segunda-feira, 27 de junho de 2016

Mulheres Tortas

Texto dedicado à Rebeca Machado, Dany Anahi, Bárbara Lobo, Flávia Lins, Iasmin


Geralmente todo o grupo social que recebe privilégios na cultura em que está inserido, tende a pensar e argumentar as coisas de forma reta. Digo isso, pois o justificar os comportamentos de forma reta implica em aceitar e muitas vezes impor uma postura totalizante, carregada de verdades supostamente absolutas e nem um pouco dada às relativizações. Isso acontece por que o agir reto adora a ordem, a coesão, a harmonia, a ausência de conflitos.

O grupo socialmente favorecido que me refiro é o universo masculino. Em meio a uma sociedade patriarcalista, machista, a lógica de dominação desse grupo tende a ser a palavra de ordem. Contudo, o fato de todos, gostando ou não, se encontrarem em meio a essa lógica do macho, até mesmo o universo feminino dito oprimido, muitas vezes tende a reproduzir e até mesmo aceitar os valores machistas.

Em uma sociedade machista como a nossa, comportamentos são impostos às mulheres; estas devem ser domesticáveis, moralmente pudicas, submissas em suas opiniões, recatadas, etc. Porém, mesmo diante dessas reproduções do discurso dito opressor, existem mulheres que terminam por transgredir essa lógica. Essas mulheres que desmontam a ordenação submissa de gêneros eu chamo de mulheres tortas.

Como eu sempre venho trazendo em meus textos, a postura torta, se por um lado aceita algumas das exigências impostas pela sociedade, por outro, questiona essas exigências. Essas mulheres tortas agem dessa forma, ou seja, transitam entre a moral e a transgressão dessa moral. Eu noto que essas mulheres, ao mesmo tempo em que sabem lidar com os compromissos exigidos pela cultura, questionam essa cultura.

Entretanto, o machismo, assim como qualquer posicionamento que visa o controle, tende a não suportar as posturas dessas mulheres, afinal, elas vão de encontro a todas as expectativas almejadas por aqueles que necessitam garantir o poder. Essas mulheres questionam, posicionam-se de forma livre, independente, são autônomas em suas opiniões. Obviamente que isso desestabiliza a tentativa da opressão tão sonhada pelo macho.

Como os representantes desse lado opressor não conseguem obter o controle dessas mulheres que se entortam, que provocam turbulências em suas certezas, eles terminam por criar um infindável número de adjetivações para elas. Estas tendem a ser taxadas muitas vezes de características das mais penosas possíveis. Porém, como tortas, sabem transitar entre a expectativa social e a negação desses comportamentos impostos.

O macho que sonha com sua dominação, tende a buscar interesses muitas vezes maliciosos em relação a essas mulheres. Infelizmente a inversão de valores se mostra bastante notória. Mulheres escolhidas por eles são aquelas que atendem às exigências impostas por esse patriarcalismo covarde. Esses machos recorrem às fêmeas, ou seja, às mulheres que se calam, que demonstram submissão e dependência em relação a eles.

Eles não percebem que as mulheres tortas, justamente por serem independentes, e por isso mesmo receberem as mais diversas denominações pejorativas, são as mulheres mais dispostas a assumir posturas sinceras. Não quero dizer que as mulheres que se ajustam aos comportamentos da “boa fêmea” necessariamente estão aptas a qualquer tipo de postura que venha a comprometer as expectativas criadas culturalmente.

Quero dizer que essas mulheres tão desejadas e sonhadas por esses machos que se querem dominantes e repressores, por saberem lidar com as regras morais do bom comportamento exigidas socialmente, conseguem se ajustar melhor à dissimulação. já as mulheres tortas recebem adjetivações reprovativas justamente por desestabilizarem a normatividade imposta por essa cultura patriarcalista e machista por não se ajustarem à hipocrisia das convenções.

