sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Helena e a cigana

Helena e a cigana



Esta é uma estória não muito difícil de contar, mas com certeza você nunca a esquecerá. Recordo-me de tudo, embora, fosse minha pessoa, naquela época, muito nova. Eu morava em Sobral, no Ceará. Esta estória apavorou a cidade, pelo menos, o povo a comentou por todo o ano de 1924. Em frente a nossa casa morava um português, dono de uma padaria na Rua Aurora. Ficava bem no alto do Cruzeiro, perto da praça Dr. José Tomáz. Na verdade era a única padaria que a cidade tinha. A mulher do português sempre foi muito curiosa e por esta causa se encontrava em missões, como dizia, missões secretas em nome da moral e dos bons costumes para que as famílias de Sobral vivessem a pureza de Jesus. Seu nome era Helena de Lió, o pai dela era conhecido na redondeza como Seu Lió.



Morava na mesma rua uma cigana casada com um caixeiro viajante, este por força de sua labuta, sempre estava ausente. A mulher do português não deixava a pobre cigana viver, e havia jurado ao pé do cruzeiro da igreja que um dia fragraria a maldita no adultério. Dona Helena de Lió nunca desistia de seus objetivos e a cigana nem imaginava o que a aguardava.



Uma terça-feira à tarde chovia muito em Sobral, o ano de 1924 foi de muita água no Ceará. Sobral estava debaixo de um dilúvio; as pessoas presas em casa ou na rua sem poderem voltar. A cidade parou. Alguns místicos disserem na Praça do Arco do Triunfo que era o fim do mundo, e que o Cristo voltaria em forma de mulher, porque assim os homens o respeitariam mais.



Dona Helena caminhava rumo à porta de sua residência quando ouviu a voz rústica do marido babando de raiva:



- Mulher, vais sair neste tempo?

- Sim, vou. Disse ela em tom suave.

- Estás louca, sua desnaturada? Sair debaixo desta chuva? Replicou o velho lusitano.

- Sim, vou. E preciso de teu guarda-chuva. Acrescentou a missionária de Cristo.

- Nem pensar! Como vou à padaria ver as coisas lá? Não senhora. Meu guarda-chuva não!

- Mas, homem, como vou resolver meus problemas?

- Que problemas sua bisbilhoteira, pensas que não sei de tua reputação?



Com isso dona Helena se amargurou e trancou-se no seu quarto até a chuva passar. A danada não queria ir embora. Por volta das quatro e meia da tarde, ela se aquietou tomando a forma de um chuvisco tímido. Dona Helena pensou consigo: “É agora ou nunca”. Caminhou de ponta de pé até a porta da frente, não disse nada ao marido, ouviu apenas o som desconfortável de seu ronco grave, e foi-se à rua.



A casa da cigana ficava no oitão do cemitério dos brancos. Em Sobral havia o cemitério dos pretos e dos brancos. O Ceará é uma terra não muito simpática com o preto, a prova disto está em Sobral, a terra dos separados após a morte. A casa da pobre de Nossa Senhora de Cali, tinha as janelas, duas para ser preciso, voltadas para o cemitério cuja parede baixa dava para sua casa. Dona Helena sabia disto e com certeza usaria essa informação a seu favor. Todas as terças um moço branco de feições finas, olhos claros ia à casa da cigana, entrava pela porta da frente, ficava lá até a noitinha, hora que ele se despedia com um beijo na testa da senhora ainda na saleta de entrada. Helena sabia de tudo. A observava há tempos, contudo, nada podia provar, pois tudo não passava de especulações, era preciso o fragra. Embora as duas morassem na mesma rua, Helena nutria a idéia de observá-la de uma forma nunca feita antes: A visão de dentro do cemitério, a que dá a visão do interior da casa. Esse seria o fragra. Em vez de ficar olhando a casa à distância para ver quem entra e quem sai. Helena decidiu entrar no cemitério sem ser vista. Assim o fez, e logo dentro da terra santa, escondeu-se entra as carneiras de frente à casa da pobre de Cali. Helena disse consigo mesma: “É hoje sua P..., pois todos saberão de sua fornicação!” De repente a mulher do português padeiro escuta um psiu. Olha em sua volta e nada. Uma segunda vez, ela faz o mesmo e nada. Pensou ela consigo: “Será feitiço da maldita, feitiço de cigana?” Enquanto Helena conjeturava sobre os psius, uma forma de homem negro se aproxima de sua figura branca como pó de arroz:



- Você anda muito nervosa. Disse o velho escravo.

- Quem, eu? Você está falando comigo? Continuou Helena.

- Sim, sim senhora, falo com vosmercê.

- Você é real? Não estou sonhando? Disse a pobre Helena tonta com o que estava acontecendo.

- Tome um chá de folha de maracujá, é bom para teus nervos. Disse o velho Joaquim.

- O que fazes aqui minha filha? Continuou o velho com muita seriedade.



Helena estava com medo e não entendia o que estava acontecendo. Mesmo com resistência respondeu ao velho Babalaô.



- Estou a fragrar uma mulher sem fé, sem Deus. Disse ela resumidamente.

- E é filha. Parece que a filha tá muito ocupada com isso, né?

- É.

- Que lugar é esse minha filha? Perguntou Joaquim.

- O moço não está vendo, não! Disse Helena com muita ignorância.

- A filha não vê que os mortos estão descansando? Retornou o velho.

- Sim, é verdade, eles dormem, eu não!

- A filha acha que vai ver algo naquela casa? Perguntou Joaquim.

- Tenho certeza. Falou Helena com muita fé.



Joaquim olhou para a mulher da casa e para Helena e riu baixinho. Quando Helena virou-se para o velho, ele havia desaparecido. “Puxa, que velho rápido. Parece alma de outro mundo”. Falou Helena consigo mesma.



A tarde se amiudava e a noite ganhava forma no horizonte. O jovem havia chegado, com isso Helena dobrou a atenção nas duas janelas. Ali esteve imóvel quase sem piscar os olhos e por isso perdera a noção do tempo. A jovem senhora cigana conversava despreocupadamente com o jovem estranho, enquanto isso Helena roia suas unhas na esperança de um fragrante. Seus olhos estavam atentos às janelas quando ela ouviu um barulho de garrafa de champanhe quando a rolha explode do frasco. Ela virou-se para olhar ao redor e nada viu. Quando retorna sua atenção à janela é surpreendida com um som de chorinho, era “Jurity” de Benedito Lacerda. Helena perguntou-se: “De onde vem este som?” Saiu a jovem senhora de sua posição estratégica seguindo o toque de chorinhos vários como o de “Tocando para você” de Luis Americano. Sua curiosidade aumenta a cada passo. A pobre Helena está agora defronte a um grande Mausoléu que pertenceu à família Lepprevi de Sobral, gente muito grande. Sentada sobre uma lápide estava uma senhora de meia idade, cabelos loiros, pele de seda, e olhos azuis que doíam de se olhar. Sua boca pintada de batom vermelho escuro combinava com sua saia preta e vermelha e com a maquiagem de suas maçãs faciais. As listras eram pretas no todo vermelho do tecido de alto valor comercial. No busto havia uma peça de roupa, era uma blusa que seguia o mesmo estilo da saia. Seus sapatos eram pretos com salto alto. Suas meias eram pretas. Sua mão direita segurava uma taça do melhor champanhe francês e a outra um cigarro preso a uma cigarrilha. Agora quem cantava chorinho era Araci de Almeida, “flauta, cavaquinho e violão” e as duas mulheres se encontraram no cemitério São João Batista de Sobral.



