Tinha a força do número e do fanatismo. A necessidade vital quando chega não responde por qualquer grau de alter ego. Os militantes assim se fizeram ver, substituíram o discurso em prol da burguesia pelo discurso em face dos operários. A mesma "verdade", embora com interesses diferentes, mas efeitos iguais. A verdade que planeja, que comanda e traz conseqüências e dividendos políticos àqueles que a operam. O marxismo foi um cristianismo com novas roupagens.
O marxismo surgiu de uma elite sequiosa pelo comando e empunhando o discurso verídico dos famintos. Nada mais épico. A história transformada em arma de luta política e abertura de espaços onde parecia está saturado oportunidades para novos nomes. Posso ser acossado. Nunca vi um teórico do marxismo na frente das turbas desorganizadas. E o marxismo nunca foi o motor de revoltas. O móvel das movimentações políticas sempre foi o desespero trazido pelo não atendimento das necessidades mais básicas do ser humano. O marxismo somente utilizou e na maioria das vezes pacificou as revoltas. O plano e seus sarcedotes sempre fizeram coro para os limites escritos no evangélio. Lembro-me agora dos porquinhos da Revolução dos Bichos de Orwell, a melhor descrição do funcionamento dos partidos marxistas, somente preocupados com os espaços abertos de poder e exploração de seus parceiros menos letrados.
Não é que essa prática virou a moda política do momento. Use a piedade e a hipocrisia durante a juventude. Seja marxista e entre na política. Com o passar tempo, perante suas ovelhas finja ser um sacerdote fiel. Depois, com maturidade política, cerre fileira com os tosadores e com os exploradores. Duas elites em colóquio. Depois coloque as massas no ostracismo e sempre "a migué". Esse é o quadro. O problema é que a verdade não é acessível a todos. O governo do conhecimento não compactua no ocidente com o governo democrático. Esse tipo de política não é típica somente dos partidos marxistas. Os quadros técnicos pululam em todos os partidos que fazem um loteamento da máquina pública como se ela fosse um feudo. Platão quando idealizou o governo não sabia que suas teses teriam vez no mundo e para sempre. O governo do conhecimento centraliza as decisões nos melhores e o governo democrático, nos piores e na quantidade. Quem deve mandar a qualidade ou o número? O interesse descrito pelas elites intelectuais ou o interesse descrito pelo povo? O povo sabe governar sem uma burocracia técnica? Quem determina o que o povo quer e merece: uma elite pensante. O marxismo é assim, é antidemocrático, como todo governo que se vale de uma burocracia e dos partidos que fazem lotes dos cargos públicos para os agregados. O povo, por exemplo, não tem poder sobre uma decisão do Banco Central que afeta todo país. Digamos, então, que vivemos numa aristocracia ou oligarquia, menos numa democracia.
Sugestão de leitura para debate:
"Ciência e Política: duas vocações - Max Weber", "Que fazer - Lenin", "Caminho do poder - Kautsky"
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