sábado, 20 de setembro de 2014

ANGUSTIA DOCENTE III

MENTALIDADES DE UMA LOCALIDADE

O que mais caracteriza o homem contemporâneo é sua pluralidade de papeis. Seus personagens são tão diversos quanto as histórias por ele escritas. Meu caro Souza, mais uma vez discorro sobre o sujeito educando. Este é um personagem multifacetado, um homem chamado para a representação de mundo. Este homem construído pelo fluído social é, sem a menor dúvida, uma representação interna de uma realidade externa. A materialização do mundo externo em suas entranhas psíquicas ocorre via condicionamentos em um primeiro turno. Somos engendrados no meio onde nos encontramos e esse exerce força coercitiva sobre nós de tal sorte que nos tornamos um com o meio e não percebemos.
Adquirimos peculiaridades comuns ao ambiente físico como o ajustamento orgânico às determinantes climáticas, nutricionais, barométricas, e outras. O saber humano já comprovou sobejamente essa premissa. Da mesma forma, o ambiente psicológico, psíquico, ou simplesmente, o ambiente cultural exerce uma força tão poderosa quanto as forças materiais da natureza. O homem, podemos dizer, é matéria bruta e espírito moldado, ou lapidado pela potente força da cultura.
Não se pode desconsiderar a ação construtora da educação informal. Essa foi e ainda é a mais poderosa forma de educação humana. O que aprendemos na escola pode até ser em qualidade acadêmica algo melhor do que aprendemos em casa ou com os amigos. Contudo, somos construídos pela informalidade da educação carreada pelas relações primárias do lar, e pelas relações secundarias e terciárias das ruas, becos, praças, etc., de nossa localidade. Foi no lar que nos tornamos sujeitos do discurso, ou sujeitos falantes. Ninguém pode questionar a riqueza desse aprendizado que ocorre na escola do lar. O ser falante é produto da educação informal e assistemática.
É esse sujeito, forjado nas chamas do calor familiar, que se apresenta a nós educadores na frieza da escola convencional. Esse sujeito, como um dente necrosado, é arrancado da educação informal para durante grande parte sua vida aprender os arcanos da civilização humana. Aqui, meu caro Souza, se encontra a mais recente de minhas angustias.
A escola é uma instituição que não se adequa às exigências de uma prática docente revolucionária como diria o nosso irmão Freire. Em nosso país, a sociedade não decide o que seus filhos devem estudar, e isso aumenta ainda mais o fosso entre o lar e a escola. O choque entre os dois sistemas é, sobretudo, perturbador para aquele que inicia a senda escolar.
A escola pública não parece ser tão pública, pois, o que vemos nela são os interesses de uma classe social sobre as demais. Assim, o público é demasiadamente interesse privado. Desde a formação dos mestres, passando pelos conteúdos das grades até a aulinha do dia-a-dia encontramos marcas nítidas de interesses hegemônicos na educação pública do sertão do Brasil.
A ideia de formação do sujeito, ou de educação do sujeito surge das necessidades da classe mais forte e do interesse de controle pelo estado. Alguém, um dia disse: “Quando a educação forma e controla o sujeito, ela lhe impõe uma concepção de realidade”. Meu caro Souza, não existe realidade humana que não seja produzida pelo homem, exceto, os acidentes ou as contingências, mesmo assim, as contingências podem ser indiretamente resultados das ações dos homens. Fora isso, só existe a natureza. Infelizmente, ninguém escapa do controle do outro. Parece que nossa espécie se especializou no domínio das populações. A base de nossa civilização está aí – o controle.