Se essas mulheres transgridem, e por isso mesmo são condenadas, é por que em geral elas agem espontaneamente. Por agirem espontaneamente, elas tendem a ser muito transparentes em suas escolhas. Fazem as coisas porque querem; não consegue se adequar as dissimulações. É por isso que acredito que essas mulheres possuem uma maior capacidade de sinceridade em suas demonstrações de afetos com seus parceiros, afinal, elas querem as coisas de acordo com o que elas desejam.

Ou seja, se elas desejam se encontrar em um relacionamento monogâmico, por exemplo, elas tendem a viver intensamente nesse relacionamento. Quando não querem, simplesmente não querem. Contudo, apesar da sinceridade de suas ações, por elas desestabilizarem o poder, elas sofrem com intenções escusas do macho, afinal, mesmo se este reconhecer a ética dessas mulheres, por pensar que o social condena suas ações, essas mulheres tendem a não ser escolhidas para uma relação mais séria.

Porém, como um cara que ao menos tenta exercitar a perspectiva torta, admiro essas mulheres. Sempre fui envolvido com o modo delas agirem; acho muito legal conhece-las e me envolver com elas, afinal, elas me ensinam justamente por serem autônomas em suas posturas. Essas mulheres são indivisíveis, elas são únicas. Mulheres tortas me enriquecem porque estão abertas ao diálogo e à construção desse diálogo.

Infelizmente as mulheres, apesar de terem obtido muitas conquistas pela lei, ainda sofrem com as imposições morais, mas são essas mulheres que se entortam que fazem com que a minha esperança se nutra constantemente. Obviamente que elas, por também serem produtos dessa cultura, não estão livres em manifestar vez ou outra discursos machistas, mas por se entortarem, sabem também requestionar esses valores machistas.

É uma pena que em se tratando de quantidades, eu não encontro um número sequer razoável delas, porém, antes de estarem extinção, prefiro entender que elas são parte de uma rede que aos poucos pode ir crescendo. Mulheres tortas sempre foram as bruxas, as levianas, lascivas ou qualquer adjetivação imunda de preconceitos morais, mas são elas que, apesar de sofrerem pelo que são, que terminam por promover novas mudanças na sociedade.

Como qualquer postura torta, essas mulheres sabem conviver com relação às expectativas sociais, tanto é que elas tendem a ter um senso de justiça, de compromisso em seus relacionamentos, mas justamente por serem tortas, elas desestabilizam as lógicas que se querem impor como “verdadeiras”. Por isso mesmo que apesar de se ajustarem, por também se entortarem, provocam conflitos devido à independência que carregam.

Respostas tortas

Devido a algumas críticas e questões constantemente trazidas acerca do que eu entendo sobre a perspectiva torta, resolvi elaborar algumas respostas às problematizações trazidas. Gostaria de todo o coração que este texto, apesar de trazer algumas argumentações minhas sobre a questão, fosse requestionado. Acredito que pontos de vista que se divirjam do meu são importantes para o meu exercício do entortar.

Se a ideia do que seja torto encontra argumentações para se justificar enquanto tal, como ele pode ser contra as classificações e as definições?

Ora, em nenhum instante a perspectiva torta se mostra contra as classificações. Se eu falo sobre o torto, eu estou sugerindo uma classificação e uma definição. O que acontece é que o se entortar nos leva a um constante questionar acerca das classificações, assim como das definições que fazemos dessas classificações. A questão é negar a aceitar as classificações impostas como definições precisas.

Vivemos em uma sociedade na qual, apesar de ser povoada de humanos, e, portanto, de subjetividades, tem provocado atitudes, vamos dizer, retas entre os indivíduos. Estes costumam taxar as coisas, encaixotá-las em classificações engessadas, quando na verdade deveriam entortá-las, ou seja, entender que as “verdades” são culturalmente e historicamente construídas, e, portanto, mudam, entortam-se o tempo inteiro.

Se o ser torto aceita então as classificações e as definições, como ele pode entortar?