- Oi, moça? Aonde vais? Estás perdida?

- Não, estou aqui, bem, não sei mais. Disse Helena confusa.

- Quer uma taça de champanhe?

- Não, não se meu marido sentir o cheiro me mata.

- Rá, rá, rá, rá. Riu-se a estranha e depois continuou:

- Esses homens são todos iguais. Não achas?

- Sim, bem, não sei, são.

- Tenho uma pessoa que quero que você conheça. Disse novamente a estranha.



Helena estava totalmente atônita e não entendia mais nada. Procurava olhar na direção da casa e não havia mais casa. O cemitério estava iluminado e com um som de chorinho incessante. Agora era a vez de Ernesto Nazareth com “Apanhei-te, cavaquinho”.



- Sabe moça, nós somos mulheres livres, nós duas fazemos o que queremos. Você não acha? Disse calmamente a estranha com a taça de champanhe dando uma tragada no cigarro.

- É não sei, não entendo, o que é isso? Não sei mais de nada, onde estou?

- Está onde sempre estivestes. Este é seu lugar e de todas as outras.

- Como assim? Ainda estou perdida.

- Espere um pouco e verás.

- Espere o que?

- Espere acabar o chorinho.



Agora estava tocando “Brejeiro” de Custódia Mesquita. Helena o ouviu até o lugar ser tomado por um silêncio sepulcral. A noite densa cobria todo o local não se podia mais ver nada, a casa da cigana desaparecera, e nada restava de seu antigo intento. Helena não sabia mais se ela era ela mesma. O silêncio foi quebrado bruscamente por uma risada irreverente. Rá, rá, rá, rá, rá, é mojubá! Helena vira-se em todas as direções, tenta gritar, seu grito não sai, lembra-se de Maria Santíssima, mas a reza não flui. Do meio do nada, das sombras entre as catacumbas aparece uma figura masculina cuja beleza encanta qualquer mulher.



- Oi moça, você me chamou?

- Não, acho que não. Helena sentia uma profunda vontade de tocar naquele rosto.

- Então, o que fazes aqui, esta é minha morada.

- Eu vim olhar... Bem, eu estou numa missão para desmascarar uma vagabunda.

- Que vagabunda? Todas as mulheres de minha casa são dignas. O rapaz aproximou-se de Helena e esta se abraçou com ele trocando beijos até pegar no sono.



A chuva era intensa na antiga Sobral. Suas gotas grossas acordaram a mulher do padeiro português que havia vindo ganhar a vida nessas caatingas e nunca se arrependera de ter feito isso. Helena de Lió acordara pela força da chuva. As janelas da casa da cigana estavam abertas e dentro da casa saía perfume de sândalo. Helena levantou-se da sepultura onde estava e percebeu que sua roupa estava toda amassada e aberta. Seus seios estavam de fora. Havia uma sensação de ter feito amor. Podia sentir ainda a paixão impregnada em seu corpo. Compôs-se, segue rumo ao portão passando por entre covas e sepulturas de luxo. Sentado embaixo do cruzeiro principal do cemitério estava o velho escravo cortando um pedaço de fumo de rolo.



- Lembra da música, senhora?

- Que música, moço?

- Aquela de chorinho o “Flamengo” de Jacob do Bandolim? Diga, num dá para dançar?

- Não entendo o que o senhor fala!

- Nunca pensei que seria tão bem tratado por uma ilustre dama da sociedade.

- Como? Nunca tratei ninguém mal, e o que vi, foi só um sonho.

- Os sonhos falam grandes verdades. Disse Joaquim.

- Mas são somente sonhos! Não seja impertinente.

- Bem, viva com eles, pois sem eles é difícil viver.

- Onde está a vagabunda? Continuou Joaquim.

- Que vagabunda? Todas as mulheres são dignas, cada uma tem sua razão.

- A filha não pensava isso há uns minutos atrás.

- Bem, boa tarde, moço!



Helena sumiu molhando-se na chuva que retornara subtamente. Parecia não ligar. Nunca mais a vi. Soube que ela passou a freqüentar as rodas de choro da lira da cidade. Mudou-se de rua e seu marido nunca mais teve crises de ronco. Os dois tinham um segredo. O velho do cemitério um dia me encontrou aqui em Aracaju e me falou sobre o beiço das águas e que Oxalá falaria com o povo dessa terra de Tupinambá. Mas essa é uma outra estória.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Uma poesia torta...

Olá, amigos! Como estou preparando alguns textos mais densos para as próximas postagens, resolvi dar-me o luxo de postar uma letra de música, que fiz aos 18, que já refletia um quê torto em minhas ideias, muito embora já tenha repensado várias concepções desde então.

"Se eu penso e logo sou
Mas se penso onde não sou
Quem responderá por mim
Que em folias minto à dor?
Sou um cara fino, de semblante grosso
Olho-me no espelho, e já valeu o esforço…
Quando vou embora, abro janelas e portas
Pr’aquele ser se esvair
Canso tão depressa de mim mesmo que acabei fugindo antes
De você pensar em mim
Sou um cara fácil, de difícil acesso
Olho-me no espelho, massageio egos
Fragmentados…
Acalento corações no almoço
E, no jantar, as ilusões, eu as convido à mesa
(De tirar o fôlego)
Sem argumentar e sem falar das pedras que plantei…
Pro meu amor… poder… passar…
Por isso, pense lentamente em mim
Demore-se em me amar
Mas se quiser me esquecer
Esqueça-me!
Antes de eu poder me apossar…

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Cortina fechada é hora do show.

Eu fechei o portão, entrei em casa e falei com minha mãe. Hoje não era um dia para perguntas por isso ocultei minhas respostas para todos em casa. Entrei simplesmente e tirei a bagagem que a rua me deu, logo após, encostei o céu, o tempo e o espaço no cantinho do quarto. Isso porque me desvencilhei do mistério, acudi de ficar igual a um gato, sem falar com o tempo e por sua vez com o mistério. Arrumada as coisas então fui para a cozinha ver, como todo santo dia, o que a minha mãe deixara para saciar minha fome. Canto da tela é encanto do bicho é a distração que comanda, comendo fui vendo o que os bichinhos iam dizendo do mundo, e eu rindo muito.

Cancelei o senso crítico e instalei meu plug para dançar com a endorfina, uma amiga que conheci desde da infância e hoje transamos com esmero. Afinal ontem roupas pomposas na rua da frente e hoje tecido sintético na rua laranjeiras. Ocupamos o tempo como uma lacuna que exige uma lei de recorrência. E assim é morrer nascer e pintar essa tela pitoresca a custa da preservação e com esmero transar com endorfina, falar dela e peidar na cara da moral quando ela dormir. O problema do nivelamento social deixo a cabo de super-man porque é carnaval hoje e todo sábado também é. No domingo ressaca e na semana é o rito da preservação.