A educação seja formal ou informal cria “mentalidades”, e estas são representações, sobretudo, psíquicas de nossa cultura local. Vejamos o caso do aluno X da Escola Municipal de Ensino Fundamental Álvaro Alves de Matos. O aluno tem 8 anos de idade e nele encontramos, de forma bem viva, embriões da mentalidade presente no comportamento e discurso dos adultos da mesma localidade. O aluno X foi abordado pelo professor sobre o dever de casa. O aluno respondeu ao professor dizendo que não o fez porque estava doente. Seu colega, de imediato, meteu-se na conversa e disse que era mentira. De fato era mentira. Deparamo-nos com pequeninos que fornicam, mentem, trapaceiam, subornam, roubam, se intrometem nos assuntos alheios, e externam um grande prazer no fracasso do outro. O conjunto formado por essas ideias mentais e outras é o que chamamos de mentalidade. A mentalidade dessa criança de 8 anos reflete a mentalidade de seus pais. Nossa educação formal não tem conseguido reelaborar essa primeira educação. A informalidade do lar foi a forma como ela foi realizada, ou seja, como um meio ambiente simbólico, um meio valorativo do mundo lhe conferiu o status de natureza. Como ocorre nas relações orgânicas. Então, a criança, ou o adulto diz: “É minha natureza”.
A macro mentalidade de uma Estado tem sua sustentação na micro mentalidade das diversas classes sociais que o constitui. Isso é o mesmo que dizer que o estado é reflexo da sociedade. O monólogo do ESTADO é sua força coercitiva sobre as sociedades e força geradora de mentalidades, por isso, o estado não está livre das educações informais. O estado cria a mentalidade que deseja e por ela é também moldado. Quando o monólogo estatal atinge as camadas de baixo capital intelectual, ele recebe o retorno de sua ação na mesma proporção e medida. As classes pobres respondem por meio de sua lógica, que na grande maioria das vezes, é como o aluno X. Se analisarmos os discursos do aluno X encontraremos as marcas do discurso do estado.
Dizendo assim, meu caro Souza, estou propondo uma análise dos discursos das diversas camadas sociais presentes na escola pública para que ganhe o status de real nossa proposição: “As mentalidades sociais são constituídas de discursos hibridizados, uns representam o discurso colonial outros representam o discurso pós-colonial e todos possuem os dois, e outros discursos que destes derivam”. Essa é, no meu olhar, a grande marca presente em nossas mentalidades. Somos mestiços na cor e na alma.
Não podemos fugir dessa proposição, pois, se os textos escritos formam uma malha discursiva, pois, são constituídos de fragmentos de outros textos, podemos inferir que todo discurso trás genes ideológicos de outros discursos, portanto, sobre nós e em nós há uma imensa malha de discursos e essa rede híbrida, ou misturada é o fluído amniótico da gestação de nossa brasilidade.
O que minha humilde pessoa chama de mentalidade é a resposta psíquica do sujeito a essa teia. A teia suscitará diferentes representações da realidade de acordo com o capital intelectual de cada localidade e de cada sujeito histórico. Tomemos por exemplo o sertanejo do Jabiberi e o sertanejo da sede do município. O primeiro processa os discursos com muito mais misticismo e fetiche do que o da capital municipal. Percebe-se que o homem do campo acredita muito mais nos discursos do estado de que os que moram em cidades maiores. Em Campos é pecado usar boné, mas, no Jabiberi, tornou-se um motivo de sanções na escola. O baixo capital intelectual favorece uma abordagem ingênua da realidade.
O sujeito educando do sertão de Campos age segundo sua mentalidade. Isso faz necessária uma educação libertadora, uma educação para a formação de novas mentalidades com vistas à autonomia do ser. O sujeito do sertão encontra-se intelectualmente na colônia, nas sesmarias e latifúndios, nas plantações de cana-de-açúcar, e criação de gado. Ora, ele representa o papel de um homem moderno, interage com as tecnologias, reage quase que mecanicamente a educação da mídia de massa; parece livre e emancipado, e, ora, ele se submete ao domínio dos senhores do gado. Ele, como um único ator, representa os diferentes papeis que lhes são apresentados pela força das relações sociais do seu cotidiano. Mas, no final, ele não tem nenhuma consciência do que fez e do que se encontra sobre ele.
