quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Fascismo Deleuziano??

Me ajustar aos grupos sociais sempre foi a minha dificuldade. Mesmo na adolescência, fase na qual a gente tem a necessidade muito maior de pertencimento às tribos, eu não me via apto em viver sob as determinações coletivas dos grupos.

Chegando a vida adulta, o que eu passei a perceber é que o problema dos grupos sociais era a forma pela qual os indivíduos que se encontravam inseridos neles passavam a concebê-lo. Quando tentei vivenciar a experiência em pertencer a algum grupo, logo notei que o “coletivo” tentava me convencer a me submeter aos seus códigos instituídos.

Na verdade, a sensação que sempre tive era a de obrigatoriedade de submissão aos valores que se tornavam sacralizados por essas tribos. O que eu notei e noto, é que viver dentro de um grupo significa sacralizar verdades, significa adorar um ídolo. Para você ser amado e acolhido pelo rebanho, você enquanto singularidade precisa se anular em prol das concepções impostas como legitimas por esse “coletivo” para se “identificar” com ele.

Sinceramente eu não consigo acreditar em verdades partilhadas consensualmente em lugar algum. Falo isso, pois o que cada vez eu percebo é que, apesar de haver uma possível aproximação de um suposto denominador comum que conecta os integrantes de um grupo, esse coletivo é marcado pelas diferenças.

Diferenças e não sujeição às regras externas impostas como modelos representacionais. Sim, foi compreendendo assim minha relação com o mundo que “de cara” passei a simpatizar com a perspectiva do filósofo Gilles Deleuze.

Aviso de antemão aos leitores que eu não vou me aprofundar nas ideias de Deleuze. Apesar de muito simpático às suas teorias, eu sou mentalmente hiperativo e curioso para me prender a Deleuze. Sempre gostei de brincar de ciranda. Assim como puxo a mão de Deleuze para entrar na roda, também puxo Comte, Paulo Coelho, Turma da Mônica, Karl Marx e a Bíblia Sagrada.

Posso dizer que foi por isso que eu também passei a me encantar com o pensamento de Deleuze. Sempre vi nele uma abertura para a pluralidade. De fato quando o leio, sempre sinto a polifonia rondar em tudo a minha volta. Realmente sempre me esbaldei na perspectiva recheada de vários ditos camaleônicos de Deleuze.

Todavia, eu as vezes penso que devido às diferenças e singularidades de cada leitor, a minha compreensão de Deleuze se esbarra nesse posicionamento fechado que sempre encontrei nos grupos sociais. O que eu percebo é que os indivíduos que se afirmam simpáticos à Deleuze muitas vezes assumem um lugar de “levantamento de bandeiras” que para mim vai de encontro ao que ele tentou elucidar em seus escritos.

Esse “levantamento de bandeiras” me faz achar que existe uma tendência ao que chamamos de fascismo. Apesar de indicarmos o termo fascismo às pessoas ditas de extrema direita, eu penso que agir de forma fascista está muito mais ligada a forma como nos comportamos. Agir de forma fascista significa venerarmos líderes, além de adorarmos uniformizações e centralismos.

Pois bem: líderes, uniformização e centralismo é tudo o que eu vejo acontecer muitas vezes entre os indivíduos ou grupos que se dizem simpáticos à Deleuze. O que eu noto é uma adoração à Deleuze como se ele fosse um ídolo. O fato de se afirmar como “deleuziano” para mim já é uma fetichização sobre o cara.

Quando eu me deparo com os grupos ou com os indivíduos negando certos temas ou perspectivas de conhecimento só por que Deleuze apontou críticas sobre elas, eu noto um centralismo ideológico acerca de suas ideias. Quando eu vejo que se estabelecem “verdades” ou afirmações que tendem a hierarquizar, mostrando que o que é inferior é tudo aquilo que Deleuze criticou e o que é superior é tudo aquilo que Deleuze aceitou ou produziu, eu enxergo nisso uma uniformização.

Como eu disse, apesar de entender Deleuze como alguém que sempre prezou pela importância da singularidade e da diferença, desculpe-me, mas acho estabelecermos leis para o que um deleuziano pode ler ou não, ou o que se é aceito ou não, creio que estamos fuzilando o objetivo central de toda a obra de Deleuze que é a aceitação da diferença, a pluralidade experimental das interpretações e a crítica a todo tipo de modelo externo que nos é imposto e que nos obriga a ter que reproduzir fórmulas prontas.

Simpatizar Deleuze é ter afinidades com ele, o que não significa negar o que ele criticou em suas obras. Simpatizar Deleuze é se permitir a curtir uma bela de uma suruba de infinitas possibilidades interpretativas. Aceitar apenas Deleuze é colocá-lo em uma Representação, ou seja, naquilo que ele mais chamou atenção como equívoco de uma cultura racionalista, metafísica e teleológica. Aceitar Deleuze é insistir na ciranda. Faz-se de profunda importância beijarmos o paraíso, o inferno, o caos, Herodes e Jesus Cristo...

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Mulheres Tortas

Texto dedicado à Rebeca Machado, Dany Anahi, Bárbara Lobo, Flávia Lins, Iasmin


Geralmente todo o grupo social que recebe privilégios na cultura em que está inserido, tende a pensar e argumentar as coisas de forma reta. Digo isso, pois o justificar os comportamentos de forma reta implica em aceitar e muitas vezes impor uma postura totalizante, carregada de verdades supostamente absolutas e nem um pouco dada às relativizações. Isso acontece por que o agir reto adora a ordem, a coesão, a harmonia, a ausência de conflitos.

O grupo socialmente favorecido que me refiro é o universo masculino. Em meio a uma sociedade patriarcalista, machista, a lógica de dominação desse grupo tende a ser a palavra de ordem. Contudo, o fato de todos, gostando ou não, se encontrarem em meio a essa lógica do macho, até mesmo o universo feminino dito oprimido, muitas vezes tende a reproduzir e até mesmo aceitar os valores machistas.

Em uma sociedade machista como a nossa, comportamentos são impostos às mulheres; estas devem ser domesticáveis, moralmente pudicas, submissas em suas opiniões, recatadas, etc. Porém, mesmo diante dessas reproduções do discurso dito opressor, existem mulheres que terminam por transgredir essa lógica. Essas mulheres que desmontam a ordenação submissa de gêneros eu chamo de mulheres tortas.

Como eu sempre venho trazendo em meus textos, a postura torta, se por um lado aceita algumas das exigências impostas pela sociedade, por outro, questiona essas exigências. Essas mulheres tortas agem dessa forma, ou seja, transitam entre a moral e a transgressão dessa moral. Eu noto que essas mulheres, ao mesmo tempo em que sabem lidar com os compromissos exigidos pela cultura, questionam essa cultura.