Esse rito foi cancelado em mim em um dia que a patrulha circundava a vila, e tinha cheiro de sangue no ar. O menino chorando na janela retratava que a prisão da alma de alguém não se resumia apenas a muros, mas a impotência humana que a castração do desejo anuncia. Todos morreram. Agora somente o rancor e o ódio. Não se sabe mais se aqui na favela existem mocinhos ou vilões. O Anacoluto olha os corpos e por um lance senti uma pontada de frieza, pega nas tripas de um corpo caído, era o seu vizinho Henrique. Eu peguei o estomago dele porque queria sentir o meu novamente digerir sonhos e contemplar a clareza de um caminho.

Anacoluto com o dinheiro que encontrou em um barraco vazio após a batalha, após andar pelos escombros deixados pelos palhaços de armas. Pensou em seu sonho, foi até ao Grageru tomar uma cerveja em um bar dá alta sociedade Aracajuana, onde os homens de óculos se juntavam. Seu sonho era exatamente esse, si sentir importante como aqueles homens ali. Quando cheguei olhei para todos envolta, senti aquele clima de efervescência no ar e lembrei do livro que li de literatura que o Governo deu para a turma lá da escola, que falava sobre Machado de Assis. Lembrei que o livro falava dos intelectuais cariocas e como o Machado mesmo sendo mestiço como eu, conseguiu entrar no meio deles e falar com borboletas na garganta.

Engano meu, todos aqueles que nos livros pareciam ter uma preocupação com nós do lado de lá, pareciam mais os portugueses chegando às praias da Bahia me estranhando por ser um Índio. Mas tudo bem, tentei me comunicar com um deles e o rapaz me tratou com educação, porém, arranjou uma maneira de se afastar de mim rapidamente, com meia dúzia de desculpas. Poxa era a minha melhor roupa, e não travei dialogo nenhum, apesar dos livros que eu li, ratazana procura o melhor queijo, a melhor parte do bolo, a melhor vista, por isso um corpo fétido como o meu que anuncia a pobreza se convence que um fruto mesmo que doce por dentro tem na casca o seu marketing maior. Anuncio aqui e agora, irei me juntar à milícia do meu povo e pegar minhas armas, e arrancar as tripas de qualquer um que afligir meu estomago que ronca. O Brasil é o país da porrada. Se com o sangue já me acostumei o que eu perco matando um ou outro?

De preferência quero ver as tripas em minhas mãos, e como um rato que come a comida do dono enquanto dormi, vou me apoderar do que quero. As tripas e o sangue escorrendo, viver morrer, viver morrer... Meu objetivo não é arrancar lagrimas meus caros, se é o que querem pensar de mim. É na verdade, soltar o veneno que tenho em minha alma, ver os olhos pulsando de dor dos outros, para ver se encontro novamente as pessoas mortas que outrora viviam em meu barraco. E digo para aqueles ao qual provoco dor que verdadeiramente, agora, sou um homem que não pensa!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Olhar torto sobre a realidade e a ficção

Encontramo-nos diante de um momento histórico que se caracteriza pela sua vulnerabilidade e por suas incessantes mudanças. Em um contexto no qual a verdade passa a ser constantemente refutada, e o absurdo passa a ser concretizado em um mundo permeado de imprevisibilidades, é simplista demais conceber de forma dicotômica a relação entre a realidade e a ficção, como se esses universos se posicionassem apenas de forma opositiva.

O que eu percebo, é que grande parte das pessoas a quem eu já tive a oportunidade de conversar a respeito dessa relação entre a realidade e a ficção, tende a encarar a realidade como algo voltado à ciência, ao concreto, à verdade e ao visível; enquanto a ficção tende a ser concebida como algo referente à arte, ao abstrato, à mentira e ao que não pode ser verificado.

Pensar a realidade como algo meramente voltado à verdade e ao concreto, e a ficção como um universo ligado unicamente à mentira e ao abstrato, ou seja, ao que não pode ser verificável, incorre a uma série de problemas. Devemos compreender que a realidade perpassa o mundo do abstrato, assim como a ficção se encontra diretamente relacionada ao concreto. Portanto, realidade e ficção são universos entrelaçados.

Por exemplo: apesar de sua precariedade, quem é que nega a existência do Estado? Se não enxergássemos o Estado, sequer questionaríamos sobre ele. Porém, mesmo concebendo a existência do Estado, quem consegue de fato, visualizar de forma personificada o Estado? O Estado, mesmo sendo real aos nossos olhos, se faz concretizado de forma fictícia em nosso dia a dia. Ou seja: a realidade pode ser ao mesmo tempo fictícia.

Mesmo sabendo que o Estado não é algo palpável, como poderíamos buscar exigir os nossos direitos, se não tivéssemos o invisível chamado Estado? O termo Estado é uma criação. Se fôssemos educados a concebermos o que concebemos como Estado, de Pirulito, procuraríamos o Pirulito para resolver os nossos problemas, e não o Estado. Como se vê, mesmo sendo de certa forma fictício, o Estado é real.

Um escritor de literatura consegue dar vida a sua obra quando ele traz elementos oriundos da realidade que justificam a sua postura fictícia, até por que, toda obra é reflexo de um contexto. Para que o receptor consiga fazer uma leitura sobre o panorama fictício, esse autor utiliza-se de inúmeros meios que dão realidade a sua trama, sem necessariamente precisar deixar de construir uma narrativa que fuja de sua natureza fictícia.

Já um cientista não conseguiria comprovar seus dados, se ele não tivesse se utilizado de sua imaginação para criar encadeamentos capazes de dar lógica a sua perspectiva. Nenhuma verdade existiria, se antes não houvesse imaginações oriundas das fantasias de cada um. Mesmo mesclando sua imaginação com sua argumentação lógica, o cientista não deixa de construir uma teoria concebida como científica.

A realidade e a ficção implicam ao mesmo tempo, interpretações lógicas e fantasísticas. A realidade é feita de imaginações construídas por lógicas que aparentemente se concretizam, assim como a ficção é oriunda das lógicas construídas de acordo com a imaginação de cada um, imaginação essa que, só aparentemente, parece fugir da realidade. Portanto, a realidade também é ficção e a ficção também é realidade.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O torto sobretudo torto