Justamente pelo fato de aceitar as classificações e as definições, mas também reconhecer que estas estão continuamente sujeitas a novos requestionamentos. O ser torto, por exemplo, por si mesmo necessita se entortar, uma vez que a definição que faço dele está predisposta a ser requestionada. Não é por acaso que estou escrevendo este texto com o intuito de responder e inevitavelmente repensar o torto.

Pelo fato da perspectiva torta se encontrar situada em meio a uma sociedade, posso dizer que não tem como não reconhecer a importância das classificações e dos códigos. No entanto, reconheço a importância de me entortar no instante em que afirmo que, as classificações, por terem sido resultados das construções sociais muitas vezes ligadas aos interesses de classe e das relações de poder, precisam ser repensadas.

Se o ser torto trás constantemente a afirmação das classificações e ao mesmo tempo a impossibilidade precisa delas, significa dizer que o ser torto não assume posições?

De forma alguma. Quando eu, através dos meus textos e reflexões, digo o que para mim seria o torto, consequentemente eu estou assumindo uma posição. Assumir uma postura torta, apesar de sugerir a importância de enxergar as afirmações dentro das possibilidades ambíguas que as sustentam, em nenhum instante implica em dizer que não sejamos capazes, nem tenhamos o direito de nos posicionar sobre algo.

O entortar leva a uma necessidade de reconhecermos que, apesar da nossa capacidade de definir, e, portanto, de tomar uma posição, em nenhum momento nos torna aptos em abdicar também da nossa condição falha enquanto humanos. A realidade, apesar de justificada e defendida, não deixa de ser se encontrar em um devir, ou seja, em uma incessante mudança, e por isso mesmo, em uma relativização contínua acerca de si mesma.

Se o ser torto, por se entortar, relativiza, poderíamos pensar que haveria um imobilismo e uma postura alheia em suas perspectivas?

Não. Se, apesar de reconhecer que a verdade que construímos não deixa de ser fluida, o fato de se admitir que as posições existam, não me mantém alheio às coisas. O que pode provocar essa impressão é o fato de se reconhecer que as posições, apesar de existirem, são móveis, e, portanto, provisórias. O que existe é uma intenção de renovar as afirmações participando da realidade, não fugir dessa realidade.

Portanto, se eu admito a importância de se renovar as ideias, como posso dizer que a perspectiva torta nos leva ao imobilismo? O que existe, como já dito, é uma incessante construção de pontos de vista. Na verdade, o que acontece é que, o fato de afirmarmos e refutarmos essas afirmações o tempo inteiro, nos faz pensar que exista um imobilismo, contudo, o que temos é um inacabável e constante refazer.

A questão é que o relativizar provoca um constante e imprevisto mudar de cena. Ao relativizar, o torto chama atenção para o fato de que as suas afirmações, assim como as afirmações dos outros, por mais que tragam argumentos bastante contundentes, não significa dizer que estes são eternos e acabados. Aí é onde se encontra a importância de relativizar, e, portanto, de aceitar o inevitável fluxo das coisas.

O que acontece é que a perspectiva torta indica justamente a questão da incessante mobilidade das ditas verdades. Qualquer pessoa, por mais que tenha convicção a respeito do ponto de vista que defende, por se encontrar em meio a uma diversidade de pontos de vista, inevitavelmente tende a repensar essas afirmações. Mesmo que esteja segura de suas opiniões, faz-se de profunda importância revê-las, e, portanto, relativizá-las o tempo inteiro.

A ambiguidade constantemente trazida pelo torto não faria com que sua ideia assuma uma postura conservadora?

Não. O problema é que a nossa cultura, por se encontrar submetida a uma infeliz dicotomia, entende que o fato da perspectiva torta entender que inevitavelmente, por sermos produtos de uma sociedade, vivemos em meio às regras e as expectativas de comportamentos que fazemos devido à exigência dessas regras, a torna conservadora, porém, o fato de se admitir a organização e o funcionamento da sociedade, não significa ser conservador.

