sábado, 25 de outubro de 2014

Por uma Rede de Auto-Gestões Micro-Associativas

Em contextos antecedentes, os interesses coletivos se sustentavam em opiniões mais gerais. Porém, com o surgimento dos meios de comunicação como os jornais impressos, o rádio, a televisão, e, posteriormente, a internet, o número de informação, assim como as trocas entre diversas culturas, fez com que aquelas opiniões antes gerais, se fragmentassem cada vez mais. Ou seja, hoje em dia o que vemos é uma diversidade de interesses a nossa volta.

É por isso que eu acho que antes de pensarmos na idéia macro de um centralismo político decidindo pelos diversos interesses que compõem uma sociedade, seria melhor pensarmos em uma alternativa capaz de atender a esses diversos interesses mais particulares e micros de cada grupo social, sem com isso perder o senso de coletividade mais ampla. Eu acredito que o caminho para isso seria o que eu chamo de Rede de Auto-Gestões Micro-Associativas.

Se tomarmos como exemplo um dos tantos grupos sociais como o grupo que luta pelo fim do racismo, por exemplo, observamos que dentro dele existem vários outros interesses, e, portanto, vários outros grupos. Esclarecendo: uma mulher negra e pobre sofre certos problemas que uma mulher rica e negra não sofre. Uma mulher negra, pobre e homossexual exige certas mudanças na sociedade que uma mulher negra e até mesmo pobre, porém, heterossexual, não exige.

Se quisermos colocar apenas a categoria mulher negra, pobre e homossexual para resolvermos o problema, ainda assim encontramos dificuldade. Se pensarmos que a mulher negra, pobre e homossexual vem de uma formação religiosa diferente de outra, iremos encontrar opiniões que se conflitam. Mesmo se as duas tivessem a mesma formação religiosa, elas, por serem indivíduos, se distanciariam de algum ponto nas opiniões de uma em relação à outra.

É devido a isso que eu acredito que a idéia de representatividade política já não funciona de forma satisfatória em nosso dia a dia permeado por tantos interesses divergentes. A idéia de representatividade diz respeito a uma organização onde um pequeno grupo é eleito para representar uma imensa coletividade. A pergunta que faço é a seguinte: esse pequeno grupo representa a quem? A coletividade? Mas qual, se essa coletividade possui uma infinidade de outros grupos?

Além de ser excludente, uma vez que a representatividade diz atender “a todos” e esse “todos” são vários, e, portanto, no final das contas vai ter que responder mais por um interesse de um grupo do que do outro, ela não faz dos indivíduos agentes autônomos. Digo isso pelo fato de que, como a representatividade implica em um grupo respondendo por todos, o resultado é que haja uma parcela maior da sociedade distante das decisões tomadas pelo pequeno grupo.

Ou seja, os diversos grupos, por ficarem à espera das decisões tomadas pela cúpula, não aprendem a agir, a exigir, a lutar e a buscar pela realização dos seus interesses. A representatividade é também elitista justamente por isso, uma vez que ela se distancia do “grupo” o qual ela diz representar. Se existissem formas micros de representação, acredito que não só os interesses seriam mais dialogados, como a relação entre os indivíduos seria mais participativa.

Antes eu preciso dizer que não sou contrário à escolha de representantes. Acredito ser necessária a escolha de pessoas eleitas por um grupo para lutar pelos seus direitos e interesses. Mas acho que para haver a efetiva participação dos indivíduos que pertencem a esse grupo, é necessário que ocorra um estímulo para a auto-gestão. Sem o respeito à individualidade não há possibilidade alguma de diálogo e de participação entre os indivíduos, o grupo e seus representantes.

Como seria então? Em vez de um pequeno grupo representando uma imensa coletividade composta de infinitos interesses, existiriam várias micro-associações em forma de rede representando cada um dos diversos grupos que compõem a sociedade. Portanto, cada uma dessas micro-associações representaria um grupo em específico. Uma micro-associação representando o grupo de mulheres negras, outra representando mulheres homossexuais, etc.

Como os grupos se ramificam em outros grupos, as mulheres homossexuais poderiam recorrer a um grupo feminista, por exemplo. Se os grupos se confrontassem em alguns pontos, uma mulher negra vinda de um grupo de mulheres homossexuais poderia criar um grupo de mulheres negras, homossexuais e feministas. Se esse grupo dialogasse com os das mulheres de baixa renda e entrasse em conflito, se criaria um grupo de mulheres negras, feministas, homossexuais, pobres e assim por diante.

Se uma mulher negra e rica discordasse desse grupo criado para atender seus interesses, ela criaria outro grupo de mulheres negras, ricas, feministas e homossexuais. Como os grupos iriam se afunilar cada vez mais, seria mais fácil elas dialogarem e se organizarem entre elas, exercitando a auto-gestão, como também participariam das decisões coletivas, visto que os representantes estariam mais próximos e familiarizados com elas nas micro-associações.