A mentalidade de nosso alunado e de seus pais dificulta nossa prática pedagógica. O aluno não entende o porquê, mas, ele carrega em seu comportamento para com o estudo e o conhecimento, o mesmo desprezo que o nosso governo têm demonstrado para com o homem pobre do campo ao longo dos séculos. As atitudes de desconfiança da escola, de agressão, de indisciplina e de descaso, refletem como um segundo discurso, o que o primeiro já dizia há décadas. Esse é, portanto, um discurso híbrido. De um lado ressoa a esperança de transformações sociais via educação, de outro lado, a escola é uma tortura, sem sal, sem qualidade e, sobretudo, sem verbas. No primeiro discurso, o aluno se apresenta como um sujeito ávido pelo saber, comportado, disciplinado e zelador da escola, do outro lado, no segundo discurso, o aluno esboça violência, depreda a escola, ridiculariza a instituição sem, no entanto, perceber quais são as forças que agem em sua psiquê. Porém, ele sabe de alguma forma, que a coisa pública, em nosso país não é tão confiável.
É sabido que os discursos são construídos dentro de uma situação discursiva concreta  onde existam sujeitos lotados num determinado espaço que compartilham o mesmo código linguístico, e sob uma realidade de produção e distribuição de bens materiais. Os discursos são tão materiais quanto seus produtores e os mesmos refletem as condições sociais de seus interlocutores. O discurso é uma epifania do ser, um momento único em sua existência, portanto, o discurso não apenas exterioriza o sujeito, mas, o espelha, reflete seu modelo, sua mente. As mentalidades reproduzem o que as sucessivas gerações de seres humanos pensaram. Com isso, digo sem medo de erro: “A mentalidade nacional quanto a educação ainda é a mesma das relações coloniais”.
Meu caro Souza, não se pode descartar os condicionamentos na constituição das personalidades humanas, bem como na produção de discursos. Dizem que cada indivíduo carrega uma quantidade específica de características que o define como sujeito no mundo. Essa classificação parece um tanto arbitrária, todavia, quem não sabe que todos os humanos podem ser agrupados em categorias em um dado momento? As categorias que caracterizam o sujeito não são fixas, elas são tão voláteis ou fluídas quanto à imprevisibilidade do mesmo. O sujeito é uma surpresa para si e para o outro, um ser imprevisível e incógnito, todavia, podemos encontrar evidências de sua passagem no mundo pelas marcas de seu comportamento e de seu discurso.
Somos condicionados pela cultura; somos condicionados pelo meio físico; somos condicionados pelo meio psíquico; somos condicionados pelo meio econômico; somos condicionados pela EDUCAÇÃO; seja na forma informal, seja na forma formal. Assim, urge uma ruptura epistemológica em nossa sociedade para que surja definitivamente outra sociedade e nela outra escola. Sua pessoa diria, amigo Sousa, que esse sertanejo vive uma utopia. Mas, qual é o educador que não sonha? Tanto sua pessoa como a minha sabem que viver é sonhar.
Nossa espécie constrói por aprendizagem o que os psicólogos chamam de personalidade. Aprendemos no modelo informal, até sem querer. Aprendemos por imitação, aprendemos por condicionamentos, aprendemos por modelagem, aprendemos de todas as formas, quer queiramos ou não, nossa espécie está sempre aprendendo. Saímos na rua e voltamos para casa com mais um palavrão para nosso repertório. Quer gostemos dele ou não, o palavrão que estava na boca do OUTRO, de alguma forma passou para minha. Mesmo que eu deteste música de duplo sentido, aprendo sua letra sem querer. De repente, sem intenção consciente eu estou a cantarolar essas musiquinhas repetidas nos rádios de todo o Brasil. Há, fora de nós, algo muito maior de que nós, e nos empurra a aprender tudo que a maioria acha legítimo, mesmo contra a nossa vontade e furando nossa vigilância.
A totalidade das mentalidades é tão poderosa que domina a individual e torna o a personalidade individual um pequeno reflexo da personalidade da totalidade. Será isso um esmagamento do ser? Será isso um determinismo social irresistível?