O torto, sobretudo torto.
Em nosso site aparecem diversos tortos. Aquele que abordam temas relacionados ao direito. E a este digo: seja bem vindo. O torto que esbraveja quando alguém fala sobre fé. Este também é um bem – aventurado. O torto que está no meio do caminho entre religião e ciência, este é um feliz torto. Acredito nas idéias sejam elas quais forem. Claro que acreditar aqui é uma admiração pela capacidade humana de pensar. O que nos faz tortos é essa capacidade de manter viva uma postura crítica em um país que inibe de diversas maneiras as produções leigas. Não somos especialistas fora de nossas esferas acadêmicas, mas o torto é um atrevido de carteirinha, pois cutuca o bicho vivo de todas as formas que ele dispõe. O torto precisa ter a cabeça fria em não confundir a dureza da crítica com o pessoal. A crítica nesse lugar é esperada todas as horas, sem elas, o site torna-se insípido. Nosso torto João deve ver isso com atenção e continuar sua lida neste site. Não é nada pessoal. O torto é um cara de pau e não há problema nisso. Ninguém espere a mamãe dizer que você fez um bom dever de casa, pois nós somos víboras venenosas prontas a morder qualquer um, ou melhor, o que se diz. E o que é dizer, então?
O torto luta de diversas formas por uma originalidade de pensamento. Ele entende que o seu dito pode ser até certo ponto algo seu, portanto original, contudo não passa de um dito que pode ser de outro e de outra época. O torto entende que o discurso é sempre uma sucessão de discursos (ditos) ao longo da história do pensamento humano, e se tivermos sorte e capacidade quem sabe diremos algo novo.
O que interessa, então, é dizer com sobriedade o dito dos outros até que o dito seja um dito novo, uma luz que brilhará por algum tempo. Recentemente estudei as bases epistemológicas do pensamento freudiano. Suas descobertas foram amparadas por outros ditos, portanto, seu pensamento é uma contaminação discursiva de vários ditos. Onde está, portanto, o original? Na forma de usar os diversos ditos dentro de uma linha de raciocínio adotada pelo psicanalista. Ele falou com sobriedade os ditos alheios e os fez carne e osso em seus ensaios acadêmicos somando-os à suas abstrações e pesquisas.
Os ditos somam-se dentro de um todo discursivo que tende a dizer outro dito que pode ser dependendo do grau de abstração do pensador, algo dito pela primeira vez. E isto tende a durar por algum tempo até que outro torto o desminta. Tem algum mal aqui?
O que me chama muito à atenção é o em si na cadeia dos ditos. Os ditos inevitavelmente constituem a base de nossa subjetividade, logo, o em si, é o outro em nós, portanto, nada existe de original naquilo que chamamos de subjetividade, exceto, os traços ontogênicos ligados a cultura, e a família. Posto isso, digo que o que somos é a soma de tudo que temos consciência ou não dos ditos na cadeia discursiva dos homens.
Assim, meus caros, como já fora dito, existir precede o ser. Isso não sou eu quem o diz, é mais um dito, um dito existencialista. O que existe de original aqui são meus erros no vernáculo e a estética do meu dizer. Pobre homem que sou. Ainda não aprendi a falar partindo do meu em si. Tudo que sei é dos outros e não meu. O existencialismo me conforta quando me apresenta uma escolha no dito sobre meu existir. Posso dizer isso é fato. Posso dizer algo novo, isso também é fato, e assim quebra-se a cadeia temporariamente. Prossigo, então, rumo ao meu dito inspirando-me nos outros até que por insight, em um dado momento do meu existir, eu diga algo novo sobre o mundo. É claro que farei uso do que disponho: todos os ditos presentes no meu armário lingüístico.
O torto verdadeiro não generaliza, não cria categorias como, isso é belo, isso é feio, isso é certo, isso é errado. Afinal, estas questões ainda não foram solucionadas. Apontem-me, por favor, um belo e um feio. O não gostei, o não concordo são posições válidas para um bom torto, e eu atrevo-me a chamá-lo de torto puritano. A natureza do puritano se prende as formas, as estruturas que lhe foram colocadas pela “revelação”. Nós pobres tortos, perdidos em um mar de questões, sabemos que o ar é corrosivo assim como são as idéias.
O torto apreendeu que o sintagma é ideológico e este enquanto estrutura prima dos discursos não tem nada de ingênuo. Portanto para nós do movimento tudo se evapora pela força do ar. Tudo é idéia, é ideologia. A mais coerente de nossas afirmações se pauta na negação de tudo, até a negação de nossas afirmações.
Será o torto um estóico Pós-moderno? Não! O texto matéria etérea é uma prova disso! Os discursos da física clássica sobre o éter foram completados pela teoria atômica atual. Suas leis de nada adiantam no contexto quântico. Isso sinaliza uma reviravolta em nossos conceitos sobre matéria, tempo e espaço, as bases de todas as ciências construídas até hoje. Assim, o torto não diz que é impossível chegarmos a uma verdade sobre algo, o torto diz que a verdade é relativa, e dura enquanto outra não aparece. O resultado lógico disso é: devo refletir sobre tudo, escrever sobre tudo que tenha condições e ter humildade em não generalizar verdades que depois serão desmentidas. Isso é torto, isso é natureza, isso é razão pós-moderna. O torto adverte: Suas certezas podem ser quimeras, contos de fada, belas notícias, ditos e re-ditos que no fluxo da razão humana serão apenas gotas de água perdidas no imenso oceano chamado de filosofia. Seja um bom torto.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

De ler Kant a ter nádegas a declarar

“Teu ‘cu’ servirá de trompete”
“Há um homem ciumento em nossa vila que não o é sem causa, pois é corno de todos”

Estes versos compõem duas letras de música. Eu os deixo tentar advinhar o estilo do compositor. Forró eletrônico? Não… Quem dá mais? Pagode baiano? Não, não… Arrocha? Um pouco mais antigo que isto… Aliás, mais precisamente um pouco mais de 400 anos mais antigo.

Sim, são versos de músicas do século XVI! Dos compositores Clément Janequin (Or, vien ça vien) e Pierre Certon (La, la, la, je ne l'ose dire) respectivamente.
Pretendo, neste textículo, lamentar, de forma subjetiva, reconheço, a falta de postura torta na nossa cultura.

E o que isto tem a ver com os compositores citados? Não muito se não sabemos, por exemplo, que Janequin ao passo que compunha músicas com teor sexual quase banal, dava-se ao luxo de compor músicas sacras (ele compôs até missa!) e profanas que exaltavam o sublime. Aliás, foi um dos pioneiros da música descritiva e mostrou que além de ousar aventurar-se pelo grotesco, seu interesse lhe permitiu “narrar” musicalmente a Batalha de Marignan (1515) na canção La Guerre, uma obra sui generis. Certon, em que pese seu interesse em relatar as fofocas de sua época, também foi compositor de missas e motetos.

Aliás, passando ao hodierno, eu me lembro do último show do odiado e amado Caetano Veloso em Aracaju. Ele abriu a apresentação com uma música do Psirico, passou por “Kuduro” e ainda deu tempo de sobra para cantar as coisas sublimes de sua Bahia, músicas com teor mais crítico etc. sem exagerar em nenhuma das doses, aproximando-se, talvez, de uma situação ideal?

Um dia desses assistia ao canal francês TV5 Monde e tive a oportunidade de ver, numa mesma programação, um programa “a la Gugu” (claro que com um teor mais intelectualizado dos franceses, mas bem ingênuo, ainda assim), um programa sobre história e uma ópera.

Eu não estou propondo uma intelectualização forçada da cultura. Acredito, apenas, que ela reflete a nossa condição atual de seres. O Parangolé deve continuar com seu rebolation, mas eu creio que os seus fãs poderiam, num processo que não seria doloroso, dar espaço, também, a questões que ficam para além das nádegas. Como também alguns fãs de Chico Buarque poderiam aceitar mais abertamente que todo mundo tem rabo e que todos têm o direito de ter o tempo de pensar menos e balançá-lo mais.

Talvez assim teríamos menos ranço elitista de um lado e menos “risos da mulher da Trácia” do outro.



PS.: os versos foram traduzidos e adaptados por mim. Os originais são "ton cul servira de trompette" e "Il est un homme en not' ville qui de sa femme est jaloux.Il n'est pas jaloux sans cause, mais il est cocu de tout."

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Apolo e Dionísio no segundo tempo dos 40 min.