Poderia acontecer de uma mulher em um grupo compartilhar também com alguns ideais do grupo que defendesse os interesses dos homens homossexuais, dos músicos, dos deficientes, etc. Nesse caso, ela poderia recorrer a eles, dialogar, participar e voltar ao seu grupo ou sair de seu grupo e criar outro grupo representando as mulheres. É por isso que para mim esses grupos deveriam se movimentar em formas de rede.

Enfim, os grupos poderiam se conectar uns com outros, assim como se desconectar; poderiam se desfazer e se refazer. Surgiriam constelações infinitas em constantes diálogos. Portanto, haveria auto-gestão com cada um livre para decidir em seus grupos; existiria o exercício da participação política por escolherem seus representantes para cada micro-associação, como haveria a prática do diálogo por se mobilizarem em formas de rede em constante processo de trocas.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O partido torto

O olhar torto, confrontando algumas questões impostas como oficiais e vigentes, declara de forma bastante nítida sua posição política diante do mundo. Essa posição se reflete como desagrado acerca das convenções que nos submetem; sua posição reprova qualquer atitude que nos assujeita a uma existência imposta. Comportar-se de forma torta não implica em qualquer tentativa institucional que queira uniformizar as ações humanas.

Acredito no partido torto sem o p maiúsculo. Acredito que o torto é um partido corroído de transações, interações, associações rasteiras que se desenvolvem dentro de uma esfera micro, sejam essas relações inseridas nos espaços públicos, sejam elas inseridas no espaço privado. O p maiúsculo é, humanamente falando, minúsculo demais. O partido maiúsculo impera, dita ordens, centraliza poder, admira as decisões tomadas pela cúpula.

O partido torto é partido, mas não por funcionar igual aos aspectos burocráticos e falidos da máquina administrativa institucional, e sim, por funcionar pulsando feito um coração alimentado pela paixão e descrente com a certeza plena do amor. O partido torto é a inscrição discursiva borrada e apagada de textualidades que se amontoam de sentidos, mas que se ferem pela falta de garantia acerca de qualquer certeza definitiva.

O partido torto é partido por ser uma mera tentativa de disparar discursos, sabendo que estes não passam de textualidades cheias de fraturas que se velam por detrás das certezas. Se há um partido para o torto, esse partido me parece ser a falta que nos motiva a sonhar e que ao mesmo tempo nos derruba em uma cama amontoada de lençóis bagunçados refletindo as nossas próprias corrupções alimentadas pela dor do não-saber.

O partido torto não é partido por se encontrar ilhado e se achando um todo dono de todas as certezas para o mundo. O partido torto é justamente partido por entender que vive em um todo, mas em um todo cheio de partes que se ramificam, se aliam, se alternam, se conflitam, e por isso mesmo, sabe que não é um todo formado por um todo acabado, e sim, por vários todos se tod (ando) a todo instante.

É devido a isso mesmo que para mim, o torto é corrupto por saber que é ético, ou seja, estar no partido torto é nunca se encontrar dentro dele constantemente, mas sim, transgredindo as fronteiras que explodem os limites da territorialização do que se acredita como Partido. É reconhecer que vive em prol de uma ética por a todo instante se deparar com a inevitável auto-corrupção que acompanha qualquer humano dotado de carne, de sonhos e de osso.

Por ser político, visto que implica em debates, reflexões, conflitos, emancipações, perdas, conquistas, faltas, mudanças de ótica, de lados, de laços, de alianças, o ser torto é algo que se constrói somente quando se encontra em meio a um imenso e infinito bombardeio capaz de destruir qualquer coisa que se ergueu. O ser torto implora por não ser-sendo, pois ser por ser é anti-humano, é anti-vida.

O ser torto não sendo-sendo, aceitará a imensa deturpação que o humano faz de si justamente por não estar apto em acreditar na capacidade humana de se apropriar de um todo perfeito. O ser torto, por outro lado, não se furta da idéia de acreditar no humano como um ator concreto e capaz de se reconhecer ativamente enquanto um sujeito construtor da história e responsável pelas possíveis e grandiosas conquistas sociais.

No entanto, por ser sem ser, o olhar torto sabe que o humano se constrói sem conhecer o projeto arquitetônico de si. Por ser sem ser, o olhar torto não deixa de enxergar que, apesar do humano vislumbrar claramente os horizontes que o acolhem em sua volta, não é capaz também de detectar a mais mísera condição que se encontra descaradamente revelada em seus olhos enriquecedores e medíocres.

Quer pertencer ao partido torto? Não pertença. A entrada está sem porta e sem chave. É só entrar. E por favor, ao entrar, bagunce o máximo possível todas as estruturas e compartimentos que foram construídos por quem estava dentro dele a sonhar com a ordem e a segurança, pois estar seguro e ordenado é apenas uma mísera necessidade infantil de negarmos o verdadeiro fluxo da existência que é o não ter fim.

Participe do partido torto sabendo que a frondosa floresta cercada pelo imenso rio que se encontram a sua volta, são seus também, e que o que é seu também por certo não será completamente, pois as florestas, os rios e o torto é uma questão de achar ser alguma coisa, mas jamais o que é. Venha ao partido torto para não querê-lo e para se degustar dele não por inteiro, mas apenas a partir das partes e nada a mais.

