segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Meu nome é desejo, muito prazer!

Cheguei ao mundo para brincar de me enrolar por entre os nós. Não condeno quem acha que vive livre deles. Quem quiser acreditar na verdade absoluta e na possibilidade da harmonia eterna que acredite. Cada um escolhe sua própria ilusão. Quanto a mim, eu fico aqui enrolado. Eu sou o caos, sou a indagação, sou o problema. Eu vim pra cá foi pra deixar suspeitas. Não é da minha intenção cobrir o universo com agasalhos e dar-lhe colo. O que eu quero mesmo é retirar a cada instante o seu véu, rir com a falta de garantia, brincar no recreio jogando para o alto todas as peças desse jogo, revirar todos os dados e sequer pensar na pretensão acomodada de que eu posso ser previsivelmente o início, o meio e o fim.

O caos... certa vez, não sei bem quando, nem onde, vozes tentaram arrancá-lo de mim. Por medo dos olhos sedentos de ordem, eu quase deixo levar esse patrimônio mais sublime que preservo em minha alma. Em crise, corri para dentro do meu quarto. Fiquei na cama pensando se deixaria minha desordem. Ao pensar em me levantar da cama, não me vi deitado a lugar algum e em lugar nenhum. Pensei: não seria eu esse querer existir? Como podem aquelas vozes ter a pretensão de retirar de mim todas as infinitas surpresas do tentar me encontrar e do me desencontrar? Por que farei imensa tolice em deixar de lado a busca que faço de mim? Não!

Nem saí, nem entrei. Fui, sei lá. Sentindo-me um mero joguete dos tempos verbais, decretei a todo o universo de nós que me cercava que eu precisava correr o risco. Eu precisava correr o risco! Não cabia a mim sugerir uma perfeita integridade. Dei-me conta de que eu era uma luz em inconstante estado de desintegração. Gritei, pois eu queria o azar. Precisava mais do que nunca de todo o perigo. As estradas, apesar de maquiadas de sentidos, eram variáveis e cheias de deslizes. As placas eram apenas rastros. Meus pés eram festas surpreendentes por novos motivos pelos quais eu alimentava o meu exercício de viver, apesar de eu perceber que nunca tinha adquirido a plenitude desse dom.

Para quê ceder ao Senhor Totalidade toda essa herança de traquinagens? Não havia sentido eu fazer com que minha vida passasse a ser uma história falseada de atos ordenados e de total apreensão das minhas memórias. Preferi viver a custa do falseamento de mim em sua originalidade pela busca do que nunca fui. A sorte que me cabia era apenas necessária para derramar toda a minha contradição em meio a algum lugar. Sempre fui dado a bagunça. Não era agora que eu teria que deixar as coisas intactas sem pretensões, sem ganâncias. Não cabia a mim encontrar a régua, o metro, o termômetro, o numero de meu pé. Precisava movimentar para lados possíveis e desconhecidos.

Triste daquele que se apega a uma verdade. Minhas mãos não a alcançam. Pelo menos as minhas mãos não alcançam. A probabilidade do encontro com a totalidade é tão opaca e cercada por miragens como a falta de certeza que me devora aqui por dentro, pelos lados, pelo que há de preenchido e pelo que há de oco. Olhos são ferramentas para acertar o caminho das nossas ações, mas são incapazes de definir com total exatidão tudo isso que foi criado por olhos cambaliantes e bêbados como os meus. As classificações exalam cheiros muito reais. As tipologias me soam organizações muito auto-suficientes. Entretanto, bastam-me aparecer os sonhos e eu logo passo a sentir algo além das meras certezas, definições, organizações e auto-suficiências.

De fato, posso dizer que a busca pela noite que não vem, pelos sonhos que não se realizam, é algo bastante cansativo e por demais desconfortável, mas é o que me resta. Se ao menos eu fosse a certeza do trajeto que se chega até a montanha, bem que eu poderia descansar na varanda da menina que tanto amo e esquecer do fluxo que me invade diante desse imenso universo. Bem que eu poderia deixar o mundo enquanto acalentava os cabelos cacheados e castanhos de Marina na rede da varanda de sua casa. Mas não é só isso. Ao mesmo tempo em que eu alimento amores e projetos com minha menina, eu corro em busca de amores perdidos, amores que penso um dia poder dizer o quanto eu estive aqui a procura.