Meu caro Souza, aqui se encontra uma das maiores contribuições do pensar existencialista. O sujeito é vontade e escolha! Embora, condicionado, seu espírito arranja uma saída para que o arbítrio humano se firme sobre a terra como a bandeira de sua individualidade. O coletivo está em nós, mas, ainda somos indivíduos que escolhem um novo caminho. Com isso, afirmo sem medo de erro, apesar dos condicionamentos, nossa capacidade de arranjar e reorganizar a estrutura de nossos discursos que os tornam discursos nunca acabados, discursos que prevê outro, discursos que serão sempre o prelúdio de uma cadeia infinita de possibilidade de arranjos discursivos; e isso, amigo das letras, nos faz sujeitos que estão para o discurso assim como a o sentido para a palavra. O sujeito é único, a matriz de todo sentido!
Dizendo isso, digo que toda e qualquer mentalidade construída historicamente pode, pela produção de novos discursos ser mudada. Na natureza tudo é transformação, e mudança. Assim como as mentalidades foram forjadas, da mesma forma elas podem ser desconstruídas. Muito mais agora que dispomos de aparelhos tecnológicos que podem acelerar o processo. Alguém disse: “Uma sociedade não se muda da noite para o dia!” Eu, humildemente, digo: “Ponha os aparelhos ideológicos da sociedade a serviço de outra mentalidade e esta mudará rapidamente”. A velha mentalidade continua porque ela é lucrativa para setores da sociedade e não porque não pode ser mudada.
A criança chega à escola com seu programa mental bem definido. O novo conhecimento poderia mudar tudo isso se o aluno rompesse a fronteira da mera descodificação dos discursos e conseguisse apreender seus sentidos. Está no analfabetismo funcional e no aletramento o apoio para a sustentação das mentalidades retrógadas ou o mentalismo chulo brasileiro. Deveria ser do interesse nacional a ruptura epistemológica das crianças do sertão.
- Olhe ali! O que você vê?
- Um mandacaru.
- O que é um mandacaru? O que eu tenho a ver com isso? Tá doido professor?
- Um mandacaru é uma cactácea que nasce nas regiões áridas e semiáridas.
- O que é isso?
- É onde você mora.
- Eu num moro no sertão não!
- Você mora no sertão de Sergipe. Na caatinga hipoxerófita.
- Eu moro no Jabiberi.
- Então, o Jabiberi é seu sertão.
- O que é que eu tenho a ver com isso? O que o senhor quer dizer?
- O mandacaru nada diz a você?
- E mandacaru fala?
- Sim, somos nós que lhe damos a voz.
- O professor é doido. Fumou droga?
- O mandacaru está incomodado com as cercas.
- Que cercas?
- Você nunca viu que daqui até a capital do município tem cercas dos dois lados?
- Nunca tinha reparado nisso não!
- Seu pai tem roça?
- Não professor o Senhor sabe que moro nas “batatas”.
- Você já viu que quem mora nas batatas não tem cercas e nem muros?
- Nunca tinha reparado não.
- Professor, ave! Que conversa chata!
- Só mais um pouco. Quem eram os donos dessas terras?
- Num sei.
- Quem são os donos agora?
- É o povo rico de Tobias.
- Tem alguém rico do povoado?
- Não.
- Pra onde foram os donos de terras daqui?
- Sei não.
- Mas, você concorda que havia?
- Certo, concordo.
- Pra onde vai o dinheiro dessas terras?
- Pra Tobias.
- E as terras não estão no povoado?
- É, mas, é assim.
- E o que tem nas terras de vocês?
- Só gado. Aqui não serve pra plantar.
- As plantas não gostam de vocês?
- Os antigos diziam que aqui não nasce nada. Só capim pra gado.
- Mas, eu plantei no meu quintal e deu de tudo. Isso é mentira dos antigos.
- E nasceu professor?
- Claro!
- Sabia não...
O diálogo acima ocorreu na verdade. Meu caro Souza, minha humilde pessoa abordou um aluno do 9° ano do ensino fundamental da escola onde sou pedagogo. Analisando o discurso do diálogo podemos inferir algumas coisas que nos levam para a mentalidade que inspira o aluno, e fazendo isso, nos deparamos com a fragilidade da educação do sertão de Campos. O nono ano é o fim da primeira fase do ensino fundamental. Um aluno do 9° ano estudou História Geral, cálculos complexos como as equações do segundo grau e quadrática. Estudou nos quatro anos Sociedade e cultura de Sergipe. Estudou uma língua estrangeira, estudou ciências físicas e biológicas. Estudou geografia natural e crítica, estudou história do Brasil, redação, língua portuguesa – sua sintaxe e morfologia, portanto, em tese, esse aluno deveria saber alguma coisa do diálogo acima, mas...
