sexta-feira, 27 de setembro de 2013

VIDA DOCE VIDA

Quando eu era criança eu nem percebia que o tempo passava. Eu via que as pessoas construíam casas, compravam carros, sítios e outras coisas; via até que elas iam mudando a aparência; elas envelheciam. Um dia fui visitar minha vó que morava num povoado muito distante da sede do município. A pobrezinha mal conseguia falar, e nem se lembrava de mim, mas, justiça seja feita, ela teve oito filhos e cada um fez família e o que teve menos filho, foi Teodolito, que Deus o tenha, o tifo o pegou e o levou para o lar eterno. O encontro com aquela velha senhora que não significava muito para mim, pois, convivemos muito pouco, e ela num era de muita conversa foi um tanto entediada. Eu ouvia a conversa dos adultos, não entendia muito que eles diziam; na verdade eu gostava mesmo era de brincar com os primos, mas, infelizmente naquele dia nenhum deles estava lá. Meus pais se despediram da vovó e disseram: “Vai Raimundo Nonato dá um beijo na tua vó!” Eu os obedeci, mas, a velha fedia a virilha mal lavada. Eu disse segurando na mão de minha mãe: “Adeus vovó!” A velha levantou a mãozinha acenando para mim com um olhar desfocado. Essa foi a última vez que a vi.

Um dia eu presenciei algo que ficou na minha cabeça por muito tempo. Eu gostava muito do meu velho, mas, odiava quando ele me levava para “rinha”. Ele era viciado em briga de galo, uma vez apostou o carro, um Ford 66, mas o perdeu; seu galo caiu defronte uma torcida fanática que apostara no famoso “galo de seu Antônio”; meu pai havia treinado o seu Jiló, mas, o Jilozinho não suportou três rodadas e virou frango assado. Nesse dia ele brigou com minha mãe: “Mulher, o feijão está sem sal!” “Já pensou comer feijão desse jeito!” Eles não brigavam muito, mas de vez em quando, eles tinham algumas briguinhas.

O tempo foi passando, e meus irmãos mais velhos foram saindo de casa. Aos dez anos ganhei uma calça faroeste legítima, e uma camisa que tinha um jacaré no lado esquerdo bem no peito. Eu adorava vestir aquela roupa, mas, minha mãe era cuidadosa e econômica, ela dizia: “Essa não!” “Vista a bermuda marrom, pois, essa roupa é para as festas!” Quando ela dizia festas, eu me perguntava que festa; toda vez que os dois saíam; eu ficava só. Meu irmão mais velho já era casado, o outro tinha uma namorada, minha irmã, a mais velha vai das mulheres havia ido estudar em Aracaju, então, sobrava para mim a velha televisão e o gato, que, aliás, enquanto viveu, foi um bom amigo. Eu o enterrei no quintal e encomendei sua alma ao céu dos gatos.

Enquanto minha pessoa crescia, eu observava o costume do povo, não sei por que razão, mas, eu achava os costumes de minha terra uma tolice. Sentar na calçada para falar qualquer coisa, depois comer e em seguida voltar para a calçada, e depois comer novamente, e voltar para a calçada, finalmente, chegava a hora de dormir, contudo, quando havia qualquer movimento, dava para se ouvir o estalo da janela ou da porta de alguém. Essa era a vida do povo de Campos de Rio Real.

Na adolescência tive uma namorada, sua imagem permanece até hoje na minha cabeça. Dulce era doce como mel. Ela foi um consolo em minha vida após a morte de meu pai; meu velho resolveu, de uma hora para outra, fazer exercícios; deu uma carreira, e o coração quase saiu pela a boca. O enfarto foi fulminante. Dulce esteve comigo o tempo inteiro. Todavia nossas vidas tinha que tomar rumos diferentes; ela queria de todo gosto ser missionária transcultural; eu por outro lado, gostava de vender e comprar coisas. Tornei-me um comerciante; vivi o quanto pude de minha lojinha que ficava próxima ao Banco do Sucesso. Um dia desses, me disseram que esse banco quebrou; rapaz, eu fiquei muito triste; ele era um banco tão bom.