É por tudo isso que reluto em aceitar a condição de um estado permanente das carícias e do amor de Marina. Eu sei que isso apenas não me caberia. Se esse amor que tanto devoto suprisse toda a minha sede de aventuras dentro desse espaço solúvel do qual não consigo fincar minhas raízes, bem que eu cederia toda essa minha busca. Bem que eu cederia todo esse desajuste do qual venho tentando me libertar, mas sei que não me liberto, pois eu não quero tentar me ajustar. Eu quero realmente o processo que, apesar de muitas vezes me fazer chorar, faz-me acreditar que há um sentido pra vida, nem que pra isso eu admita que sentido é tudo o que a vida não tem.

Minha história com Marina é muito bonita, mas ironicamente o amor existe para que nosso terreno chamado coração não possa ser destruído por ervas daninhas as quais chamamos de amor. Eu quero o encanto de todos os olhares de Marina, mas eu quero a vida cheia de outros amores, de outras curvas, de outras aventuras. Não posso querer menos que isso, pois menos é algo que eu já sou, mas não do que eu penso em ser. Quero ser agraciado com o acaso também. Eu preciso das mãos e do sorriso de Marina, mas preciso dos imprevistos, de outras surpresas, de novos encantos e maravilhas além da minha menina. Não posso ficar aqui.

Novamente não vejo a noite chegar. Olho-me no espelho, mas também não sei se o que vejo é o que eu tenho pra mostrar de mim ou o que o mundo precisa inventar pra mim. Preciso realmente da aventura, dos gritos, da dor, do amor, da minha casa, da minha ferida, do gelo, da oração, do canto dos pássaros, de Marina, de sua casa com sua rede na varanda e da sua singela serenidade. Mas apesar de cansado, olho bem distante tudo que eu não sei o que é, mas que sei que quero ser e ter. Ponho o infinito em minhas costas e vou à procura do querer, mesmo que para isso eu tenha que me deparar com o medo do que eu quero.

Meu nome é desejo, muito prazer!

terça-feira, 22 de outubro de 2013

A CIDADE DAS ARANHAS

A cidade e as aranhas

Todos os homens sonham com a vida eterna; a grande maioria desencarna sem descobrir que a morte é um engano.

Na Aracaju dos anos oitenta, as mudanças provocadas pela industrialização recente, jogaram muitas pessoas num oceano de dúvidas sobre o sentido de nossa existência terrena. Minha pessoa teve a oportunidade de ver florescer junto com o progresso da cidade, a semente de uma sociedade marcada pela reificação ou pela coisificação do ente humano – algo muito conhecido nas grandes metrópoles do mundo inteiro.  A mocinha Aracaju, nos anos oitenta e noventa, perdia sua pureza de cidade muito pequena para se tornar, em pouco tempo, em uma arena de conflitos, ou em um mar de contradições e tensões sociais. Seus moradores agraciados pela chave mestra do capitalismo – o dinheiro, fizeram como nas grandes cidades brasileiras - se encastelaram em seus condomínios e prédios modernos enquanto uma gigantesca massa humana mergulhava dia após dia num mar de miséria.

Foi nesse imenso mar de desesperançados que nasceu o jovem Túlio. Túlio era um rapaz de muito valor para sua família. Esta, embora pobre, era formada por pessoas dignas e honestas. Túlio levava consigo a boa educação de seus pais e a certeza de que “Deus ajuda a quem trabalha”. Esse era o lema do jovem rapaz nascido no bairro Santos Dumont – o trabalho como meio de mudança social.