Entretanto, o machismo, assim como qualquer posicionamento que visa o controle, tende a não suportar as posturas dessas mulheres, afinal, elas vão de encontro a todas as expectativas almejadas por aqueles que necessitam garantir o poder. Essas mulheres questionam, posicionam-se de forma livre, independente, são autônomas em suas opiniões. Obviamente que isso desestabiliza a tentativa da opressão tão sonhada pelo macho.

Como os representantes desse lado opressor não conseguem obter o controle dessas mulheres que se entortam, que provocam turbulências em suas certezas, eles terminam por criar um infindável número de adjetivações para elas. Estas tendem a ser taxadas muitas vezes de características das mais penosas possíveis. Porém, como tortas, sabem transitar entre a expectativa social e a negação desses comportamentos impostos.

O macho que sonha com sua dominação, tende a buscar interesses muitas vezes maliciosos em relação a essas mulheres. Infelizmente a inversão de valores se mostra bastante notória. Mulheres escolhidas por eles são aquelas que atendem às exigências impostas por esse patriarcalismo covarde. Esses machos recorrem às fêmeas, ou seja, às mulheres que se calam, que demonstram submissão e dependência em relação a eles.

Eles não percebem que as mulheres tortas, justamente por serem independentes, e por isso mesmo receberem as mais diversas denominações pejorativas, são as mulheres mais dispostas a assumir posturas sinceras. Não quero dizer que as mulheres que se ajustam aos comportamentos da “boa fêmea” necessariamente estão aptas a qualquer tipo de postura que venha a comprometer as expectativas criadas culturalmente.

Quero dizer que essas mulheres tão desejadas e sonhadas por esses machos que se querem dominantes e repressores, por saberem lidar com as regras morais do bom comportamento exigidas socialmente, conseguem se ajustar melhor à dissimulação. já as mulheres tortas recebem adjetivações reprovativas justamente por desestabilizarem a normatividade imposta por essa cultura patriarcalista e machista por não se ajustarem à hipocrisia das convenções.

Se essas mulheres transgridem, e por isso mesmo são condenadas, é por que em geral elas agem espontaneamente. Por agirem espontaneamente, elas tendem a ser muito transparentes em suas escolhas. Fazem as coisas porque querem; não consegue se adequar as dissimulações. É por isso que acredito que essas mulheres possuem uma maior capacidade de sinceridade em suas demonstrações de afetos com seus parceiros, afinal, elas querem as coisas de acordo com o que elas desejam.

Ou seja, se elas desejam se encontrar em um relacionamento monogâmico, por exemplo, elas tendem a viver intensamente nesse relacionamento. Quando não querem, simplesmente não querem. Contudo, apesar da sinceridade de suas ações, por elas desestabilizarem o poder, elas sofrem com intenções escusas do macho, afinal, mesmo se este reconhecer a ética dessas mulheres, por pensar que o social condena suas ações, essas mulheres tendem a não ser escolhidas para uma relação mais séria.

Porém, como um cara que ao menos tenta exercitar a perspectiva torta, admiro essas mulheres. Sempre fui envolvido com o modo delas agirem; acho muito legal conhece-las e me envolver com elas, afinal, elas me ensinam justamente por serem autônomas em suas posturas. Essas mulheres são indivisíveis, elas são únicas. Mulheres tortas me enriquecem porque estão abertas ao diálogo e à construção desse diálogo.

Infelizmente as mulheres, apesar de terem obtido muitas conquistas pela lei, ainda sofrem com as imposições morais, mas são essas mulheres que se entortam que fazem com que a minha esperança se nutra constantemente. Obviamente que elas, por também serem produtos dessa cultura, não estão livres em manifestar vez ou outra discursos machistas, mas por se entortarem, sabem também requestionar esses valores machistas.

É uma pena que em se tratando de quantidades, eu não encontro um número sequer razoável delas, porém, antes de estarem extinção, prefiro entender que elas são parte de uma rede que aos poucos pode ir crescendo. Mulheres tortas sempre foram as bruxas, as levianas, lascivas ou qualquer adjetivação imunda de preconceitos morais, mas são elas que, apesar de sofrerem pelo que são, que terminam por promover novas mudanças na sociedade.

Como qualquer postura torta, essas mulheres sabem conviver com relação às expectativas sociais, tanto é que elas tendem a ter um senso de justiça, de compromisso em seus relacionamentos, mas justamente por serem tortas, elas desestabilizam as lógicas que se querem impor como “verdadeiras”. Por isso mesmo que apesar de se ajustarem, por também se entortarem, provocam conflitos devido à independência que carregam.

Respostas tortas

Devido a algumas críticas e questões constantemente trazidas acerca do que eu entendo sobre a perspectiva torta, resolvi elaborar algumas respostas às problematizações trazidas. Gostaria de todo o coração que este texto, apesar de trazer algumas argumentações minhas sobre a questão, fosse requestionado. Acredito que pontos de vista que se divirjam do meu são importantes para o meu exercício do entortar.

Se a ideia do que seja torto encontra argumentações para se justificar enquanto tal, como ele pode ser contra as classificações e as definições?

Ora, em nenhum instante a perspectiva torta se mostra contra as classificações. Se eu falo sobre o torto, eu estou sugerindo uma classificação e uma definição. O que acontece é que o se entortar nos leva a um constante questionar acerca das classificações, assim como das definições que fazemos dessas classificações. A questão é negar a aceitar as classificações impostas como definições precisas.

Vivemos em uma sociedade na qual, apesar de ser povoada de humanos, e, portanto, de subjetividades, tem provocado atitudes, vamos dizer, retas entre os indivíduos. Estes costumam taxar as coisas, encaixotá-las em classificações engessadas, quando na verdade deveriam entortá-las, ou seja, entender que as “verdades” são culturalmente e historicamente construídas, e, portanto, mudam, entortam-se o tempo inteiro.

Se o ser torto aceita então as classificações e as definições, como ele pode entortar?

Justamente pelo fato de aceitar as classificações e as definições, mas também reconhecer que estas estão continuamente sujeitas a novos requestionamentos. O ser torto, por exemplo, por si mesmo necessita se entortar, uma vez que a definição que faço dele está predisposta a ser requestionada. Não é por acaso que estou escrevendo este texto com o intuito de responder e inevitavelmente repensar o torto.

Pelo fato da perspectiva torta se encontrar situada em meio a uma sociedade, posso dizer que não tem como não reconhecer a importância das classificações e dos códigos. No entanto, reconheço a importância de me entortar no instante em que afirmo que, as classificações, por terem sido resultados das construções sociais muitas vezes ligadas aos interesses de classe e das relações de poder, precisam ser repensadas.