[1] Seu locus existencial:
Os enunciados abaixo visaram situar o aluno em seu lugar histórico. O discurso ocorre num lugar preciso e traz suas marcas. Quando o sujeito conscientemente não reconhece isso, as marcas surgem de outra forma, por outra via, o inconsciente. O aluno abordado não tinha consciência de seu lugar; ele é um sujeito sem lugar.
/Olhe ali! O que você vê?/ /Um mandacaru./ /O que é um mandacaru? O que eu tenho a ver com isso? Tá doido professor?/ / Um mandacaru é uma cactácea que nasce nas regiões áridas e semiáridas./ /O que é isso?/ /É onde você mora./ /Eu num moro no sertão não!/ /Você mora no sertão de Sergipe. Na caatinga hipoxerófita./ /Eu moro no Jabiberi./ /Então, o Jabiberi é sertão./
- O professor evocou para o aluno seu locus de vida. /É onde você mora./
- O aluno não tinha a consciência do mesmo. /Eu moro no Jabiberi./
- Nem tinha uma posição de enfrentamento de seus conflitos. Sua posição era de indiferença e passividade. Esse comportamento é pior que o da mentalidade do negro escravo. O negro enfrentou a escravidão de diversas formas. Havia uma consciência negra de resistência nos períodos de escravidão no Brasil.
/O que é um mandacaru? O que eu tenho a ver com isso? Tá doido professor?/ A pergunta do aluno aliada ao tom de voz empregado para fazê-la mostrou nitidamente que o aluno não se sentia parte de uma história e nem se colocava na posição de produtor de discursos. Sua postura foi passiva, dominada, domada.
O enunciado interrogativo /tá doido professor?/ nos leva a crer que o aluno viu na conversa do mestre algo fora do seu programa cotidiano. Algo fora de sua mentalidade, portanto, estava fora do que ele achava ser normal. “Normal é ninguém questionar nada, professor”. Esse é o implícito da pergunta. O implícito que o aluno não tem consciência, por isso, faz uso do termo doido para censurar a ação do mestre. Todos devem dizer que tudo deve ser como é. Não pode haver uma ruptura epistemológica no sertão. Os paradigmas devem ser sustentados como válidos eternamente. Esse é o implícito presente nos discursos.
[2] Consciência sócio econômica:
Quando uma sociedade não sabe quais são as potências que orientam e movem os seus modos de produção e distribuição de riquezas, essa sociedade está intelectualmente emburrecida, e adoentada. Esse é o quadro do sertão de Campos – um povo que não sabe quem é, nem pra que veio. Um gado amansado para o corte.
- O que é que eu tenho a ver com isso? O que o senhor quer dizer?
- O mandacaru nada diz a você?
- E mandacaru fala?
- Sim, somos nós que lhe damos a voz.
- O professor é doido. Fumou droga?
- O mandacaru está incomodado com as cercas.
- Que cercas?
- Você nunca viu que daqui até a capital do município tem cercas dos dois lados?
- Nunca tinha reparado nisso não!
Os enunciados / Nunca tinha reparado nisso não!/ / Que cercas?/ / E mandacaru fala?/ nos mostram que os modos de produção e distribuição de riquezas de uma determinada população, por mais cruéis ou contraditórios que sejam, são naturalizados pelos discursos dessa sociedade (as cercas viraram paisagem natural). Tomemos como exemplo a mão-de-obra nas Américas durante o período colonial. Produziram-se discursos que legitimaram e naturalizaram a exploração do negro e do índio pelo elemento branco. Quem dissesse o contrário, era louco ou subversivo. Meu caro Souza, muito mais que minha pessoa, sua pessoa sabe que a escola enquanto aparelho das mentalidades dominadoras é legitimadora dos discursos dos que detém os modos de produção ou daqueles que dele se beneficiam direta ou indiretamente.
[3] Consciência política:
O aluno do sertão de Campos não faz a menor ideia da lógica de funcionamento de sua cidade. Ele não percebe as relações de poder nem consegue ver a relação disso com sua realidade de vida. Ele mora nas batatas cercado de gado para corte e leite, ou seja, cercado de milhões de reais. Sua pequena comunidade é constituída de pessoas pobres que certamente seus antepassados eram os donos daquelas terras que foram compradas por comerciantes de Campos. O poder no sertão é de quem tem o gado, a terra.