A cidade de Aracaju se mostra para mim com múltiplas funções. Veio no começo esse encanto primeiro, antes do corpo ir sentindo o peso do cotidiano da cidade. Esse peso para mim chegou tardio, ainda imaginava a cidade da minha infância quando vinha do semi-árido sergipano para se encantar com as luzes metropolitanas. Hoje ela se mostra elástica e ouriçada, como quem estende a mão para te afagar, mas sempre te deixando a dúvida da mão esquerda suprimida no lapso do vacilo.

Saber em quem confiar não se fala mais, o problema de fato é sentir confiança. Contemporânea de relações funcionais Aracaju, por menor que seja em relação a outras capitais do nosso país, já senti o peso das distancias. Os laços frouxos muitas vezes se sustentam pela funcionalidade ou pela empatia dos estereótipos, mas claro nunca deixando as particularidades de poder encontrar relações equivalentes em perdas e ganhos (as amizades mais saudáveis). A nossa formação niilista às vezes vacila em ver o outro como qualquer outro tipo de animal.

Quero eu reencontrar algo que nunca mais visitei, eu mesmo. E não cultivar as funcionalidades por um mero jogo de carência. Deixar a porta aberta, mas se trancar no mundo onde vou desfragmentar meu disco, reorganizar o meu mundo. Mas você meu amigo pode me perguntar o porquê dessa atitude, mas é simples: Quando um homem não se senti mais em si, ou seja, não se reconhece mais é porque existe algo nos outros que em você nunca existiu e por um capricho das “paixões” ou por outro motivo afim te jogam para a desfiguração do seu ser. A luta é para tu meu caro leitor, o desafio de equilibrar o que está dentro de você com as águas que correm, as mudanças que em ti e no seu espaço ocorrem, pois este último é extensão de você.

A grande idéia que trago, ou seja, aquilo que trago além do desabafo. É que, dentro das grandes cidades o ponto de equilíbrio não se deve ser achado no outro, mas em si mesmo. A cidade é plástica e fluida, os grandes alicerces que diziam quem era você e para onde você deve ir sumiram. Raros são os laços estreitos. E o que se passará na cabeça de um jovem cheio de incertezas e angustias? Afinal, nossa infância é castrada quer queira ou não temos que ser adultos, não é mesmo? Chegando a “rua da frente” tudo se dilui em poesia, provando que todos se parecem com o rio que escorre pro mar, horas sendo rio horas sendo mar, mas sempre em conflito porque tudo não escorre pro mesmo lugar.

Hoje só me queixo é em deixar o meu rio parar em um porto cheio de ostras bonitas e cortantes, vendo o sangue correr sem reagir. Mil desculpas para aqueles que a mim possuem apreço, não te direi que não sinto o mesmo pelos mais chegados, mas os conflitos dos meus dias são latentes.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Olhar torto sobre os estudantes universitários

Percebo comumente os estudantes universitários tecerem muitas críticas a respeito da educação brasileira. Realmente, há de convir que em se tratando do nosso ambiente educacional, faltam recursos de todas as ordens para um bom desempenho do aprendizado. Eu como professor de sociologia, poderia passar uma eternidade escrevendo as fragilidades encontradas por mim no sistema educacional brasileiro.

Pois bem: realmente a realidade da educação brasileira é um desastre. Porém, eu preciso fazer minhas críticas também a essa turminha do ensino superior. Eu sou da concepção de que a melhor revolução é aquela que se faz de dentro para fora. Acredito que, se o estudante começar a ter consciência da importância de seu papel na sociedade, ele vai conseguir encontrar estratégias viáveis para colher ouro em meio a essa lama.

Eu penso que, se os estudantes começarem a buscar se comprometer mais em suas formações, amanhã esse sistema educacional tão criticado por eles, pode se tornar menos caótico. Agora o que eu não concebo é que fique essa molecada ociosa tomando vinho e bocejando a tarde inteira sentada nas calçadas da vida reclamando da educação, do preconceito e da política sem fazer nada para que isso possa ser modificado.

Não pensem que eu sou da opinião do engajamento mortífero de que temos que abdicar de tudo para mudarmos a realidade. Sem essa. Porém, vamos convir o seguinte: o graduando universitário brasileiro tem um excesso de zueiras tão grande que chega a ser nocivo. Tudo é motivo para que essa molecada ociosa faça festa. É festa da pré-ressaca, do ressacão, da pós-ressaca, sem contar a freqüência de curtição estimulada pelo calendário brasileiro.

Se não é o dia das nossas senhoras da vida, é carnaval, é São João, é dia da mãe, do pai, do papel, do papa, do pau, da pedra, do fim do caminho, do dia da lavagem de Iemanjá, dia de Jesus Cristo, dia do bebê chorão, e por ai vai. Além disso, encontramos o péssimo hábito da falta de ritualização das coisas. Pra se curtir, têm-se todos os dias da semana. Eu pergunto: como vamos conseguir ter uma formação crítica de qualidade diante desse ritmo?

Uma boa formação exige didática e muita leitura. Como isso vai acontecer se os ociosos têm eventos para irem todos os dias? Mesmo que o aluno se planeje para estudar no dia posterior, o maluquito ou a maluquita gastou tanta energia na noite anterior, que não tem capacidade de se concentrar no outro dia. No dia que pode ter se recuperado, tem uma festinha do aniversário de dois meses da gata persa da amiga, ou mais um show para ir.

Não é minha intenção exigir um modelo comportamental, até por que eu já vivi essa realidade em meu contexto universitário. Outra coisa: eu defendo com unhas e dentes o direito do indivíduo relaxar. Já vivemos em um contexto mecanicista que insiste em submeter nossa razão, a uma racionalidade técnica; e o mínimo que podemos fazer é curtirmos, encontrarmos com nossos amigos e tomarmos nossas belas cervejadas.

O que eu estou querendo chamar atenção é que, é muito simplista cuspirmos críticas ao sistema educacional como o único responsável por toda uma má formação na escolaridade dos brasileiros, se os estudantes que cospem nesse sistema, também fazem parte do funcionamento precário das instituições educacionais, e não apenas os políticos responsáveis pela educação, os professores e os demais funcionários.

Reconheço que a situação do sistema educacional brasileiro ainda se encontra em um estágio embrionário em relação ao que nós concebemos como uma educação de qualidade, porém, mesmo estando em uma crise, temos um lugar no qual podemos trocar idéias com nossos colegas e fomentar novas discussões, além de novos projetos. Esse lugar é nada mais, nada menos, que o espaço das instituições educacionais.

Devemos exercitar um olhar torto, um olhar que rompa com a crítica unilateral, reconhecendo que, se a educação possui seus problemas, todos são responsáveis para o seu aperfeiçoamento. Ou seja: nem apenas criticando a conjuntura educacional, visto que, nós estudantes também fazemos parte do seu funcionamento; nem investindo nossas críticas apenas a nossa responsabilização, uma vez que, a conjuntura também tem seus problemas.