O que acontece é que a perspectiva torta, como o nome já sugere, leva-nos ao entortar. Se ela vive a se entortar, consequentemente vive a dialogar com os diversos lados da realidade, e um desses lados diz respeito à aceitação de que a cultura, apesar de ser construída e reformulada devido às transformações ocorridas nela, também é feita pela herança social a qual termina por gerar um infindável número de resistências em meio a essas mudanças.

Se não existe um conservadorismo em sentido puro para o torto, ele seria liberto?

Também não. Aí é onde se encontra o grande problema de uma cultura submetida às dicotomias. Ou se é uma coisa ou se é outra. Como já dito, se o torto diz respeito ao se entortar, ele transita e dialoga com os opostos, misturando-se a esses opostos. Volto a afirmar: se a cultura trás como característica a herança social, ou seja, a continuidade, e por consequência, a resistência de certas mudanças, ela também trás as próprias mudanças.

É por isso que pensar a perspectiva torta implica em reconhecer que, se por um lado trazemos a continuidade de valores construídos ao longo da cultura, também, por entortarmos, repensamos esses valores. O torto é liberto, mas admite que não se pode libertar plenamente por estar submetido também aos valores historicamente construídos pela sociedade na qual se encontra; reconhece a permanência e ao mesmo tempo a alteração das coisas.

Se o ser torto aceita e ao mesmo tempo nega as classificações; se o ser torto aceita a submissão às regras como também as condena, o que de fato seria o torto?

Uma mediação ou uma terceira via se assim quiserem pensar. O fato de mostrar a dinâmica torta a partir do fluxo entre o construir/reconstruir, faz com que as pessoas entendam essa dinâmica pela lógica binária ou dicotômica. No entanto, a lógica é muito mais abrangente. Na verdade ela se movimenta entre o construir/desconstruir/reconstruir, ou seja, no fazer/desfazer/refazer.

Se eu estou diante do entortar, isto é, entre a objetividade/subjetividade, entre a ordem/caos, é por que ao me encontrar diante delas, eu faço uma releitura colhendo seus prós e contras, construindo assim um terceiro caminho. Ao aceitar as potencialidades e negar as deficiências dos diversos lados, para me entortar eu faço uma mediação buscando construir uma nova síntese que por sua vez se desfaz e refaz em outra síntese e assim sucessivamente.

sábado, 25 de junho de 2016

O torto entre o ser e o estar

Vivemos em uma cultura na qual, devido ao seu excessivo racionalismo, tende, no intuito de objetivar as coisas, separá-las. Essa separação, antes de servir apenas como um esclarecimento conceitual, é colocada em prática de maneira a distinguir de forma precisa as coisas. Com isso eu quero dizer que as coisas são vistas quase sempre de forma opositiva fazendo com que essa oposição não dialogue com o outro lado da questão.

Esclarecendo: é bastante recorrente a gente tomar a realidade como habitada por antônimos. Essa antinomia nos leva a uma desastrosa leitura dicotômica da realidade, ou seja, ou uma coisa é uma coisa ou outra coisa é outra coisa. Tendemos a compreender, por exemplo, o torto como tudo aquilo que se diferencia do que entendemos como reto, isto é, o torto é tudo aquilo que diz respeito ao “anormal”, enquanto o reto a tudo que transita na “normalidade”.

Entretanto, acredito que nós, vítimas do excessivo cientificismo racionalista, devemos repensar essa forma de conceber a realidade das coisas. Eu penso que uma perspectiva hibrida nos permitirá analisar as coisas a partir de suas incessantes e inacabadas construções, e não como algo fechado e finalizado em si mesmo. Captando as coisas por esse viés, passaremos a entender a realidade enquanto fluxos, e não enquanto classificações engessadas.

Não estou querendo dizer que a realidade se apresenta a nós de forma não codificável, ou seja, de forma a não construir sentidos e classificações sobre as coisas. É evidente que, vivendo em meio a uma cultura, inevitavelmente estabelecemos sentidos e códigos que são compartilhados, afinal, seria impossível vivermos em sociedade se não houvesse um sentido instituído, aceito por nós e capaz de nos possibilitar a comunicação.