Se o ser torto trás constantemente a afirmação das classificações e ao mesmo tempo a impossibilidade precisa delas, significa dizer que o ser torto não assume posições?

De forma alguma. Quando eu, através dos meus textos e reflexões, digo o que para mim seria o torto, consequentemente eu estou assumindo uma posição. Assumir uma postura torta, apesar de sugerir a importância de enxergar as afirmações dentro das possibilidades ambíguas que as sustentam, em nenhum instante implica em dizer que não sejamos capazes, nem tenhamos o direito de nos posicionar sobre algo.

O entortar leva a uma necessidade de reconhecermos que, apesar da nossa capacidade de definir, e, portanto, de tomar uma posição, em nenhum momento nos torna aptos em abdicar também da nossa condição falha enquanto humanos. A realidade, apesar de justificada e defendida, não deixa de ser se encontrar em um devir, ou seja, em uma incessante mudança, e por isso mesmo, em uma relativização contínua acerca de si mesma.

Se o ser torto, por se entortar, relativiza, poderíamos pensar que haveria um imobilismo e uma postura alheia em suas perspectivas?

Não. Se, apesar de reconhecer que a verdade que construímos não deixa de ser fluida, o fato de se admitir que as posições existam, não me mantém alheio às coisas. O que pode provocar essa impressão é o fato de se reconhecer que as posições, apesar de existirem, são móveis, e, portanto, provisórias. O que existe é uma intenção de renovar as afirmações participando da realidade, não fugir dessa realidade.

Portanto, se eu admito a importância de se renovar as ideias, como posso dizer que a perspectiva torta nos leva ao imobilismo? O que existe, como já dito, é uma incessante construção de pontos de vista. Na verdade, o que acontece é que, o fato de afirmarmos e refutarmos essas afirmações o tempo inteiro, nos faz pensar que exista um imobilismo, contudo, o que temos é um inacabável e constante refazer.

A questão é que o relativizar provoca um constante e imprevisto mudar de cena. Ao relativizar, o torto chama atenção para o fato de que as suas afirmações, assim como as afirmações dos outros, por mais que tragam argumentos bastante contundentes, não significa dizer que estes são eternos e acabados. Aí é onde se encontra a importância de relativizar, e, portanto, de aceitar o inevitável fluxo das coisas.

O que acontece é que a perspectiva torta indica justamente a questão da incessante mobilidade das ditas verdades. Qualquer pessoa, por mais que tenha convicção a respeito do ponto de vista que defende, por se encontrar em meio a uma diversidade de pontos de vista, inevitavelmente tende a repensar essas afirmações. Mesmo que esteja segura de suas opiniões, faz-se de profunda importância revê-las, e, portanto, relativizá-las o tempo inteiro.

A ambiguidade constantemente trazida pelo torto não faria com que sua ideia assuma uma postura conservadora?

Não. O problema é que a nossa cultura, por se encontrar submetida a uma infeliz dicotomia, entende que o fato da perspectiva torta entender que inevitavelmente, por sermos produtos de uma sociedade, vivemos em meio às regras e as expectativas de comportamentos que fazemos devido à exigência dessas regras, a torna conservadora, porém, o fato de se admitir a organização e o funcionamento da sociedade, não significa ser conservador.

O que acontece é que a perspectiva torta, como o nome já sugere, leva-nos ao entortar. Se ela vive a se entortar, consequentemente vive a dialogar com os diversos lados da realidade, e um desses lados diz respeito à aceitação de que a cultura, apesar de ser construída e reformulada devido às transformações ocorridas nela, também é feita pela herança social a qual termina por gerar um infindável número de resistências em meio a essas mudanças.

Se não existe um conservadorismo em sentido puro para o torto, ele seria liberto?

Também não. Aí é onde se encontra o grande problema de uma cultura submetida às dicotomias. Ou se é uma coisa ou se é outra. Como já dito, se o torto diz respeito ao se entortar, ele transita e dialoga com os opostos, misturando-se a esses opostos. Volto a afirmar: se a cultura trás como característica a herança social, ou seja, a continuidade, e por consequência, a resistência de certas mudanças, ela também trás as próprias mudanças.

É por isso que pensar a perspectiva torta implica em reconhecer que, se por um lado trazemos a continuidade de valores construídos ao longo da cultura, também, por entortarmos, repensamos esses valores. O torto é liberto, mas admite que não se pode libertar plenamente por estar submetido também aos valores historicamente construídos pela sociedade na qual se encontra; reconhece a permanência e ao mesmo tempo a alteração das coisas.

Se o ser torto aceita e ao mesmo tempo nega as classificações; se o ser torto aceita a submissão às regras como também as condena, o que de fato seria o torto?

Uma mediação ou uma terceira via se assim quiserem pensar. O fato de mostrar a dinâmica torta a partir do fluxo entre o construir/reconstruir, faz com que as pessoas entendam essa dinâmica pela lógica binária ou dicotômica. No entanto, a lógica é muito mais abrangente. Na verdade ela se movimenta entre o construir/desconstruir/reconstruir, ou seja, no fazer/desfazer/refazer.

Se eu estou diante do entortar, isto é, entre a objetividade/subjetividade, entre a ordem/caos, é por que ao me encontrar diante delas, eu faço uma releitura colhendo seus prós e contras, construindo assim um terceiro caminho. Ao aceitar as potencialidades e negar as deficiências dos diversos lados, para me entortar eu faço uma mediação buscando construir uma nova síntese que por sua vez se desfaz e refaz em outra síntese e assim sucessivamente.

sábado, 25 de junho de 2016

O torto entre o ser e o estar

Vivemos em uma cultura na qual, devido ao seu excessivo racionalismo, tende, no intuito de objetivar as coisas, separá-las. Essa separação, antes de servir apenas como um esclarecimento conceitual, é colocada em prática de maneira a distinguir de forma precisa as coisas. Com isso eu quero dizer que as coisas são vistas quase sempre de forma opositiva fazendo com que essa oposição não dialogue com o outro lado da questão.

Esclarecendo: é bastante recorrente a gente tomar a realidade como habitada por antônimos. Essa antinomia nos leva a uma desastrosa leitura dicotômica da realidade, ou seja, ou uma coisa é uma coisa ou outra coisa é outra coisa. Tendemos a compreender, por exemplo, o torto como tudo aquilo que se diferencia do que entendemos como reto, isto é, o torto é tudo aquilo que diz respeito ao “anormal”, enquanto o reto a tudo que transita na “normalidade”.