Faz-se necessário que sejamos capazes de criarmos projetos que surtam efeitos na realidade que tanto condenamos, e não apenas arrotando álcool e baforando cigarros o dia inteiro em botecos e festinhas, estabelecendo discursos críticos, mas sem efeitos práticos algum. O sistema educacional é uma vergonha, mas não correr atrás de melhores rumos para a educação e para a formação profissional, é vergonhoso também.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Alma negra

Alma Negra

Estávamos em um lugar bem diferente de tudo que conheci ao longo de meus quarenta e nove anos. Se era dia ou noite, não sei. O que posso dizer, com máxima certeza, era que não faltava luz, e eu não sabia de onde vinha. Por certo tempo permaneci em pé olhando para um horizonte sem fronteiras, uma imensa linha tão grande quanto a do mar, contudo, não tenho como dar referências sobre isso. Sabia que era só um sonho, nada disso podia ser verdade, eu estava em Tobias Barreto antes de me deitar. O outro ao meu lado, calado esteve a maior parte do tempo. Seu silêncio foi tão forte que me irritei com ele, e tentei tirá-lo de seu estado cataléptico.
-Oi! Disse eu com um tom falso de atenção.
-Oi! Disse ele na mesma medida.
Tentei uma outra estratégia. Tentei mostrar a beleza do lugar com frases de admiração.
-Nunca vi coisa assim! É o lugar mais lindo do mundo, cara!
-Guarde suas palavras para si. Disse o misterioso personagem.
Não liguei mais para o rapaz e fui até Fortaleza em meus pensamentos e me recordei dos velhos dias de infância. Lembrei-me da Rua Francisco Holanda na Aldeota, lugar onde morei por 11 anos. As coisas eram tão diferentes naquela época. A garotada brincava, não tinha violência, e nem drogas. Lembro-me que quando cresceu o bairro, tivemos lutas de turmas. Uma rua contra a outra, mas ninguém ficou machucado de verdade. Era tudo fantasia. Construímos certo dia, uma nave espacial, e nela a turma se esbaldava em sonhos espaciais. A lua estava ali, bem perto de nós. Também me lembrei de meu primeiro amor. Era uma menina linda. Tinha feições afiladas, bem diferentes do tipo caboclo cearense como eu. Era cândida, e cheia de afetos por mim. Foi uma curta aventura, pois pouco tempo depois, o pai dela acabou nosso romance alegando questões raciais. Tolice dele. Deus o tenha onde estiver. Por um breve momento pensei se quando eu acordasse me lembraria desse sonho, e de tudo nele. Olhei para o outro, parecia que ele sabia o que eu estava pensando. Perguntei com ignorância:
-Que foi? Por que estás me olhando dessa forma?
-Cuide de sua vida! Disse ele com olhar severo.
Retornei ao passado tão vivo em minhas lembranças. Lembrei-me da Avenida Barão de Stuart, dos amigos do condomínio. Tive uma adolescência em grande parte feliz. Fiz boas amizades e nunca me esqueci daquela época. Junior “ceguinho”, um amigo do peito. Nunca tive a chance de vê-lo novamente. Sei que está vivo, casou-se, não sei com quem, e tem filhos, não sei quantos.
O moço ao meu lado olhou-me com suspense e parou um pouco de me perscrutar os pensamentos. Subitamente, me diz: “Amigo, precisamos ir”. “Para onde?” Perguntei em seguida. Novamente, a aparência de um ser misterioso e que me provocava medo tomou forma em seu rosto. Não me importei; detive-me o resto do tempo revivendo minhas recordações. Minha mente levou-me à cidade do Recife, dias bons, dias difíceis. Parei no que fora bom, e fui direto para os braços de Risalva. Morena linda de olhos claros e cabelos ondulados do tipo cabocla. Estatura de mulher nordestina, nem alta nem baixa, no meio do caminho. Lembro-me que ela me olhou varando-me o coração com setas tão afiadas que não resisti e convidei-a para irmos ao zoológico. Foi lá que ficou um pedaço de mim. Aquele lugar era lindo, cheio de árvores frondosas e diversas espécies de animais nacionais e outros de fora. O lugar acolhia bem os namorados. Ficávamos sempre ao pé de uma árvore de tronco grosso cercada de grama. Colocávamos uma toalha e o dia parecia pequeno para nós. Foi com ela que fiz amor pela primeira vez. Não posso me esquecer jamais daquela tarde. Foi o céu mais lindo que vivi. Penetrar naquele corpo sensual depois de tanta ternura me fez muito bem, diríamos, um momento singular de felicidade. Risalva logo se foi e conheci outra pequena. Esta me fez esquecer todos os sofrimentos vividos no Recife; coisas que, no momento, prefiro esquecer. Seu nome era Marize, filha de um empresário da Bahia. Tinha olhos bem verdes, altura igual a minha 1,72 e cabelos castanhos bem claros. Sua cintura parecia de um violino apoiado sobre duas grossas colunas de mármore. Eu adorava beijar aquela boca delicada de lábios carnudos. Tempo muito bom aquele. Enquanto envolvido nestas reflexões, fui desperto pela voz pusilânime do ser que insistia em me assustar.
-Moço, está na hora, vamos!
-Para onde. Respondi com surpresa.
-Você não sabe? Ele disse em tom frio.
-Não. Eu realmente não estava entendo nada. Não sabia de que se tratava. Então, perguntei novamente, mas com cuidado:
-Moço, para onde eu deveria ir?
-Precisamos voltar. Disse o rapaz estranho.
-Voltar para onde? Retruquei.
-Para lá. O jovem apontou para uma montanha avermelhada; era a cor da luz que de lá vinha.
-Onde é aquilo? Perguntei novamente.
-Só vendo que você saberá. Disse ele de boa vontade.
Não sei o que houve comigo. Uma vontade de chorar terrível me abateu a alma quando soube que teria de sair daquele lugar. Quando terminei o pensamento, já me encontrava no lugar. Lembrei-me que tudo não passava de um sonho. Isso me tranqüilizou. Abri os olhos e acordei, eu acho. Todos estavam em casa; minha mulher trabalhava na cozinha, e as meninas Denise e Isabel estavam tomando café. Tentei me levantar, mas algo me colava à cama. “O que é isso?” Perguntei ao rapaz avermelhado. “É que você acha que acordou de seu sonho”. “Como?” Disse assustado. “Quer dizer que eu ainda estou dormindo?” “Positivo”. Concluíra o diálogo o ser horripilante. “Mas vejo todos tão nitidamente”, pensei por reflexo. O movimento da casa estava normal todas as três fazendo sua tarefa, contudo um silêncio sepulcral imperava no ambiente. Ninguém falava sobre mim, nada diziam nem de bem nem de mal. O carteiro entregou a correspondência e sussurrou alguma coisa para minha mulher; fiquei intrigado, isto nunca acontecera antes. Não conseguia mover o corpo, parecia que meus olhos apenas se moviam. Com grande esforço procurei o rapaz. Não o vi em lugar nenhum. “E agora?” Pensei com meus botões novamente. “Acho que está na hora de acordar”. O rapaz apareceu dizendo-me: “É verdade”. Fechei os olhos logo em seguida e comecei a cair no sono. Ouvi passos agitados, vozes distantes, por várias vezes ouvi alguém perguntando sobre mim. E havia uma luz prateada logo acima de mim que caía direta em meus olhos. Ela me cegava e fazia tudo em volta girar com se eu tivesse levado uma pancada na cabeça. “Souza!” Ouvi meu nome pela primeira vez. “Souza!” a voz insistiu uma segunda vez. Tentei falar algo, mas nada saía de minha boca. “Souza, sua mulher e suas filhas acabam de chegar.” “Você está na UTI do Hospital Geral de Sirilândia.” Me tranqüilizei, afinal agora sabia mais ou menos o que havia acontecido. Ouvi a voz chorosa de minha esposa dizendo-me: “Perdoe-me Souza, não morra, por favor!” As duas meninas choravam baixinho “painho”. Isso me dilacerou a alma. Meu sócio na empresa se aproximou e disse em tom sério: “Amigo, melhor é a glória eterna de que os tesouros desta terra”. Bem, meus amigos. A coisa foi engrossando até que chamaram o Pastor de nossa paróquia, Rev. Douglas. Ele discursou a mesma baboseira de sempre: “Do pó viestes, ao pó tornarás”. Confesso que tive vontade de mandá-lo para aquele lugar, porém a situação não me era favorável. “Será que estou morrendo?” “Por que não sinto dor?” O moço estranho reapareceu e logo quando o vi entrei em sono profundo. Estávamos num jardim, haviam flores lindas, espalhadas por todos os lados. A grama era tão verde que doía a vista. O rapaz começa um diálogo comigo:
-Qual o sentido da vida?
-Rapaz, sei lá! Tomar cerveja?
-Não estou brincando. Você precisa entender o que tens em jogo.
-Você pode ser mais claro!
-Certo.
-Tudo que você viu hoje nada te tocou?
-Para ser honesto, não.
-Então seu caso não tem cura.
-Como assim?
-Deixa para lá.
-Deixa para lá o que rapaz, abra o jogo!
-Vê lá como fala comigo, moço!
-Como assim?
-Vai me bater?
-Você merece umas palmadas.
-Pois pode vir seu p...
Quando o soquei, vi que nada atingi e que estava só em frente a uma cruz de madeira. Nela estava escrito o meu nome Souza Rodrigues Santos. Pensei que era coisa do sonho. Sentei-me sobre uma lápide ao lado e fiquei pensando e observando por um instante. Chegaram dois rapazes fedorentos e mal-encarados e sentaram-se bem próximo a minha cova. “Corno!” Disse o negrinho magro. O outro meteu a mão no bolso e acendeu um baseado e ambos fumaram jogando a maresia na minha cara. Davam risadas o tempo inteiro e eu nada pude fazer. O tempo passou, meu corpo se estragou completamente naquele sepulcro barato de um cemitério da periferia de Aracaju.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O ensino do latim e o tradicionalismo