O que eu insisto e de forma bastante relutante e redundante, é que, não é por que aprendemos em nossa experiência diante da sociedade que a verdade é uma coisa e a mentira é outra, que a gente não possa entender que essas duas realidades, apesar de culturalmente compreendidas como diferentes, não estejam em trânsito entre elas o tempo inteiro. O que quero dizer é que as coisas devem ser compreendidas pela sua dinâmica e contradição.

Entendendo que as coisas estão incessantemente se hibridizando entre elas, nós conseguiremos pensar inclusive em pôr em prática um dos princípios mais importantes da democracia que é a convivência com o diverso. Entendendo que a realidade não se apresenta a nós com essa dicotomia, construiremos espaços para o diálogo, para a tolerância por reconhecermos a inevitável contradição das coisas. Reconhecendo essa contradição, saberemos relativizar as opiniões que são divergentes das nossas.

É a partir desse olhar que penso a questão do torto. Quando me refiro ao torto, não estou em nenhum momento criando opositivos para ele. Na verdade, ao pensar acerca do torto eu me permito entendê-lo como uma dinâmica e como uma contradição, afinal, eu não posso olhar o torto se eu não o concebo como um incansável entortar. Entretanto, esse entortar, antes de se definir de forma acabada, permite-se ao trânsito e ao diálogo com diversos lados.

Portanto, quando reflito acerca da questão do torto, inevitavelmente eu também abro espaço para o que entendemos como reto, afinal, como dito anteriormente, se o torto implica em entortar, esse entortar também dialoga com as diversas realidades vistas como codificáveis e instituídas. Com isso, o torto não só diz respeito ao ajustamento, isto é, com aquilo que poderíamos pensar como o que entendemos como reto, mas também com o desajuste.

O que quero fazer notar com isso é que o torto, como dito mais acima, é um fluxo, um trânsito, um interminável construir/desconstruir/reconstruir de si mesmo. É por compreendê-lo a partir dessa lógica de contradições que penso ser importante trazer neste texto alguns pontos que dizem respeito à ideia referente ao que entendo como condição e situação, assim como a compreensão que faço entre o ser e o estar.

Pois bem, quando falo em condição eu me refiro a algo que carrega em si uma ideia mais preponderante de imobilidade. A condição diz respeito a uma determinação, isto é, a um posicionamento mais engessado. Na condição eu me vejo mais submetido às classificações e conceitos mais permanentes. Pensar as coisas em sua condição implica em aceitar de certa forma uma definição mais precisa delas.

Por outro lado, quando eu penso na ideia referente à situação, eu compreendo uma maior propensão à dinâmica, ou seja, à mobilidade das coisas. A situação, antes de ser mais ajustada e dada à determinação, ela se permite adentrar nos escorregões, nos deslizes. Pensando a partir da situação, eu encontro maiores dificuldades em apropriar as coisas e encaixotá-las nas classificações. Com a situação o experimentar se beneficia e escapa mais das definições.

Com relação ao ser e o estar, acredito que o ser, assim como na questão referente à condição, termina por acolher com mais frequência à ideia da conceitualização mais precisa da realidade. Ser alguma coisa nos sugere a ideia de algo mais institucionalizado sociologicamente falando e algo mais voltado ao significado linguisticamente falando. Ou seja, o ser dá a ideia de identidade, do que é "normal", do que é codificável, ou seja, compreendido, de contornos delimitados.

Já quando eu falo em estar, eu penso que, assim como na situação, ele diz respeito a algo mais fugidio, ou seja, a uma realidade que se extrapola, transmuta, escapa dos nossos domínios que se querem mais precisos. O estar nos permite a ideia de provisoriedade, de momentaneidade. No estar nos deparamos com a inevitável contradição, no incessante afirmar/refutar/repensar. Estar se encontra mais no campo do que se quer instituir e não do que é instituído.