Entretanto, acredito que nós, vítimas do excessivo cientificismo racionalista, devemos repensar essa forma de conceber a realidade das coisas. Eu penso que uma perspectiva hibrida nos permitirá analisar as coisas a partir de suas incessantes e inacabadas construções, e não como algo fechado e finalizado em si mesmo. Captando as coisas por esse viés, passaremos a entender a realidade enquanto fluxos, e não enquanto classificações engessadas.

Não estou querendo dizer que a realidade se apresenta a nós de forma não codificável, ou seja, de forma a não construir sentidos e classificações sobre as coisas. É evidente que, vivendo em meio a uma cultura, inevitavelmente estabelecemos sentidos e códigos que são compartilhados, afinal, seria impossível vivermos em sociedade se não houvesse um sentido instituído, aceito por nós e capaz de nos possibilitar a comunicação.

O que eu insisto e de forma bastante relutante e redundante, é que, não é por que aprendemos em nossa experiência diante da sociedade que a verdade é uma coisa e a mentira é outra, que a gente não possa entender que essas duas realidades, apesar de culturalmente compreendidas como diferentes, não estejam em trânsito entre elas o tempo inteiro. O que quero dizer é que as coisas devem ser compreendidas pela sua dinâmica e contradição.

Entendendo que as coisas estão incessantemente se hibridizando entre elas, nós conseguiremos pensar inclusive em pôr em prática um dos princípios mais importantes da democracia que é a convivência com o diverso. Entendendo que a realidade não se apresenta a nós com essa dicotomia, construiremos espaços para o diálogo, para a tolerância por reconhecermos a inevitável contradição das coisas. Reconhecendo essa contradição, saberemos relativizar as opiniões que são divergentes das nossas.

É a partir desse olhar que penso a questão do torto. Quando me refiro ao torto, não estou em nenhum momento criando opositivos para ele. Na verdade, ao pensar acerca do torto eu me permito entendê-lo como uma dinâmica e como uma contradição, afinal, eu não posso olhar o torto se eu não o concebo como um incansável entortar. Entretanto, esse entortar, antes de se definir de forma acabada, permite-se ao trânsito e ao diálogo com diversos lados.

Portanto, quando reflito acerca da questão do torto, inevitavelmente eu também abro espaço para o que entendemos como reto, afinal, como dito anteriormente, se o torto implica em entortar, esse entortar também dialoga com as diversas realidades vistas como codificáveis e instituídas. Com isso, o torto não só diz respeito ao ajustamento, isto é, com aquilo que poderíamos pensar como o que entendemos como reto, mas também com o desajuste.

O que quero fazer notar com isso é que o torto, como dito mais acima, é um fluxo, um trânsito, um interminável construir/desconstruir/reconstruir de si mesmo. É por compreendê-lo a partir dessa lógica de contradições que penso ser importante trazer neste texto alguns pontos que dizem respeito à ideia referente ao que entendo como condição e situação, assim como a compreensão que faço entre o ser e o estar.

Pois bem, quando falo em condição eu me refiro a algo que carrega em si uma ideia mais preponderante de imobilidade. A condição diz respeito a uma determinação, isto é, a um posicionamento mais engessado. Na condição eu me vejo mais submetido às classificações e conceitos mais permanentes. Pensar as coisas em sua condição implica em aceitar de certa forma uma definição mais precisa delas.

Por outro lado, quando eu penso na ideia referente à situação, eu compreendo uma maior propensão à dinâmica, ou seja, à mobilidade das coisas. A situação, antes de ser mais ajustada e dada à determinação, ela se permite adentrar nos escorregões, nos deslizes. Pensando a partir da situação, eu encontro maiores dificuldades em apropriar as coisas e encaixotá-las nas classificações. Com a situação o experimentar se beneficia e escapa mais das definições.

Com relação ao ser e o estar, acredito que o ser, assim como na questão referente à condição, termina por acolher com mais frequência à ideia da conceitualização mais precisa da realidade. Ser alguma coisa nos sugere a ideia de algo mais institucionalizado sociologicamente falando e algo mais voltado ao significado linguisticamente falando. Ou seja, o ser dá a ideia de identidade, do que é "normal", do que é codificável, ou seja, compreendido, de contornos delimitados.

Já quando eu falo em estar, eu penso que, assim como na situação, ele diz respeito a algo mais fugidio, ou seja, a uma realidade que se extrapola, transmuta, escapa dos nossos domínios que se querem mais precisos. O estar nos permite a ideia de provisoriedade, de momentaneidade. No estar nos deparamos com a inevitável contradição, no incessante afirmar/refutar/repensar. Estar se encontra mais no campo do que se quer instituir e não do que é instituído.

Com isso eu gostaria de chamar atenção para o fato de que o torto, antes de ser uma condição, ou seja, uma norma de caráter mais permanente e como dito anteriormente, mais acabado e instituído, ele se encontra muito mais voltado às fraudes, ou seja, às enganações resultantes das colisões nem sempre amistosas, enfim, menos voltado à noção de código, ou seja, daquilo que se é supostamente palpável por ser instituído.

Buscar desenhar a vida a partir da ideia do torto, é solucionar a realidade com mais problemas e encontrar os antídotos e a cura das “patologias” com mais doses intensas de veneno. O torto diz respeito ao estar, ou seja, ao provisório, visto que ele se entorta, e por isso mesmo ele se altera o tempo inteiro. O ser no torto existe também, afinal, por entortar, ele dialoga com ele, porém, o ser no entortar assume também um caráter de momentaneidade, fazendo prevalecer, portanto, a situação e o estar.

Com isso podem questionar: o torto se define? Eu respondo que sim, afinal, como dito, o torto, por entortar, também dialoga com a condição e com o ser, isto é, com o código, porém, essa definição está sempre predisposta a ser refeita e jamais acabada. O torto diz muito mais respeito às incessantes construções do que conjuntos harmonicamente classificados de forma taxonômica com hierarquizações precisas e circunscritamente engessadas.

Portanto, o ser torto não diz respeito ao que ele é em si mesmo enquanto condição acabada, mas sim, enquanto aquilo que vai sendo, ou seja, enquanto aquilo que o torna momentâneo, sobrevivente nos deslizes e no inacabado das situações e do estar. O torto afirma, pois dialoga com o código, e, portanto, com o ser e com a condição, mas refuta, e por isso mesmo, reelabora essa afirmação por simplesmente buscar ser em sua contraditória construção de si mesmo.

Entortando a ideia de grupos sociais

O problema que eu vejo na ideia que as pessoas fazem do que seja um grupo social, refere-se à insistência em confundir coletividade com padronização coletiva. Infelizmente, em nossa cultura, acredito que às vezes devido ao conformismo, e em boa parte devido à covardia, o fato de você pertencer a um grupo implica em ter que obrigatoriamente anular a sua subjetividade para ter que atender as expectativas desse grupo.