- Meu filho, eu trabalhei a vida inteira. Pelo menos, eu posso comprar o meu caixão. Seu Maurício mais uma vez disse a palavra chave.
- É meu pai, Deus sabe o que faz. Existem diferenças na sociedade, mas, o trabalho traz a mobilidade e esperança de uma vida melhor. Túlio como seu pai era adepto da filosofia do pagar para viver.
- Meu filho, graças a Deus que você entendeu isso cedo. Essa foi a causa de você não ter tido o mesmo destino dos outros garotos aqui do bairro.
- Pai, eu tenho planos de comprar, no fim do ano, uma moto. Minhas economias darão para arcar com as despesas. Graças a Deus!
- Que bom meu filho.

Pai e filho se despedem para mais um dia longe de casa. Túlio foi para a loja de autopeças “Aki tem tudo”, e seu pai para a fábrica de sandálias no bairro Industrial. A casa de Maurício ficava deserta desde que dona Amélia foi morar no céu. Amélia, mulher de Maurício, depois de anos de trabalho como domestica, conseguiu a chave da casa própria no bairro Santos Dumont. No dia em que a genitora de Túlio soube que, finalmente, sairia do aluguel, acendeu uma vela gigante para Cosme e Damião: “Eu sabia que um dia Deus ia se lembrar de mim”. Pena que dona Amélia passou tão pouco tempo na nova casa. Amélia entregou seu sonho para seu marido e seu único filho – Túlio; a morte impediu que dona Amélia visse o fruto de seu trabalho.

A natureza é implacável assim como são o individualismo e egoísmo humano. Seu Maurício foi abordado por dois marginais nas proximidades da Orlinha do Bairro Industrial. O velho prestes a se aposentar sentiu a lâmina fina de uma faca empunhada por um adolescente. Maurício foi para o céu sem ver seu sonho realizado e Túlio ficou na terra para tentar realizar o seu. Com a morte de seu pai, o jovem Túlio se desarmonizou. O rapaz nunca bebera antes, nem havia passado uma noite fora de casa. Túlio, então, passou a frequentar a balada noturna de Aracaju.

- Túlio, até que fim você acordou para o real sabor da vida. Túlio deu uma risada por entre os cantos da boca. Sua mão direita segurava um cigarro como se ele fosse uma boia para o sobrevivente de um naufrágio; na outra mão, o jovem rapaz segurava o copo de caipirinha feita de vodca e limão. Aquele devia ser o décimo copo.
- É minha amiga Têca até que fim a vida começou para mim.
- Amigo, lembra dos tempos do Costa e Silva?
- Claro que lembro. E você naquela época já era linda. Os dois passaram, a sair juntos. Túlio e Têca amavam a mesma coisa e dividiam o mesmo mundo. O paradigma era: “A semana é para o trabalho, e o final de semana para a curtição”. Este era regado a muito álcool.
As pessoas da comunidade do “Santos do Dumont” testemunharam Túlio pôr Têca para morar na casa de seus pais.
- Parece que Túlio vai fazer vida com essa moça.
- Quem é ela comadre?
- É a filha de seu Flores, o catador de alumínio.
- Como ela cresceu. Eu me lembro dela aqui na rua a brincar com suas amigas. Mulher o tempo passa ligeiro. Os anos passaram, e com eles a juventude do casal. Túlio chegava aos quarentas e Têca aos quarenta e um. Túlio continuava trabalhando na autopeça, sua mulher trabalhava na rua Laranjeiras como balconista. A moto de Túlio não suportou a idade. Túlio quis comprar outra, mais, mesmo com a inflação contida, a vida de casal e a curtição não lhe permitia uma economia maior.
- Têca, esse ano completam vinte anos na autopeça.
- Parabéns, maridão! Têca pula no pescoço de seu amor beijando-lhe a face.
- Obrigado, mas, num é isso que eu queria. Espia!
- Vinte anos trabalhando e não tenho nada. Mesmo nós dois com nossos salários não nos permite fazer nada além do que fazemos: Beber no final de semana.
- E o maridão queria o que? A vida é isso! Túlio se conformou com a resposta de sua mulher, mas, decidiu sair a pé para relaxar suas emoções. Túlio chegou à linha de trem da antiga leste. Passa a parede de proteção e caminha pelos trilhos; ele sabia que os trens trafegavam por ali muito raramente. O caminhar pelos trilhos o fez lembrar-se de seu pai e sua mãe. Ele se recordou que os dois trabalharam a vida toda e não tiveram nada. A única coisa de que eles podiam se orgulhar era de sua honestidade e dignidade.