Com isso eu gostaria de chamar atenção para o fato de que o torto, antes de ser uma condição, ou seja, uma norma de caráter mais permanente e como dito anteriormente, mais acabado e instituído, ele se encontra muito mais voltado às fraudes, ou seja, às enganações resultantes das colisões nem sempre amistosas, enfim, menos voltado à noção de código, ou seja, daquilo que se é supostamente palpável por ser instituído.

Buscar desenhar a vida a partir da ideia do torto, é solucionar a realidade com mais problemas e encontrar os antídotos e a cura das “patologias” com mais doses intensas de veneno. O torto diz respeito ao estar, ou seja, ao provisório, visto que ele se entorta, e por isso mesmo ele se altera o tempo inteiro. O ser no torto existe também, afinal, por entortar, ele dialoga com ele, porém, o ser no entortar assume também um caráter de momentaneidade, fazendo prevalecer, portanto, a situação e o estar.

Com isso podem questionar: o torto se define? Eu respondo que sim, afinal, como dito, o torto, por entortar, também dialoga com a condição e com o ser, isto é, com o código, porém, essa definição está sempre predisposta a ser refeita e jamais acabada. O torto diz muito mais respeito às incessantes construções do que conjuntos harmonicamente classificados de forma taxonômica com hierarquizações precisas e circunscritamente engessadas.

Portanto, o ser torto não diz respeito ao que ele é em si mesmo enquanto condição acabada, mas sim, enquanto aquilo que vai sendo, ou seja, enquanto aquilo que o torna momentâneo, sobrevivente nos deslizes e no inacabado das situações e do estar. O torto afirma, pois dialoga com o código, e, portanto, com o ser e com a condição, mas refuta, e por isso mesmo, reelabora essa afirmação por simplesmente buscar ser em sua contraditória construção de si mesmo.

Entortando a ideia de grupos sociais

O problema que eu vejo na ideia que as pessoas fazem do que seja um grupo social, refere-se à insistência em confundir coletividade com padronização coletiva. Infelizmente, em nossa cultura, acredito que às vezes devido ao conformismo, e em boa parte devido à covardia, o fato de você pertencer a um grupo implica em ter que obrigatoriamente anular a sua subjetividade para ter que atender as expectativas desse grupo.

Acredito que pensar em grupos sociais, significa aceitar a inevitável relação de afinidades que os membros possuem com relação aos demais. Contudo, em nenhum instante significa dizer que essas afinidades tenham que se submeter a uma homogeneização, ou seja, a uma padronização imposta. O que eu percebo é que, para pertencer a um grupo, temos que manter com este uma relação de dívida e de prestação de contas.

Porém, o fato de admitirmos afinidades entre os membros, não nos dá o direito de amputarmos as particularidades deles. O fato de eu encontrar em certo espaço social expectativas com as quais eu me identifique, não faz com que eu tenha a todo o instante a motivação e a aceitação acerca do ponto de vista do outro membro que, assim como eu, faz parte de um determinado grupo social.

Não posso deixar de reconhecer que cada indivíduo comporta um universo infinito de possibilidades e de crenças e que estas se alteram a todo instante a partir das experiências que esse indivíduo passa a vivenciar com os outros, sejam esses outros pertencentes a um grupo do qual esse indivíduo faz parte ou não. Os indivíduos mudam suas próprias convicções o tempo inteiro, e o que eles acreditam hoje podem não acreditar amanhã.

O que a nossa cultura não percebe, é que em cada circunstância, o indivíduo possui intencionalidades diferentes. Mesmo com os membros inseridos em um dos grupos sociais dos quais ele faz parte, ele procura alguém de acordo com o seu estado de espírito existente em cada ocasião. Em outras palavras, ele vai procurar estabelecer um diálogo diferenciado com cada pessoa para conversar assuntos dos mais diversificados.

Por exemplo, eu posso encontrar em certa pessoa um estímulo em debater temas de teores mais partidários, como posso encontrar em outra um maior prazer em falar sobre religião, ou música, ou filosofia, ou questões mais corriqueiras. E mais: para algumas pessoas eu me sinto a vontade para expor assuntos de maiores intimidades, isto é, para expor acerca de meus afetos, segredos, já para outros eu busco dialogar questões mais “impessoais”.