Tive o indefinível desprazer de ter como professor de português um reprodutor do senso comum masoquista. Por sorte isto foi por cerca de apenas um mês, numa instituição católica de ensino básico de Aracaju.

O infeliz, além de disseminar o preconceito para com o curso em que ele mesmo (infelizmente) se formou, com piadas do tipo “ninguém daqui fará vestibular para Letras, pois não quer ser pobre”, ainda reforçava a discriminação com vitupérios a disciplinas cruciais; quando questionado sobre o porquê de uma articulação a que não soube responder, preferiu denegrir as matérias “não sei, só estudando filologia e latim, que, aliás, não servem pra nada!”.

O que mais me doeu não fora simplesmente ver alguém de dentro do curso corroborar a insuportável discriminação às Letras, mas saber que este cidadão fora porta-voz de muitos professores da área, e que adere a sua voz até mesmo a “nova grade” do curso (de Letras), que cada vez mais apaga as disciplinas clássicas e filosóficas, transformando a formação acadêmica numa escolinha de robôs acríticos.

Como torto, não estou propondo a volta do velho e mecânico ensino de latim, nem que os alunos tenham que dominar fluentemente a língua, afim de interpretar as palavras única e exclusivamente do ponto de vista etimológico. Proponho apenas, como humilde entusiasta do estudo dos idiomas, a proposta “pancrônica” dos estudos feita pelo professor da UFS Dr. José Raimundo Galvão, que busca sempre a atualidade dos mitos e a “conversa” que as palavras articulam entre si, levando em conta, logicamente, a importância de se considerar o que se convenciona chamar de passado.

Observemos, para uma pequena experiência, a palavra latina umbra, que equivale a sombra em português (aliás, parecidíssimas, não?). Eu que me aventuro no inglês e no francês consigo perceber que a palavra inglesa umbrella, levando-se em consideração o latim, significaria, ao pé da letra “sombrinha” em nosso português. E não é que significa guarda-chuva? Passo ao francês e consigo facilmente, dentro de um contexto, com posse do conhecimento do vocábulo latino, perceber que ombre (l’ombre) equivale a umbra, sombra (parecidíssimas também, não?). Mas vamos aplicar mais especificamente este conhecimento, afim de não corrermos o risco da leviandade; sabendo que o prefixo latino pen (que vem de paene) equivale a “quase”, começo a prestar atenção em palavras como penumbra e tenho a “quase sombra” (não é isto que significa?). Aliás, isto me dá uma grande dica na geografia: “península” não seria uma quase ilha? Bravo! Agora já não me perco mais quando o professor de história se referir, por exemplo, à Grécia insular, uma vez que insula equivale a ilha. Posso até imaginar que quando o professor acusa certo autor de ser insular, ele pode estar se referindo ao fato de o tal tender a se ater ao mundo britânico (território insular, não?). Aliás, falando em pen, este é o penúltimo (quase último) parágrafo.

Este foi um exemplo de milhares que poderia dar. E o cerne do que quero dizer é que não sou nenhum estudioso do latim, pelo contrário, meu latim é básico. Porém, quando conseguimos não parar no julgamento a priori acerca das coisas, conseguimos, inclusive, descobrir que o estudo do latim pode ser extremamente aplicável, que ele pode nos conduzir a uma visão textual do mundo muito mais sagaz e, de quebra, podemos mostrar à sociedade mais uma de nossas contribuições práticas (que nos são tão cobradas). Portanto, nem tanto, nem tão pouco, busquemos o olhar torto.

"Verba mollia et efficacia"

O Respeito Torto (por Reuel Machado)

Aviso da moderação: Por falhas técnicas, este texto foi postado na madrugada da quarta-feira (10/02), porém, o dia de postagens do novo integrante "Reuel Machado" será oficialmente a terça-feira.


A principio antes de falarmos da nossa temática central, irei falar um pouco sobre a linguagem que irei usar no texto. A seguir colocarei um verso e é claro não será ingenuamente, e mesmo se fosse, tu leitor tentarias subjetivá-lo e encontrarias um sentido mesmo no acaso. Mas não quero me ater a isto, queria objetivar que a linguagem poética muitas vezes nos trás luz sobre muitas questões da realidade, e para mim, mesmo que ela mesma não queira incutir a si um caráter e um rigor científico, ela nos fala tão “majestosamente” sobre o mundo quanto a ciência por vezes. O que eu buscarei é tentar criar uma teia entre essa prosa e esse verso, ambos da minha autoria, esse enxerto tem um título, mas eu o suprimi, pois ele aqui já é outra pessoa. Tomara que vocês, caros leitores tortos, achem a linha e agulha para poderem assim tecer suas teias livremente.

“Eu em mim existo, e sei que sou uma incógnita para aquele que me chama

E digo que o vento não guarda a pedra que tanto querem lapidar em mim

Não quero ser, mas possuir fagulhas de existência que se projetam no espaço a cada momento

Mostrando as duplas faces do que se manifesta a todo instante

Quero ser torto acertando apenas um lado do alvo

Sabendo que por detrás dele existe outro que ainda não acertei

Pois assim, dependeria de duas flechas acesas sem a unicidade da fé

Agora, suspiro a lacuna saturada de certezas

E sei que amar é tudo isso em tela, quanto mais, viver.”