Faça o bem, faça o mal, seja justo, seja injusto, faça calúnias, respeite ao próximo, alimente sua alma, se perca na imensa dor de ter alma, afinal, todas essas coisas são coisas construídas para serem coisas. Mais que isso, é mais nada! Devore o partido torto e o traia a todo instante, pois ele precisa da aventura humana, ele necessita da crise que repercute dentro dos corações que se querem humanos (pois apenas querem).

Cuspa com muita vontade no partido torto, pois terá todo o apreço dele. Se não cuspir, o partido torto rirá de sua hipócrita e medíocre necessidade de querer se externar enquanto Super-Herói. Quer proteger o partido torto? Crie projetos, pois estes alimentam a fome e os sonhos que sustentam a humanidade, mas manipule as supostas verdades e seja cruel por buscar exercitar a virtude do que é também ser desonesto.

Que se faça a justiça por se saber que está apto em fazer o mal, sabendo que basta apenas ter circunstâncias favoráveis para isso! Que se reconheça a possibilidade de ferir, de ser patético, de ser inútil, por saber que pode e poderá sempre que houver situações pertinentes para tal, saborear a delicia e a delicadeza da sensação de se fazer o bem. Que se faça o angu, a gororoba, a indigestão, a dieta, a guerra e a paz.

Ao votar no torto, não espere aglomerados de pessoas acompanhando as contagens de votos e torcendo para a sua vitória. Votando no torto, irá se deparar com crises como sempre se deparou. Na contagem dos votos, todos estarão simplesmente vivendo, comendo pipoca, chorando e sonhando com um mundo melhor sem sequer lembrar que existe um idiota escrevendo sobre o que é partido torto e sobre o que é ser torto...

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A arte, a carne e o vento

O humano é a sua própria tormenta. Dentro de sua alma, cidades inteiras são devastadas pela fúria das tempestades do amor. Sim, o amor não entendido, o amor não codificado. O amor é a principal ameaça que acolhe o humano. Ao mesmo tempo em que o dissolve, o liberta para uma paz penosa. A garantia do acolhimento é fogo que se alastra por todas as direções abafando-o pela fumaça estonteante da cegueira do que lhe falta.

A falta... grande enigma revelado ocultamente em nosso dia a dia. A falta é a grande anunciadora dos desvelamentos reticentes que machucam todos os corpos cobertos de espíritos. A espiritualidade, assim como a tamanha certeza do que se encontra diante dos olhos humanos, não passa de uma aventura rarefeita, amaldiçoada e tão admirada feita de carência permeada de incógnitas que perduram na alma do ser.

Uma chuva intensa que alaga os poros do conforto da vida inunda todas as possibilidades dos humanos enxergarem a paisagem a sua volta pela falta de claridade da luz que acham sempre que os norteia. Nas mãos- sensações, apenas folhas de papel molhadas que se dissolvem pela força colossal das águas que os cobrem com esses oceanos irritadiços e incontroláveis daquilo tudo que chamam de razão.

De tudo aquilo que se dissolve em suas mãos-sensações, nada mais lhes resta a não ser a convicção de que não têm ao seu dispor todas as explicações contidas acerca das suas lágrimas e dos seus surtos de felicidades provisórios que constavam naqueles papeis. Abrem seus dedos e apenas ficam a observar as folhas dissolvidas escorrerem pelo ralo do lado de fora de dentro das suas almas.

Só resta aos temerosos e covardes humanos a indignação de poder construir sentidos à sua volta em meio a uma existência claramente fragilizada e humilhada por serem cegos demais para encontrar todos esses sentidos que a falta tece e constrói. A finitude abre suas portas, convida-os para entrar e os trancam em um quarto escuro cheio de tempo, de espera, de expectativa, de eternidade de ânsias.

A arte! Sim, a arte pode ser o último refúgio capaz de acalentar uma turbulência de espírito sem porto como o coração do ser. É nada disso. A arte cinicamente termina por revelar tudo aquilo que estava escondido no fundo do navio e tudo aquilo que parecia seguro pela âncora que adormecia calmamente diante da inquietude do mar. A arte se faz presente, disponibiliza todos os seus sorrisos e devolve a morte que os acompanha.

Do prazer reaparecem os seus gritos traiçoeiros que os enganam o tempo inteiro. As janelas se abrem e os ventos de fora terminam também por entrar no imenso corredor de almas incessantes de sonhos, de desejos e de delírios. A arte concede ao humano todo o amor possível desse mundo, mas entrega uma carta-despedida descrente acerca de qualquer possibilidade de se viver intensamente esse mesmo amor.

A arte dá aos humanos a coragem de enfrentar os imensos rochedos do mar que os consome, mas os faz manter suas intensas covardias de aceitar as cicatrizes e ferimentos provocados pela mesma força das rochas corroídas pelas águas desse mar. A arte é a mãe prazerosa protetora do santificado acolhimento dos nossos medos, mas que abre a porta e nos deixa sós, permitindo que o mundo nos ensine a nos perder a todo instante.