Acredito que pensar em grupos sociais, significa aceitar a inevitável relação de afinidades que os membros possuem com relação aos demais. Contudo, em nenhum instante significa dizer que essas afinidades tenham que se submeter a uma homogeneização, ou seja, a uma padronização imposta. O que eu percebo é que, para pertencer a um grupo, temos que manter com este uma relação de dívida e de prestação de contas.

Porém, o fato de admitirmos afinidades entre os membros, não nos dá o direito de amputarmos as particularidades deles. O fato de eu encontrar em certo espaço social expectativas com as quais eu me identifique, não faz com que eu tenha a todo o instante a motivação e a aceitação acerca do ponto de vista do outro membro que, assim como eu, faz parte de um determinado grupo social.

Não posso deixar de reconhecer que cada indivíduo comporta um universo infinito de possibilidades e de crenças e que estas se alteram a todo instante a partir das experiências que esse indivíduo passa a vivenciar com os outros, sejam esses outros pertencentes a um grupo do qual esse indivíduo faz parte ou não. Os indivíduos mudam suas próprias convicções o tempo inteiro, e o que eles acreditam hoje podem não acreditar amanhã.

O que a nossa cultura não percebe, é que em cada circunstância, o indivíduo possui intencionalidades diferentes. Mesmo com os membros inseridos em um dos grupos sociais dos quais ele faz parte, ele procura alguém de acordo com o seu estado de espírito existente em cada ocasião. Em outras palavras, ele vai procurar estabelecer um diálogo diferenciado com cada pessoa para conversar assuntos dos mais diversificados.

Por exemplo, eu posso encontrar em certa pessoa um estímulo em debater temas de teores mais partidários, como posso encontrar em outra um maior prazer em falar sobre religião, ou música, ou filosofia, ou questões mais corriqueiras. E mais: para algumas pessoas eu me sinto a vontade para expor assuntos de maiores intimidades, isto é, para expor acerca de meus afetos, segredos, já para outros eu busco dialogar questões mais “impessoais”.

E mesmo eu buscando em cada pessoa um propósito diferente, em nenhum instante significa dizer que eu vou ter que compartilhar a todo instante com essa pessoa dos mesmos ideais. Em outras palavras, eu posso gostar de me interagir com alguém para conversar questões acerca da política atual, mas em muitas das ocasiões eu vou ter com essa pessoa minhas divergências e posso encontrar pontos em comum com outras sobre o mesmo assunto.

O que eu quero salientar é que um grupo social, como dito mais acima, apesar de ser estruturado a partir de afinidades e pontos de vista em comum entre os diversos membros que o compõe, termina por passar por variações dentro dele, afinal, essas afinidades, apesar de se verem dispostas a se assimilarem com a opinião do outro, não estão livres de entrarem em dissidência e carência de consenso.

Portanto, antes de pensar o grupo social como algo submetido às diretrizes, é necessário pensa-lo como uma integração momentânea; falo momentânea, pois essa integração está constantemente se alterando, se refazendo, afinal, apesar das identificações sentidas pelos membros de um grupo, estes, por estarem se interagindo com outros, aprendem, ensinam e reelaboram suas opiniões a todo instante.

Se pensarmos que essas alterações acontecem dentro de um mesmo grupo, imagine que os membros desse grupo, por também conviverem com outros grupos, terminam sendo contaminados por novas ideias, e que essas ideias contaminam também outros grupos! Querer impor opiniões dentro de um grupo como se estas fossem homogêneas, é negar o mais óbvio da convivência social que é a troca com a diversidade.

É por isso que para mim, antes de um grupo ter como característica preponderante a linearidade, ele se entorta. As ideias que povoam dentro dele mudam de percurso a todo instante, e antes de serem acabadas e fechadas em si mesmas, são fluidas, e tem como traço bastante marcante o imprevisto, isto é, o incessante reelaborar de convicções dos seus membros. Enfim, é uma incansável construção.

Para mim, a coisa mais absurda que pode haver é o fato de um indivíduo sofrer repreensões dos membros que frequentam o mesmo grupo que ele só por que suas ideias contrariaram as ideias “do grupo”; uso aspas por que me questiono bastante acerca dessa afirmação, afinal, eu pergunto: a ideia do grupo? De qual grupo se este é formado por vários indivíduos? Quem define essa ideia, o grupo de quais indivíduos?

E mais: o fato de minha pessoa não se encontrar em determinado instante no grupo do qual ela faz parte significa que ela traiu o grupo? Por quê? O fato dela não compactuar do discurso do grupo significa que ela não possa mais se sentir pertencida a esse grupo? O fato de minha pessoa também transitar em outros ambientes significa que ela não quer mais conviver com determinado grupo social?

Eu acho que as pessoas têm que reconhecer de uma vez por todas que elas, antes de serem objetos encaixotados em departamentos isolados, são construtoras de novas visões de mundo, ou seja, elas estão constantemente se atualizando, pois elas se interagem com infinitos universos. Acredito que as pessoas precisam abdicar dessa busca amedrontada por um porto seguro e admitir que a vida é fluxo, é mudança.

Mais importante do que encontrar meios autoritários para se conquistar uma suposta harmonia e integração de um grupo social, as pessoas precisam entender que quanto mais elas entenderem e se permitirem experenciar novas realidades além das do seu grupo social, mais elas farão com que esse grupo se enriqueça e se torne de fato humanamente viável, além de saudável para o exercício do convívio com a diferença.

No final das contas, ninguém está preso e submetido a ninguém por mais que a nossa insegurança assim queira. O pertencimento encontrado em um grupo social não se revela pela imposição de diretrizes, mas sim, pela contribuição de novos valores que se inserem nele. Em nenhum instante eu posso entender que o pertencimento a um grupo deixa de existir por que eu agreguei mais valores a minha pessoa com outros grupos.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Concluindo o introduzir