/Seu pai tem roça?/ /Não professor o Senhor sabe que moro nas “batatas”./ /Você já viu que quem mora nas batatas não tem cercas e nem muros?/ Esta sequência de enunciados mostra que o aluno do nono ano não conseguia perceber seu mundo. Após 8 anos de estudos na escola pública do sertão ele não conseguia correlacionar os pares semânticos:
Roça/terra; terra/poder; batata/sem terra; sem terra/sem roça; sem roça/sem poder; batata/sem poder.
/Nunca tinha reparado não./ /Num sei./ Este par de enunciados nos remete a ação pedagógica em sala de aula. Como o aluno não é ensinado a olhar focado nas questões contraditórias da sociedade, ele não percebe nada da paisagem ao seu redor. Esse mundo para ele não existe, exceto, se o mundo dele lhe for posto por meio do discurso senso comum de seus amigos de rua ou colegas de escola, o que será muito pouco provável. A escola não discute o mundo do aluno.
/... Quem eram os donos dessas terras?/ /Quem são os donos agora?/ Por sucessivas secas e suas mazelas sociais, pelo abandono do homem do campo no sertão, as terras dessa região do Brasil ficaram baratas. Os donos de lojas, os comerciantes compraram as propriedades rurais e investiram em gado. O campo vai ficando cada vez mais deserto, e as cidades mais cheia de mão de obra barata e desqualificada. O surgimento de favelas no sertão não é mais novidade, pois, a transferência da terra rural, das mãos de seu habitante natural para o lojista e criador de gado é uma das causas desse fenômeno. Nos anos Sarney e Collor muitos pequenos proprietários rurais venderam sua propriedades para investir o dinheiro da terra na poupança. Isso foi um fiasco para muitos, e o início da violência urbana de Campos. Hoje Campos conta com uma célula do comando vermelho. Existem indivíduos que pertencem ao PCC. O crime organizado encontrou na desordem e abandono do sertão um mercado fácil de controlar e vantajoso financeiramente. “Quem são os donos dessa terra?”
[4] A ideologia do gado:
- E o que tem nas terras de vocês?
- Só gado. Aqui não serve pra plantar.
- As plantas não gostam de vocês?
- Os antigos diziam que aqui não nasce nada. Só capim pra gado.
- Mas, eu plantei no meu quintal e deu de tudo. Isso é mentira dos antigos.
- E nasceu professor?
- Claro!
- Sabia não...
Tobias Barreto é uma cidade do interior de Sergipe. Uma das mais importantes cidades sergipanas, pois, a mesma congrega poder econômico, história e tradição. A antiga Vila de Campos como a chamamos em nossos textos é a cidade natal de um dos mais importante intelectuais brasileiros: Tobias Barreto de Menezes. Campos ainda é um dos mais importantes colégio eleitoral do estado, no entanto, enfrenta, atualmente, uma guerrilha urbana associada ao narcotráfico e ao roubo de cargas e gado. Campos é a segunda cidade mais violenta do estado.
O gado chegou a essas terras entre 1599 e 1622. Está na criação de gado bovino e caprino a primeira grande força econômica de Campos. O comercio de confecção disputa com o gado a supremacia na produção de capital. Estas são as duas maiores forças econômicas da região. Contudo, não existe nas escolas públicas de Campos nenhum projeto pedagógico que situe o alunado no contexto material e econômico de sua cidade. A escola se porta ingênua, indiferente aos processos que ocorrem fora de seus muros. Foi essa a causa do comportamento do aluno do 9° ano do Povoado Jabiberi.
Se a escola não funciona, as mentalidades híbridas permanecem, e com isso o sistema de exploração, e as vantagens de uma classe sobre as demais continuam.  A escola deve ser um manancial de renovação constante da sociedade. Deve ser um fórum de discussão sobre o que queremos para as futuras gerações de brasileiros.
Meu caro Souza, eu não pretendi esgotar o assunto. Reconheço que falar sobre a educação é algo muito complexo e exige muito trabalho. Eis a aqui minhas reflexões sobre minhas angustias na docência do sertão brasileiro. Muita Paz e Luz!