- Psiu!
- Quem?
- Psiu!
- Quem é? Túlio olha para a linha paralela a sua. Nela estava um vagão velho que outrora fora usado para transportar suco de laranja de Boquim para Aracaju. As portas do vagão estavam abertas, contudo, seu interior era muito escuro, nada se podia ver. Túlio corajosamente caminha para o vagão.
- Pare aí moço!
- Por favor, eu não tenho nada!
- Que é isso rapaz, não sou bandido não! Túlio por um instante se acalmou.
- Venha aqui moço! Túlio subiu no vagão. Este estava muito escuro, ninguém podia ser visto ali.
- Fique aí mesmo rapaz! Túlio voltou a ficar nervoso: “Epa, acho que estou em apuros”. Pensou o jovem vendedor de peças para auto.
- Qual é o número de sua identidade?
- Que é isso moço? Ninguém dá esse número assim não.
- O cpf também!
- Quem é o senhor? Uma nuvem de fumaça na forma de caracol precedeu a resposta a pergunta do rapaz.
- Moço, os romanos diziam que tudo tinha que ser escrito e documentado. O estado de direito é o estado da papelada ou da burocracia. Você sabia que isso dá muito dinheiro e gera muitos empregos em todo o mundo? O jovem aracajuano estudou muito pouco para entender essas coisas, no entanto, Túlio se interessou pela história da misteriosa criatura do vagão.
- O moço podia sair daí, digo, do escuro, para que eu possa vê-lo?
- A falta de simetria social e de leis mais justas para todos é a causa das mazelas sociais. A burocracia é um instrumento de exclusão social em muitas realidades estatais espalhadas por todo o mundo.
- O amigo pode me dar só um pouquinho de sua atenção?
- Moço, a burocracia quer dizer também controle sobre a sociedade. A realidade social é a soma de todos os seus fenômenos. São eles que mostram suas leis, atributos e marcas distintivas e individualizantes.
- O amigo poderia se mostrar para que eu o veja. Repetiu Túlio. O interior do vagão era escuro, muito escuro. Túlio não sabia o que procurar. Ele ouvia uma voz fina de homem. A voz o remetia a imagem de um cidadão de estatura média, em boas condições físicas; o homem usava cabelo partido no meio. “Quem?” Túlio pensou ao ouvir a voz novamente. O escuro do vagão não dava chances a Túlio de encontrar a fonte da voz. Mais uma vez o homem fala:
- Todos nós viemos para cá há muito tempo atrás. Nossa comunidade cresceu entre esses trilhos. Vimos muitos trens partirem cheios de popa de suco de laranja para outros estados do Brasil. O tempo quase desativou tudo. Agora os sonhos do trilho estão menores. A estação está muito solitária.
- O amigo quer dizer o que?
- O movimento das coisas nessa época permitia o uso de uma maior rede. Todo o lugar hoje tem trilhos. Quando estes faltam, coisa rara aqui e ali, como dizia o camarada russo da linguagem; criou-se, por aqui, uma teia discursiva. Os elos ou os nós estão em relação simétrica com o outro. A simetria de uma teia de aranha entre suas redes e fios, ou fios com fios, em permanente equidistância devia ser inspiração para o estado, embora possam existir as diferenças, e outras áreas de permanente tensão, a redes das aranhas se renovam, exatamente, nos ditos pontos de tensão e com elas evoluem as sociedades.
- Moço, por que sua pessoa não aparece, essa conversa está sem sentido.
- Moço sem os documentos você não existe. Um dia tive um sonho que o homem virava papel. A humanidade inteira era um texto de infinitas probabilidades de tecer um caminho. Túlio perdeu a paciência e iniciou uma varredura no vagão. “Nada meu Deus!” “Será que estou a ouvir vozes?”
- Calma! Já vou.
- Como é seu nome moço?
- Bem, bem desde que me entendo por gente, me chamam de “Ela”. Túlio dá uma risada. A voz retorna um tanto irritada:
- Moço, olha o respeito aí!
- Que respeito, rapaz!
- Bem Eu sou Ela.
- E eu sou Ele. Disse Túlio. Os dois riram sem nunca terem se visto.
- Já vou. Disse a voz novamente.
- Já vou disse Túlio.
Túlio voltou para os trilhos. Ele ficou sem entender a experiência que acabara de ter.