E mesmo eu buscando em cada pessoa um propósito diferente, em nenhum instante significa dizer que eu vou ter que compartilhar a todo instante com essa pessoa dos mesmos ideais. Em outras palavras, eu posso gostar de me interagir com alguém para conversar questões acerca da política atual, mas em muitas das ocasiões eu vou ter com essa pessoa minhas divergências e posso encontrar pontos em comum com outras sobre o mesmo assunto.

O que eu quero salientar é que um grupo social, como dito mais acima, apesar de ser estruturado a partir de afinidades e pontos de vista em comum entre os diversos membros que o compõe, termina por passar por variações dentro dele, afinal, essas afinidades, apesar de se verem dispostas a se assimilarem com a opinião do outro, não estão livres de entrarem em dissidência e carência de consenso.

Portanto, antes de pensar o grupo social como algo submetido às diretrizes, é necessário pensa-lo como uma integração momentânea; falo momentânea, pois essa integração está constantemente se alterando, se refazendo, afinal, apesar das identificações sentidas pelos membros de um grupo, estes, por estarem se interagindo com outros, aprendem, ensinam e reelaboram suas opiniões a todo instante.

Se pensarmos que essas alterações acontecem dentro de um mesmo grupo, imagine que os membros desse grupo, por também conviverem com outros grupos, terminam sendo contaminados por novas ideias, e que essas ideias contaminam também outros grupos! Querer impor opiniões dentro de um grupo como se estas fossem homogêneas, é negar o mais óbvio da convivência social que é a troca com a diversidade.

É por isso que para mim, antes de um grupo ter como característica preponderante a linearidade, ele se entorta. As ideias que povoam dentro dele mudam de percurso a todo instante, e antes de serem acabadas e fechadas em si mesmas, são fluidas, e tem como traço bastante marcante o imprevisto, isto é, o incessante reelaborar de convicções dos seus membros. Enfim, é uma incansável construção.

Para mim, a coisa mais absurda que pode haver é o fato de um indivíduo sofrer repreensões dos membros que frequentam o mesmo grupo que ele só por que suas ideias contrariaram as ideias “do grupo”; uso aspas por que me questiono bastante acerca dessa afirmação, afinal, eu pergunto: a ideia do grupo? De qual grupo se este é formado por vários indivíduos? Quem define essa ideia, o grupo de quais indivíduos?

E mais: o fato de minha pessoa não se encontrar em determinado instante no grupo do qual ela faz parte significa que ela traiu o grupo? Por quê? O fato dela não compactuar do discurso do grupo significa que ela não possa mais se sentir pertencida a esse grupo? O fato de minha pessoa também transitar em outros ambientes significa que ela não quer mais conviver com determinado grupo social?

Eu acho que as pessoas têm que reconhecer de uma vez por todas que elas, antes de serem objetos encaixotados em departamentos isolados, são construtoras de novas visões de mundo, ou seja, elas estão constantemente se atualizando, pois elas se interagem com infinitos universos. Acredito que as pessoas precisam abdicar dessa busca amedrontada por um porto seguro e admitir que a vida é fluxo, é mudança.

Mais importante do que encontrar meios autoritários para se conquistar uma suposta harmonia e integração de um grupo social, as pessoas precisam entender que quanto mais elas entenderem e se permitirem experenciar novas realidades além das do seu grupo social, mais elas farão com que esse grupo se enriqueça e se torne de fato humanamente viável, além de saudável para o exercício do convívio com a diferença.

No final das contas, ninguém está preso e submetido a ninguém por mais que a nossa insegurança assim queira. O pertencimento encontrado em um grupo social não se revela pela imposição de diretrizes, mas sim, pela contribuição de novos valores que se inserem nele. Em nenhum instante eu posso entender que o pertencimento a um grupo deixa de existir por que eu agreguei mais valores a minha pessoa com outros grupos.