Por uma estética torta

Por todas essas linhas que escrevo, sou seduzido pela ganância em buscar o meu sentir. Deixo o fluxo em seu transcorrer estético. Ajo assim, pois acho que cada coisa que construo resulta das explosões dos meus afetos. Se o que eu construísse não fosse feito dos meus desejos, sequer o procuraria. É por eu ter desejos que, mesmo vivendo relações de atrito com isso que construo, só o fato de deseja-lo, me faz voltar à sua casa pedindo perdão, mesmo sabendo que novamente lá eu vou me embebedar pelo concreto e por aquilo que me contamina, mas que nunca sei o que é. Se o que escrevo é racional? Ora, eu uso a racionalidade, mas procuro fazer dela um razoar e não uma Razão. Sim, o que procuro é pensar, organizar meu pensamento, mas deixando as vibrações e o pulsar do meu corpo trafegar em meio a mais confusa, deliciosa e profunda sensibilidade. Cada logicidade e clareza que construo, felizmente vem dançante e brincante com o sentir sempre tão generoso com o criar e com a vida que eu levo a imaginar. Seria então o meu texto impuro e não acadêmico? Como quiserem. É da impureza que resgato e descubro o que, pelo menos por alguns instantes, eu acredito ser puro. Quanto ao acadêmico, não sei se sou o acadêmico ou o saci ou o caqui ou o kiwi ou o guri. Não me importo. Definir verdades a partir de classificações me deprime, e, por isso mesmo, não me interessa. Sou o universo, e por ser tão infinito, sinto muitas vezes que não sou nada. Não me alcanço. E é por tudo isso que tudo me parece ser tão estético! Se o que escrevo é ciência ou arte ou verdade ou ficção? Ah... quantas razões eu tenho por chorar e quantos sentimentos me povoam por eu tanto pensar! O que posso dizer é que, as supostas formas que dou ao meu discurso, se devem ás lágrimas e aos ideais que me desabitam e me ecoam, afinal, a cada linha que escrevo, tento libertar esse humano tão perfeito e esquisito que existe em mim.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Bases para a hierarquia horizontal na educação



                                



Por Marcio Santos



"Na visão bancária da Educação, o 'saber' é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. (...) O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez dessas posições nega a Educação e o conhecimento como processos de busca."
(Paulo Freire)