O casal seguia sua vida. Têca e Túlio viviam como Deus queria. No final do ano sempre tinha um churrasquinho de linguiça com carnes variadas com muita cerveja. Isso exigia que se escolhesse o final de semana, pois, o dinheiro não dava para muita coisa. O casal se aposentou. Os sobrinhos de Têca gostavam de visitar a casa. Um dia, os aposentados descobriram uma coisa: “Há um ninho de aranha no quarto dos fundos, Túlio?” “O que, meu bem!” “ Teias de aranha por todo o quarto; a vizinhança está reclamando das aranhas”.
Túlio foi ver as aranhas. Havia aranhas filhotes, e outras grandes, digo, enormes. O quarto estava, realmente, tomado pelo mundo aracnídeo!
- Meu amor o que é isso?
- Aranhas!
- Aranhas!
- Chamem os bombeiros!
- As aranhas estão mordendo!
- Isso! E agora?
- O que houve?

O processo de urbanização em decorrência do crescimento da economia devido o capital industrial exigiu ocupar todos os espaços urbanos disponíveis. As aranhas ficaram inquilinas. O inquilinato para as caranguejeiras é uma experiência não muito bem entendida. Esses animais não se conformam com a falta de espaço. As caranguejeiras invadiram garagens, e residências, a população chamou as autoridades.

- Aqui é a Tevê Fontinha falando diretamente de Aracaju no Siqueira Campos: “A invasão das caranguejeiras”. “Esse é um problema que a nova cidade tem que resolver”.
Túlio e sua mulher se aposentaram com 100% do salário mínimo. Têca e Túlio, já no fim de suas vidas diziam: “O trabalho transforma realidades”. A comunidade do Siqueira aprendeu a viver junto das aranhas. Vez ou outra uma faz uma arte em alguém.

domingo, 6 de outubro de 2013

jerson e sua amiga baleia



JERSON E SUA AMIGA BALEIA

Dizem que os bichos não deviam ter um nome, deveriam ser chamados de bichos apenas. Pois! Meus amigos, no sertão os bichos não têm apenas têm nome; eles têm, mesmo é alma...