Meus irmãos se espalharam pelo mundo, eu fiquei na minha terra. No Natal, toda a família se reunia para comemorar. Aquele era o momento de nos abraçarmos, contarmos nossas vantagens. “Raimundo, minha criação de cavalo tá dando; rapaz, eu nunca vi coisa tão boa para se ganhar dinheiro!” “Raimundo, como vai a lojinha?” O Natal era assim, uma mistura de vaidade e de saudade dos tempos bons que vivemos. Depois cada um ia para seu mundo, e, eu para o meu. Casei, tive dois filhos, minha mulher Clarice, teve um derrame aos quarenta e sete anos; mas, graças a Deus, não lhe faltou nada durante o período em que ela ficou entrevada na cama. No dia do seu enterro, choveu muito em Campos, tivemos que esperar os parentes que vinham de longe. O cortejo na Avenida Sete de Junho foi muito grande, éramos conhecidos por todos, todavia, em Campos, muita gente vai para o enterro dos outro por “solidariedade cristã”. Isso virou tradição, você dá pêsames a alguém que não tem nenhum laço de afeto com você, mas, costume é sempre costume.

Minha menina era a cara da mãe. A danada era sabida desde o primário. Gostava muito de estudar, por isso, eu a matriculei no Colégio Monsenhor, a melhor escola para a sociedade local. Ela se formou professora e, quando chegou à política, eu pedi ao meu compadre para arranjar para ela uma vaga de professora numa escola pública. Hoje graças a Deus ela já está quase se aposentando. Nunca tive contrariedade com o meu menino Raimundo Filho. Ela passou a me ajudar na loja; pensei até que ele seguiria o ramo, pois, o danado não abriu uma farmácia. Em Campos, o que mais dá é cama, mesa e banho, bar, e farmácia. Meu negócio num era nenhum desses, o meu comercio era vender artigos para presentes. Com isso vivi, e agora com oitenta anos estou esperando a danada chegar. Fiz até um contrato com uma funerária que, segundo o povo, faz maquiagem no defunto.

- Raimundo!

- Para de conversar! Entra! Num tá vendo que tá serenando?

- Já vou mulher! Olha meu amigo foi muito bom prosear com sua pessoa. Mas, como é seu nome mesmo?

- Raimundo Nonato.

- Oxente! Então, você é meu xará.

- E num é rapaz!

- Raimundo, eu num disse que você viesse para dentro? Rapaz para de falar sozinho, e vem dormir!

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A colagem surrealista nas aulas de Sociologia II

Cotidianamente nos deparamos com uma quantidade infindável de pontos de vista. Em se tratando do contexto atual no qual as culturas extrapolam com maior velocidade os domínios circunscritos de suas fronteiras, é inevitável encontrarmos uma pluralidade de concepções de mundo formando uma cultura múltipla. As trocas estabelecidas principalmente pelos novos meios de comunicação têm propiciado isso.

Porém, paralelo a essa miscelânea de infinitas identidades e de culturas oriundas de todas as partes do planeta, encontramos formas de preconceitos e de segregações bastante marcantes em nosso dia a dia. Os mesmos meios de comunicação que projetam várias culturas, são os mesmos que são gerenciados e comandados por setores dominantes que buscam a partir desses meios, impor seus pontos de vista.

Ao mesmo tempo em que os discentes se vêem educados por esses meios de comunicação, sendo apresentados a uma diversidade de culturas e submetidos a discursos tendenciosos; o ambiente educacional não permite o convívio com a diversidade e peca em se preocupar em ensinar ao aluno um modelo de conhecimento, não permitindo que esse aluno crie sentido e produza novos conhecimentos.