      Nada melhor do que posicionamentos divergentes para surgir a inspiração e colocar no papel, ou melhor, no ambiente virtual de uma tela de computador, palavras que abalizem um pensamento defendido, porém, não compreendido por terceiros, devido, também, ao próprio calor das convicções, encharcadas por boas doses de vinho e copos de cerveja (risos).
           Noite natalina, luzes encandeando até nossas almas. Sentado confortavelmente numa cadeira de praia. A minha frente, fartura de bebidas e comidas. O prazer de estar arrodeado por amigos e familiares, acolhido pelo som do acústico MTV de Lobão, e em meio a tantos outros temas em pauta neste dia de confraternização, como música, política partidária e agroecologia (que em outra oportunidade poderei aborda-los), o da hierarquia horizontal nas organizações sociais, mas principalmente, nas instituições educacionais, em contraponto a prática e definição clássica de hierarquia vertical (antidemocrática, inibidora da construção do conhecimento e formadora de padrões de submissão), veio à tona.
            Logo no primeiro instante, foi perceptível o desconhecimento da grande maioria sobre tal tema. Digo mais: a inconformidade com o “absurdo” da lógica da horizontalidade em qualquer sistema hierárquico. A horizontalidade seria a concretização do caos. Ou como mesmo disseram: “a hierarquia horizontal não tem lógica” ... “A prova da eficácia da hierarquia (clássica) é o sucesso do militarismo, das forças armadas” ... “O professor, deve ser considerado superior. Os alunos devem ser submissos, assim como os filhos são para os pais”. Neste momento o tema ganhara mais pano pra       manga, culminando, não por afronta, mais para facilitar a compreensão, com a elaboração do texto em tela.
            Para entendermos a dinâmica da horizontalidade na educação não podemos deixar de lado os tipos de relações e organizações sociais, e de fazer uma cronologia histórica dos fatos que fundamentem a defesa do tema. Mas, primeiramente, levanto questionamentos iniciais que ao longo do texto responderei: levando em conta as múltiplas faces das relações humanas em sua história, seria a hierarquia clássica a melhor forma de sistema de organização social?  O modelo de educação vigente, com relações e tomadas de decisão verticais, sem levar em conta a participação de todos os atores (estudantes) para sua construção, pode ser considerada como libertadora, fértil para o conhecimento e para o exercício de cidadania? A concepção de uma lógica hierárquica horizontal é concebível, principalmente, na relação entre professor-aluno, dentro de uma sala de aula?
Nos reportemos ao mundo da biologia, mais especificamente ao da ecologia, para começarmos a entender a dinâmica das relações sociais e potencial de desenvolvimento de um grupo, com o objetivo de se chegar a um equilíbrio no meio. Entendamos que dentre as variadas relações, dois questionamentos básicos não devem ser esquecidos: se existe harmonia, ou não. Na ecologia, as relações entre indivíduos ou entre grupos (populações ou comunidades) para ser considerada harmônica no mínimo tem que ser benéfica para um indivíduo ou grupo, e não prejudicar a outro indivíduo ou grupo. Porém, sendo mais harmônica quando há o benefício para ambas as partes. Um exemplo de desarmonia, que servirá de base para a verticalização, é a competição. Que tem como característica ser prejudicial para ambos indivíduos ou grupos.
O Princípio de Exclusão de Gauss explica bem a gravidade de uma relação desarmônica. Ele e propôs, a partir de observações, que se duas ou mais espécies exploram exatamente o mesmo nicho ecológico (modo como cada espécie, de animais ou de plantas vivem e sobrevivem num determinado local), a competição estabelecida entre as mesmas é tão brusca que a convivência se torna impossível. Assim, a competição entre as espécies no mesmo nicho pode dar origem a escassez de recursos, levando uma das espécies à extinção (daí a expressão princípio de exclusão competitiva); a expulsão de uma das espécies daquele habitat, com a consequente migração para outro território em busca de recursos que garantam sua sobrevivência; ou uma ou todas as espécies modificariam seu nicho ecológico, de maneira que deixassem de competir por recursos limitados. Ocorre assim um desequilíbrio no meio.
Desta forma, e fazendo uma alusão as relações entre os seres humanos, qualquer desequilíbrio na relação não assegura melhores condições de sobrevivência, bem como a preservação dos recursos (ou meio de convívio). Não há sinergia, como na protocooperação ou no mutualismo (associações entre indivíduos, em que ambos se beneficiam). Então, os tipos de relações entre indivíduo e grupos determinam e são determinadas pela espinha dorsal de organização social adotada, culminando no equilíbrio, desenvolvimento (ou não) de um grupo (ou entre grupos)? Certamente.
            Segundo Raymond Firth (antropólogo social neozelandês e professor da London School of Economics), nascido em 25 de março de 1901, organização social consiste na ordenação sistemática de relações sociais pelos atos da escolha e da decisão, em que os indivíduos fazem tais escolhas baseando-se nas normas da estrutura social.
Vicente L. Perel (doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Buenos Aires), em seu artigo Nascimento, apogeu e decadência da estrutura piramidal, cita que para Dale (E. Organization. New York, American Management Association. 1967), o tema deve ser compreendido em duas fases: uma teórica e outra prática. Teoricamente, as organizações constituem conjuntos humanos dotados de um sistema de comunicação, que conseguem resolver problemas e possuem meios facilitadores das tomadas de decisões. Em termos práticos, a organização existe quando se determina o que deve ser feito para alcançar um objetivo desejado, quando se dividem as atividades necessárias para alcançar tal sorte de objetivos, graças a uma divisão do objetivo em partes tão pequenas que possam ser levadas a termo por uma única pessoa; e, além disso, quando se consegue utilizar meios de coordenação capazes de evitar o desperdício de esforços representado pela repetição de tarefas por pessoas diferentes.
Sendo assim, o arranjo ou distribuição funcional de um conjunto de pessoas com objetivos comuns, executando atividades dentro de regras preestabelecidas de convivência e performance é considerada uma organização social.  
Os arranjos historicamente adotados pela sociedade foram alicerçados de forma piramidal, com distinções claras de setores ou classes. Ou seja, com pessoas ou entidades se organizando em níveis hierárquicos superpostos. Cada nível compreendendo menos integrantes do que o nível que lhe é inferior, e com sua usualidade se dando pelo modo de atuação dos dominantes e pela influência cultural enraizada (fixada).
Nos séculos XVII e XVIII, durante a Idade Média, os diferentes níveis da sociedade se davam pela afirmação do poder, quer por hereditariedade de nobreza, pela conquista do título a partir da aquisição de terras de um nobre (em certas regiões), ou, no caso das camadas mais baixas, por sua perícia militar, intelectual, etc. Ou, por exemplo, como exposto de forma simplista nos livros de história do ensino médio: clero, nobreza e terceiro estado, que obviamente estão inclusos os servos ou escravos. Ou mesmo senhores e vassalos, mestres a aprendizes.
No mundo moderno, período situado entre a Idade Média e a História Contemporânea (levando em consideração a história do Ocidente), o renascimento do comércio fez nascer uma nova classe social: os burgueses. Estes, conduziram as alterações sociais no novo período através do desenvolvimento do nascente capitalismo, e tendo como características as Grandes Navegações, o Renascimento, a Reforma e a Contra Reforma e o Absolutismo.
Hoje, em pleno século XXI, na chamada Idade Contemporânea, e com o nocivo e significativo adendo do modo capitalista, a base ou essência do sistema organizacional piramidal da sociedade em sua grande maioria não difere do criado no passado. Mais com ferramentas de consolidação de poder validadas pela acomodação da grande massa neste mundo superficial e veloz proporcionado pela globalização. Sistemas governamentais, empresas, instituições diversas ou até mesmo a família se valem dessa distribuição funcional.
 Então, por ser historicamente o mais adotado, esse sistema pode ser considerado o melhor ou único possível? Depende para quê e para quem. O sistema de hierarquia vertical não à toa foi e é ainda o mais adotado simplesmente por fortalecer as relações de dominação e submissão estabelecidas numa organização. Porém, uma nova perspectiva de sistema, hoje, está ganhando cada vez mais adeptos: o sistema de hierarquia horizontal. Sendo seus princípios adotados, em parte, até por grandes empresas, mas, principalmente, pelo terceiro setor da economia (sistemas de cooperativas, associações e de economia solidária). 
Quando falamos em horizontalidade pensamos além do que autonomia de setores e/ou indivíduos. Pensamos em democracia, igualdade de posições e descentralização nas tomadas de decisão de um grupo ou instituição, por mais que no papel ainda possa existir uma espinha vertical “figurativa”. Onde seus integrantes se ligam horizontalmente, em rede, a todos os demais, diretamente ou através dos que os cercam, sem que nenhum dos seus nós, ou integrantes, possa ser considerado principal ou central, se baseando em valores de ajuda mútua, responsabilidade, democracia, igualdade e equidade. Transformando todos os integrantes em líderes, porém, a partir de uma vontade e planejamento coletivo de realizar determinado objetivo. Diferentemente da forma superposta, impositiva e antidemocrática, observada na forma piramidal, que certamente condiciona a grande base à submissão. Um exemplo é quando nos referimos ao sistema educacional brasileiro. O conhecimento de sua estrutura histórica nos reporta aos moldes apresentados na forma hierárquica vertical.
Se fizermos uma viagem ao longo da história da educação no país, desde a catequese feita pelos Jesuítas aos curumins (filhos dos índios) e órfãos portugueses (com o objetivo principal de perpetuar o catolicismo e aumentar seu poder de dominação, já que a Igreja Católica se sentia ameaçada pela Reforma Protestante), passando mais tarde pelos filhos dos proprietários das fazendas de gado e dos engenhos de cana-de-açúcar e também dos escravos, passando a ideia de que são seres inferiores e de que há um ser superior, sobre-humano, que tinham que temer. Porém, com uma Instituição (igreja católica) e pessoas legitimadas por esta entidade central, a serem também superiores e que eles tem que se sujeitar; com a reforma da educação realizada pelo Marquês do Pombal (1714-1777), com o objetivo de modernizar o reino de dom José I (1714-1777), substituindo os padres; em 1760, com a  realização do primeiro concurso para professores públicos (ou régios), em Recife;  nas reformas durante o período da Primeira República; com as propostas da Escola Nova e de Paulo Freire, durante a era Vargas, que apesar de ganharem força, infelizmente não chegaram às salas de aulas; no período do regime militar, que se apoiou nos ideais tecnicistas e mecânicos, fazendo do ensino uma ferramenta de controle. Mantendo a preocupação com a industrialização crescente e o foco em formar um povo capaz de executar tarefas, mas não necessariamente de pensar sobre as mesmas; e na Educação pós-ditadura (inclui-se os dias atuais); veremos que, no geral, apesar de algumas tentativas benéficas, as ferramentas educacionais para afirmação da dominação a partir de um arranjo piramidal entre as relações, evitando um caráter dialógico e democrático entre os formulados níveis hierárquicos (às vezes não propositalmente por má intenção, mais sim, mecanicamente, pelo que podemos chamar de “DNA cultural” ou influência cultural enraizada, como citado no início do texto), continuaram existindo, apesar do surgimento de algumas ilhas de esperança. Ou como meu grande amigo Vinícius Souza, sociólogo e professor do Instituto Federal de Sergipe (IFS) mesmo diz, no sentido de fugir ou colocar em xeque o padrão atual: “ervas daninhas”.

[...] “que na educação sempre surjam ervas daninhas”.