Gérson era um menino de dez anos que se criava calmamente com seus pais até o dia que ele encontrou uma cachorra abandonada, próximo a Rodoviária de Tobias Barreto. “Olha papai a cachorrinha!” “Gérson, você me promete que se eu pegar essa cachorra e criar você vai tirar boas notas?” “Prometo pai, prometo; Juro, por tudo que é sagrado, que vou ser o menino mais comportado do quinto ano”. De fato Gérson depois que sua mãe, Dona Ximenes faleceu, o menino se tornou rebelde. As professoras da Escola Álvaro Alves de Matos não sabia mais o que fazer. Os funcionários e professores traziam todos os dias reclamações para a diretora: “Gérson, não copia a lição, não faz o dever, e passa o tempo todo com o celular”. “Gérson jogou o rolo de papel higiênico dentro do vaso sanitário”. “Gérson quebrou a descarga”. “Gérson estava ameaçando os colegas com um estilete”. A diretora Maria Padilha já havia pedido ao Padre Figueiredo para rezar uma missa na escola. Na ocasião, os alunos se confessaram menos Gérson.       Depois da cachorra baleia, a história mudou. “Mas, gente, Gérson está um primor de criança, faz os deveres, copia os assuntos, e presta atenção à aula inteira. Esse ano ele passa, mesmo”. Disse sorridente a professora, psicopedagoga Tereza de Zé do Requeijão. A diretora Padilha não mais recebera reclamações do menino, pois, Gérson estava regenerado. “Graças a Deus, menos um a dar trabalho!”
Só tinha um problema; algo muito estranho estava acontecendo em casa. Rodriguinho de Miguel estava muito preocupado com a amizade de seu filho e a cachorra baleia. A princípio, o homem não via nada, mas, depois que ele viu a cachorra sentada na cadeira junto com seu filho fazendo a lição o homem ficou apavorado. No sertão, é preciso fé para crer, mas, baleia era a melhor professora do mundo! Gérson aprendeu a conversar com ela, ou melhor, ela aprendeu a conversar com a criança. Tudo começou numa tarde de chuva. O menino escorregou na calçada e se machucou com a queda. A cachorra correu rápido e latiu três vezes balançando o rabo na vertical e depois esticando os pelos como se fosse um gato quando leva um choque. Rodriguinho achou aquilo estranho e procurou pelo filho. Logo viu que ele chorava muito e o socorreu. Gérson machucou o tornozelo e ficou sem caminhar uns dias. Daí em diante, qualquer coisa que o menino precisava a cachorra achava um jeito de avisar.
Certa noite, Gérson teve um pesadelo, a cachorra foi acordar Rodriguinho, ela lambia o homem e latia. A resistência de Rodriguinho não resistiu à insistência da cadela vira lata. Ao chegar ao quarto do garoto, ele estava suado e em estado de choque. Coisas como essas aconteceram, mas, não se comparam as aulas que a cachorra passou a dar ao garoto. A cadela sabia matemática, álgebra, inglês, história, geografia, ciências, sociedade e cultura, língua portuguesa e ainda ensinava muito bem alguns passos de capoeira. O segredo foi mantido pela família. Contudo em Campos, nada fica escondido.
- Verdade que a cachorro de Gérson é espiritada?
- Mulher, eu ouvi dizer, sabe, mas, não provo. Você sabe alguma coisa?
- Pois, estão falando na rua que pegaram o menino conversando sobre teologia com o animal. Isso é um absurdo, nunca se viu uma coisa dessas no mundo. Isso é coisa do diabo!
Depois dos comentários, Gérson não mais podia sair com seu bicho na rua que o povo jogava pedra. “Olha a cachorra espiritada!” As pedradas eram muitas, todavia, a paciência do menino era grande.
- Pai, por que o povo não gosta de baleia?
- Meu filho, o povo não gosta do que estranha.
-Não entendi pai! Diz aí baleia o que meu pai falou! A cachorra, com dois latidos curtos, pediu licença e depois abriu a boca a latir. Pouco tempo depois, Gérson disse: “Baleia falou que é preconceito contra os animais”. Seu pai arregalou os olhos e pensou consigo: “Acho que vou morar em Aracaju”.
Rodriguinho fez de tudo para morar na capital sergipana. A sorte não bateu a sua porta. Gerson crescia e com o tempo ficava mais íntimo de baleia. A cachorra baleia foi encontrada abandonada no centro da cidade. No começo, era uma cachorra normal. Tinha suas cachorradas, mas, somando o bom e subtraindo o ruim, ela foi uma cachorra nota dez. Baleia tinha o canto certo de fazer as necessidades – o jardim da praça que ficava defronte sua casa. Aquele era um lugar conhecido há anos. E tomava banho a cada três dias. O calor do sertão é muito. Baleia e Gérson estavam estudando para o vestibular de direito. A cadela estava muito sabida, conhecia o código penal, civil e outras coisas. A família assombrada estava reunida na tardinha do dia vinte três de agosto, quando Arquimedes chegou em um carro cinza prata; era um gol. “Sou do jornal coluna da verdade, gostaríamos de falar com vosso filho”. Chamaram Gérson que veio acompanhado de sua amiga leal baleia.
- Como é entender o que um animal pensa?
- Sei não.
- Digo, como é que você sabe o que ela quer, pensa ou diz?
-Quando ela me dava aulas de matemática, ela me dizia para ter cuidado com a leitura dos enunciados. Nunca me esqueço da primeira vez: “Menino, “e” pode ser mais em um cálculo de adição”. Isso revolucionou minha aprendizagem na época, logo quando ela veio morar comigo.
Depois do jornal coluna, vieram outros dois jornais, e por último, o do Rio de Janeiro. Gérson e baleia ficaram famosos subitamente. A Universidade de São Paulo fez um projeto de pesquisa sobre a relação do menino e o animal. Após alguns anos de estudo eles descobriram que era algum tipo de charlatanismo, porque a criança poderia aprender tudo sozinha. Os livros estavam em sua posse. No entanto, pareceram sem explicação algumas comunicações objetivas entre menino e a cachorra, mas, o fenômeno ficou sem explicação. Levaram Gérson para o departamento de psiquiatria de uma universidade americana, a cachorra foi estudada e o menino também, nada a psiquiatria conseguiu provar. Por fim, levaram os dois para o centro espírita ‘caridade é caridade’. “O animal tem um obsessor!” “Como?” Perguntou Rodriguinho. “Em outras vidas o animal foi gente”. “Como, moço?” “Eh, nós acreditamos que a cachorra foi gente em outra vida e ela está levando uma vida de cachorra porque merece e escolheu isso”. “Sei”. Rodriguinho parou de perguntar para ouvir a história toda.