Este texto se propõe a mostrar como a Sociologia no ensino básico, através dos conteúdos referentes à cultura, pode permitir com que os discentes atinjam de forma crítica um olhar acerca da diversidade e do poder contido na sociedade a partir das colagens surrealistas. Além disso, mostrar a possibilidade de fazer do ambiente escolar, um espaço voltado para a autonomia e para a liberdade dos alunos.

Quando eu uso o termo crítico, eu estou me referindo a um posicionamento consciente do discente acerca da sociedade e do mundo em que vive. Ter criticidade significa possuir capacidade de pensar de forma autônoma. Para que essa autonomia seja concretizada, é imprescindível que o ambiente escolar estimule a liberdade do pensamento para que o aluno seja capaz de criar seu próprio ponto de vista.

A Sociologia foi escolhida como a disciplina para efetuar essa aplicação das colagens surrealistas, primeiro por que atuo como professor nessa área, além de ter formação acadêmica nela; segundo por que a sociologia tem como objetivo provocar uma mudança de olhar acerca da sociedade, tornando esse olhar mais crítico. Além disso, ela busca provocar o exercício da convivência com a diversidade.

A escolha referente à cultura se deve ao fato dela não só ser marcada por essa diversidade por ser resultante das trocas estabelecidas entre diversos povos e diversos meios sociais; como também a cultura passa pelos processos sociais dissociativos como os conflitos, os quais são provenientes da relação que a cultura também estabelece com as diversas formas de poder instituídas na sociedade.

As colagens surrealistas são importantes como estratégias nos conteúdos referentes à cultura, pois como esses conteúdos trazem de forma recorrente em sala de aula as discussões acerca da diversidade e do poder, com as colagens surrealistas essas discussões podem ser visualizadas enquanto prática nas dinâmicas propostas no ambiente escolar ao fazermos usos delas nas aulas de Sociologia.

Como a colagem surrealista tem o objetivo de provocar o estranhamento do sujeito a partir do instante em que ela favorece o deslocamento das imagens ou de qualquer espécie de texto, retirando-os de seus sentidos originários, através dos recortes, no omento em que esses recortes forem feitos pelos discentes, eles mesmos vão combinar os sentidos da forma que eles quiserem.

Ao fazerem suas próprias combinações, a diversidade e o poder são visualizados, pois no momento em que os discentes fazem suas próprias colagens, perceberão que cada colega manifestou sua opinião de forma diferente. Ao perceberem que os discursos podem ser desmontados, reconhecerão que não existe um discurso “verdadeiro”, notando com isso, as relações de poder existentes na cultura.

Levando-se em conta que a Sociologia, assim como a educação em geral, precisa estimular o senso crítico do discente, é notório que a colagem surrealista, além de revelar na prática a diversidade e o poder contidos na cultura, abre caminhos para a prática da liberdade e da autonomia do discente; podendo fazer da Sociologia uma disciplina emancipatória e não reduzida a meras transmissões conceituais.

Acredito que este tema pode garantir mais uma alternativa para que o aluno enquanto um ator integrado à sociedade possa repensar o seu olhar em relação à diferença, encontrando assim, um novo caminho para exercitar seu convívio com o outro, construindo com isso, um olhar mais altero. Essa alteridade pode ser um caminho para se romper com a intolerância, encontrando estratégias de respeito com o outro.

Além disso, o discente enquanto ator social pode passar a suspeitar de certos discursos ideológicos trazidos pelos meios de comunicação, deixando de vê-los como algo “natural” e “absoluto”. Isso é de significativa importância, visto que a sociedade marcada pelo anseio da cidadania pede a esse indivíduo o exercício da participação política e da consciência de suas reivindicações enquanto sujeito ativo na esfera pública.

Fazendo uma análise mais fecunda acerca desse tema, o ambiente acadêmico pode rever sua posição acerca do papel da Sociologia no ensino médio o qual tem ainda se limitado aos conceitos. Com o uso da colagem, os educadores e pesquisadores poderão observar que ela pode contribuir para uma inovação na dinâmica da disciplina, assim como perceberem que a finalidade da disciplina pode ser realizada.