Apesar de existirem tais ilhas de esperança, como citado anteriormente, no geral, facilmente identificamos nos planos político pedagógicos e nas próprias relações entre gestores-docentes-discentes (não necessariamente nesta ordem das relações), uma concepção no mínimo equivocada sobre gestão escolar democrática, construção do conhecimento e fomento ao exercício de cidadania.
  Em relação a gestão escolar, as ações intensificam aspectos de submissão, e muitas vezes de inércia, a partir da própria burocracia, mas, principalmente, do momento em que se criam barreiras de diálogo entre os setores e indivíduos, não validam e desdenham as opiniões dos estudantes para um melhor ambiente de convívio e tornam a punibilidade como uma ferramenta fundamental para o ensino, quando na verdade o que se pensa é na chamada manutenção da “ordem”, ou melhor, no controle da massa. 
Não à toa, que o compositor Tom Zé, na música Classe Operária, disse: “Sobe no palco o cantor engajado Tom Zé, que vai defender a classe operária, salvar a classe operária e cantar o que é bom para a classe operária. Nenhum operário foi consultado. Não há nenhum operário no palco. Talvez nem mesmo na plateia. Mas Tom Zé sabe o que é bom para os operários”.
Isso comumente acontece em qualquer setor. Diretores que se escondem e não tratam diretamente com estudantes sobre as demandas e possiblidades de atendimento das mesmas na escola, e do próprio corpo discente (efetivando a verticalização). Como também não os envolve na construção da própria metodologia pedagógica em relação as regras no ambiente escolar e do próprio sistema de ensino. Criando mecanismos de controle e afirmação de poder. Dificultando assim uma identidade com o local e o melhor desenvolvimento daqueles que são o objeto principal para existência de uma escola: estudantes (crianças e/ou jovens em processo de formação).
Ou seja, não há um sentimento de pertencimento por parte dos mesmos. Por isso, se caracteriza diferentemente da tão falada educação libertadora e cidadã que é veiculada, e sonhamos. Repercutindo na própria formação da sociedade. Com seres sociais acomodados ou alheios a situação a que estão inseridos, incapazes de assumirem erros e consequências por seus próprios atos, e de agir e pensar no coletivo. Ou mesmo, também, com seres revoltosos, mas sem maturidade política e emocional para enxergar as diversas faces e estratégias para se atingir o objetivo desejado, ou o melhor possível a se alcançar.   
Não distante do que ocorre na relação entre gestão escolar e corpo discente, ocorre também entre docentes e discentes. Existe um entendimento de grande parte dos professores, devido ao “DNA cultural” ou mesmo pela pressão da gestão escolar, de que o mais importante no processo de aprendizagem e no convívio dos mesmos dentro de uma sala de aula é a ordem e postura física e intelectual dos estudantes e professores; e a transmissão e acúmulo de conhecimento, representados pela nota do estudante nas avaliações, e segundo o padrão sequencial e obrigatório de assuntos de cada disciplina (ementas disciplinares); sendo, apenas, validada pela aquisição de um diploma ou currículo. Confundindo submissão com disciplina / respeito, reprodução com construção do conhecimento, etc.
Noutra etapa da vida escolar, apesar de algumas “regalias” que os discentes adquirem, e que são negadas no ensino Fundamental e Médio, e que “servem” como justificativa de prêmio por aceitarem as condições impostas, antes da rotulada maturidade emocional e intelectual (como por exemplo o fato da não obrigatoriedade de utilização de fardas), nas Academias ou Universidades ocorrem o mesmo.
Numa perspectiva vertical, a pessoa é ensinada, tendo por base o conhecimento transmitido, a julgar o que é científico (e deve ser aceito) e o que não é (sendo rejeitado), desconsiderando muitas vezes o saber empírico, surgindo grupos com diferenciadas bandeiras ideológicas, afirmando e propagando uma ótica corporativista, cartesiana e segregadora do saber. Assim como a ideia meritocrática de que o resultado disso tudo, o mais importante, é galgar posições de poder, prestígio, títulos e melhor remuneração relativamente aos outros, destacando-se dos demais e estimulando a competição e dinâmica das carreiras, ao invés de interagir, partilhar e  construir. Ou seja, valemos como nos comportamos, se aceitamos, o quanto acumulamos e se reproduzimos o conhecimento transmitido e a regras alicerçadas ao longo de nosso currículo escolar na infância, juventude e, por que não, na vida adulta.
Devemos compreender, então, que a horizontalidade na gestão escolar e no ensino se vale do princípio fundamental da democracia, equidade e responsabilidade pela cooperação, mas, principalmente, do fomento a criatividade.  Do permitir e permitir-se. Sendo concebível sua concepção e sua aplicabilidade para a contínua desconstrução e construção do saber. Por isso, apesar de exigir maior organização, uma gestão horizontal inspira um ambiente mais criativo e com bons resultados. Pois, assim como disseram Deleuze e Guatarri (1995), “não existe um pressuposto último que sustenta todo o conhecimento, e que se ramifica infinitamente em direção à verdade. A estrutura do conhecimento assume forma fascicular, em que não há ramificações, e sim pontos que se originam de qualquer parte, e se dirigem para quaisquer pontos. (...) Surge o conceito de rizoma (raiz), um caso de sistema aberto, em oposição à forma segmentada de se conceber a realidade, bem como ao modo positivista de se construir conhecimento”.
            A partir dessa perspectiva, da criação de uma nova escola, holística, sistêmica, com bases hierárquicas horizontais de conhecimento, de gestão participativa (envolvendo toda a comunidade escolar (como também através do policiar-se), frases “equivocadas” como as ouvidas nesta e em tantas outras noites natalinas prazerosas, não edificarão regras de dominação e relações de poder na escola, na família, na religião, no trabalho, entre gêneros, instituições e na sociedade como um todo. Serão meras frases, escritas a giz, apagadas e nunca repassadas como bandeiras para outras crianças, jovens e adultos. Afinal...    

“(...) de um lado está a escola tradicional, aquela que dirige que modela, que é ‘comprometida’; de outro está a escola nova, a verdadeira escola, a que não dirige, mas abre ao humano todas as suas possibilidades de ser. É portanto, ‘descompromissada’. É o produzir contra o deixar ser; é a escola escravizadora contra a escola libertadora; é o compromisso dos tradicionais que deve ceder lugar à neutralidade dos jovens educadores esclarecidos (XAVIER, 1992: 13).


 (Bases para a hierarquia horizontal na educação. SANTOS, MARCIO ERIC FIGUEIRA. 02 de Janeiro de 2016. IFS – Campus São Cristóvão) 




REFERÊNCIAS

PADRÃO ESTRUTURAL DO SISTEMA DE ENSINO NO BRASIL. Réjane de Medeiros Cervi. Editora Ibpex, 2005.
RIZOMA E EDUCAÇÃO: CONTRIBUIÇÕES DE DELEUZE E GUATTARI. Mauro Michel El Khouri – Universidade Federal do Ceará (UFC).