“Baleia, em outra encarnação morava em Paris. Seus pais moraram com ela até ela concluir os estudos. Depois de formada Susana foi morar na França. Por motivos que não foram explicados ela começou atropelar os cachorros que visse nas ruas. Foram muitos os animais que matou. Houve outros que ficaram deficientes. Depois do desencarne vítima de uma doença de cachorro, Susana reencarna na forma de cachorra”. Rodriguinho, para, pensa e deduz: “Baleia é Susana!” “Quer dizer que meu filho está com a amizade com uma dona”. “Mas, o corpo é de cachorra!”
O tempo foi passando e com isso o amor de Gérson pelo animal ficava maior. Uma manhã de domingo, baleia amanhece doente. Gérson logo descobre e a leva ao veterinário na clínica “trate o seu cão como um anjo”. Foram descobertos três tumores no abdômen de baleia. A cirurgia foi marcada para semana seguinte. Na terça feira, às seis da tarde baleia é operada e falece. Seu coração idoso não suportou ao processo cirúrgico. Gérson entrou em depressão. Se o moço, embora sabido, não se dava com gente, depois da morte de sua amiga, ele se calou de vez.
- Gérson, meu sentimentos por baleia.
- Gérson, baleia agora está num lugar melhor.
- Gerson, baleia está descansando na sepultura.
- Gerson, disseram-me que viram baleia no centro espírita ‘caboclo pode tudo’.
-Gerson, está melhor? Vamos tomar uma? Gérson não se convencia por nada. Em sua mente estava a imagem da mulher de sua vida – baleia.

Os anos passaram. Gérson desde a morte de baleia nunca namorou. Deu umas paqueradas, mas, nada sério. Era nove da noite de domingo; Gérson vinha da igreja. O rapaz resolveu esquecer baleia se lembrando de Deus. No meio do caminho vinha uma moça morena clara com óculos de ler grossos caminhando em sua direção. A moça segurava alguns livros na mão. Gérson, acha esquisita a moça e a aborda para uma conversa.
- Oi!
- Oi!
- Meu nome é Gérson. E o seu?
- O meu é Marta.
- Você me dar um minuto de sua atenção?
- Sim, pois não. A menina achou estranha a abordagem, mas, Gérson era um rapaz simpático.
- Olha, não me ache esquisito; eu acho que você está doente.
- Como rapaz? Você está doido!
- Não! É porque eu senti o cheiro!
- Vá pra lá moço! Respeite-me, por favor! A menina saiu muito zangada da presença de Gérson. E assim foi até ele envelhecer. Já velho Gérson decide fazer o que sempre quis fazer; quando era lua cheia, o velho Gérson latia, latia até se cansar...