A educação e o conhecimento-significado

O conhecimento é um discurso e não existe discurso sem palavras. Porém as palavras são signos lingüísticos compostos de duas partes: significante e significado. Podemos dizer que o significante é a parte física da palavra (grafia + som) enquanto o significado é o conceito trazido pelo significante. Porém, o fato de ser o conceito não quer dizer que o significado traga apenas um conceito. É por não haver só um conceito e um significado que nós nos deparamos com a chamada polissemia da linguagem.

Para tornar a coisa mais clara, farei uso de um exemplo. Certa vez a Folha de São Paulo publicou uma charge que mostrava dois políticos. Um deles justificava que um novo imposto criado seria investido exclusivamente na saúde. Ao seu lado, o outro reforçava dizendo que seria investido tim tim por tim tim. Ao final os dois políticos aparecem andando em um iate. Na comemoração pelo iate comprado com o aumento de mais um tributo imposto à sociedade, um disse: saúde. O outro levantando a taça responde: tim tim.

Acredito que com o exemplo trazido por essa charge, nós podemos observar claramente a dimensão de novos sentidos que as palavras escondem. Com isso, é claro se mostrar o quanto um significado não pode ser visto apenas como um significado que ele está representando, ou seja, apenas um conceito. Enfim, um significado não necessariamente pode ser visto como a conseqüência de um mesmo significante. As mesmas palavras podem ser alteradas dependendo da circunstância, como também da interpretação de cada um.

Pois bem: em um ato comunicativo entre duas ou mais pessoas, por exemplo, podemos perceber que não necessariamente uma mensagem pode chegar ao receptor da forma literal com que saiu do emissor. Ao me pronunciar acerca de algo, eu posso está transmitindo uma mensagem com um significado, ou seja, com um conceito, em um sentido completamente diferente do que vai ser decodificado pelo receptor. Portanto, a comunicação é um meio cheio de acidentes interpretativos.

Se eu pensar essa relação cheia de acidentes em uma sala de aula, chego a uma conclusão de que a relação entre docente e discente, assim como qualquer ato comunicativo composto por discursos costurados por palavras recheadas de inúmeras possibilidades de sentidos, não necessariamente vai chegar ao aluno da mesma forma como eu estou transmitindo. Como professor, eu não posso cobrar do aluno uma associação de sentidos semelhante à minha.

Não estou me colocando em uma posição de aceitação extrema a qualquer coisa. Sabemos que o conhecimento sistematizado e formal possui seus conceitos e que isso não deve ser negado. Porém, eu acho que a forma diferenciada com que cada aluno faz do conhecimento deve ser considerada. O saber é como um significado que a todo instante está mudando de sentidos, ou seja, está sendo re-significado por ser permeado de significantes que se transmutam em cada interpretação.

Como eu não nego a produção do conceito em sala de aula, eu penso que o professor poderia estimular o aluno a confrontar a sua interpretação produzida pelo deslocamento-significante, dialogando com o conceito-significado para com isso reinventar o seu saber. Aprender é um brinquedo que precisa ser desmontado, assim como um significado inevitavelmente é, afinal, só há produção de conhecimento quando há re-significação desse conhecimento.

Que existe um significado, isto é, um conceito para um conteúdo ninguém tem dúvida. O problema é quando não vemos que a partir do deslocamento-significante podemos chegar a acertos e novas interpretações até então impensadas. O professor se chateia e repreende o aluno por este “não entender”, mas quem disse que ele não entende? Quem disse que só de reproduções de conceitos se faz uma teoria? Quem disse que dos acidentes não se descobrem novos caminhos?

Quando eu coloquei no início a distinção entre o significante e o significado, é por que na minha opinião o ambiente educacional ainda se encontra muito preso a uma ideia de conhecimento-significado, ou seja, tende a enxergar o conceito como o fim da verdade nela mesma. A educação representa o conhecimento-significado, ou seja, o conhecimento padronizado feito de modelos definidos.

Contudo, como eu disse anteriormente, paralelo ao conceito existem significantes borbulhantes em um ato comunicativo que, de um instante para o outro, colocam esses conceitos em cheque. E é por isso que eu acho que a educação deveria se permitir ao conhecimento-significante, isto é, a um conhecimento que por mais que seja ornamentado de conceitos, também é reflexo de re-significações constantes, de polissemias inevitáveis.

É imprescindível reconhecer o conhecimento-significante, afinal, não se existem inovações no saber se não existem deslizamentos-significantes, ou seja, riscos e deslocamentos dos sentidos originais. Não existem apropriações literais dos conteúdos que são transmitidos em sala de aula. Não só a comunicação de conteúdos passa por trajetos repletos de acidentes, como um conhecimento, por ser produzido nesse ato comunicativo feito de acidentes, revela-se também como porta para o equívoco.

Conciliar-se com o conhecimento-significante faz com que a educação de fato coloque em prática a relação do aluno enquanto um ator social transformador. Só admitindo os vultos-significantes contidos nas “certezas” das coisas que possibilitaremos aos discentes perceberem a falácia de certos discursos ideológicos por fazê-los sentirem a constante desestruturação e a incessante necessidade de reestruturação das “verdades”.

Se os docentes aceitassem o conhecimento-significante, abraçariam a prática da cidadania, pois fariam os alunos mais participativos por torná-los questionadores, como os possibilitariam a reconhecer que se temos os significantes à nossa volta, é por que estamos em meio a uma diversidade de olhares, e por isso mesmo, o convívio com a diferença é importante não por que simplesmente dizem isso, mas por que inevitavelmente essa diferença existe.