Não sei se estou errado em achar que a nossa mente é falha em restringir o outro de uma vontade mesmo que não comprometa a integridade física e moral deste (mesmo não sabendo também se é salutar essa ou aquela moral), por uma questão de respeito, pois não sei até onde vai essa coisa de “respeito”. Aprendi observando a nós animais humanos (que se tornaram pitorescos apenas por suas subjetivações oriundas do antropocentrismo Greco – cristão), que apenas o tempo traça uma malha firme para que dois pontos ligados por qualquer tipo de linha (relação) seja seguro ou não. Para fragilizar ainda mais esta idéia, podemos dizer que o ângulo que observador olha é responsável pela tela que ele irá pintar do outro. Com isso podemos afirmar que certas atitudes, dependendo do contexto, podem ser um desrespeito ou não, afinal o maior símbolo disto são os eufemismos.

Lembrando ainda que o que nos segura é uma barreira psíquica chamada superego, censor que além de ter esta função trata de simbolizar alguns dos nossos instintos primários, como, por exemplo, o sexo, para poderem ser externados de forma aceitável. Contudo esta barreira é humana e está suscetível a falhas e a mudanças! Até aí tudo tranquilo, uma vez que temos a consciência da fragilidade desse aparelho. Porém o individuo é um ser que interioriza valores sociais, portanto por mais que conscientemente ele faça uma leitura positiva daquilo que temos como tabu, no ato da ação ele pode se comportar de forma negativa por conta de um valor que reside em seu inconsciente. Novamente o desrespeito aparece.

Prefiro então entender certas atitudes e idéias das pessoas como processo, uma vez não tendo a noção deste efetuaremos juízos por vezes a priori. Falando especificamente das idéias, vejo que mesmo que nos livros sua historia contenha, esta será apenas uma imagem do seu processo durante um período e que está a mercê do devir e das flutuações da própria natureza (falo da natureza cosmológica mesmo, a qual alguns entendem como natural e humana). Caímos então nesta perspectiva torta, sempre deixando os ouvidos atentos para que um dia possamos ter uma postura mais ou menos “madura” a respeito de afirmações e/ou de certezas de caminhos. Por hora continuo sendo torto tentando torturar a razão jogando sempre duas flechas para se distanciar da unicidade da fé, colocando E ao invés do OU. Em suma, alguma coisa pode ser tolerável e desrespeitosa, não tolerável ou desrespeitosa, como alguns juízos de valor insistem em se expressar.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Esquerda destra, direita canhota

Percebo o quanto é difícil as pessoas entenderem que o Movimento Torto possui opiniões, mas não se vê na obrigação em ter que defender posições definidas. As pessoas ficam tentando encontrar posições definidas sobre o que o torto defende, e não percebe que o torto não necessita pensar em acreditar que defende algo em absoluto.

Muitos leitores questionam: o Movimento teria perspectivas partidárias tendenciosas a uma linha de direita ou de esquerda? Eu poderia responder de antemão, que o torto não pensa ser uma coisa OU outra. Na verdade, o torto é uma coisa e outra, ao mesmo tempo em que não aceita em absoluto nem uma coisa, nem outra. A esquerda possui falhas e acertos; assim como a direita.

Por exemplo: o torto pode ser esquerda a partir do momento em que ele admite que as desigualdades evidenciadas através do consumo estimulado pelos setores neoliberais, são desumanas e dignas de muitas críticas. O torto pode ser direita no instante em que ele admite que, o consumo, apesar de receber as críticas que recebe, se ele se estabelece na cultura capitalista, é por que de certa forma ele atende às demandas do contexto.

Por outro lado, o torto não compartilha com a posição muitas vezes extremada da esquerda em relação ao consumo. Para o torto, não necessariamente a troca e o consumo de bens implica simplesmente uma imposição de um setor social diante do outro. Não existe apenas uma recepção passiva desses bens. O ato do consumo implica formas de interpretações que trazem por consequência, novas resistências, novas formas de compreensão. Não há como se reduzir o consumo ao fim das identidades.

Por outro, o torto não compactua com a direita por entender que, por mais justificável que seja o consumo, esse consumo está colocado de forma extremamente desigual entre os diversos setores sociais, uma vez que ele reconhece que a postura política da dita direita tende a atender às exigências do mercado, que por consequência, encontra-se muitas vezes nas mãos de setores dominantes, impossibilitando um acesso maior e mais democrático entre as outras pessoas.

Por fim, eu posso afirmar que o torto prefere transitar entre váriaa correntes, visto que, se observarmos bem, em nossa realidade corriqueira, diferenciar determinadas vertentes de esquerda, da direita, é a mesma coisa que diferenciar cu de cu. Em minha concepção, é melhor transitar entre os vários discursos, pois só assim enriquecemos, conflitamos e pluralizamos nossas opiniões; do que defender uma bandeira externando aos outros uma distinção de pensamento que, infelizmente, nos horizontes empiricos da politica, tende a se convergir nos mesmos atos.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O Entremeio, por Lucas Maia (participação)

Ele escutava a versão da Ave Maria, por Franz Schubert, que possuía a maleabilidade necessária para a satisfação do seu gosto musical. Descobriu desde moço que essa era a esposa dos seus ouvidos, que nela havia elementos matematicamente calculados e forjados para sua introspecção, águas que irrompiam como revelação de acalento, uma freqüência determinada. Herdou, talvez, o gosto da mãe, que sempre às seis horas da noite ligava o som, não para escutar as versões das rádios, mas para ouvir as obras de Schubert. Foi como um desfribilador aplicando impulsos em sua alma, gravou a música por completo, desde a primeira vez.

Logo após sua terapia matinal foi à cozinha, correu a mão sobre a superfície do azulejo pregado à parede há alguns anos, poucos anos, muitos anos, indeterminados anos, na verdade. Terminou a procura do interruptor e exerceu uma força, pouca força, muita força, indeterminada força, na verdade. A luz acendeu com um lampejo imediato e determinado. Ele abriu a geladeira e lembrou da sua namorada, de nome determinado, cobrindo seus olhos, fazendo surpresa, no dia que ofereceu a viagem que fizeram à Europa, lembrou do avião partindo, pairando no ar, com sua velocidade determinada. Lembrou da temperatura, da precipitação de partículas que diminuiu tanto, a ponto de transformar água líquida em gelo, era um ponto determinado. Foi um período de muito frio, tanto frio que ele acabou ficando doente, ficou de cama em plena viagem turística, sua companheira foi à farmácia, comprou um medicamento, pegou a bula, deslizou os dedos sobre as linhas, leu atentamente, informou-se com propriedade sobre a quantidade exata da dose, entornou o líquido sobre um copinho cônico cortado ao meio, permitiu a queda das moléculas até a demarcação necessária de cinco mililitros. Ela foi informada, pelo farmacêutico, que de nada adiantaria dar menos que a dose determinada e que se fosse mais, o conteúdo se tornaria tóxico.

A viagem teve um espaço de tempo precioso entre os dois, mesmo com imprevistos, os dois conseguiam perceber o equilíbrio do amor que ali jazia, não era muito pouco, nem tampouco demasiado, era essencial e necessário.

Houve, em meio a todos os acontecimentos, uma explosão na cozinha de um restaurante requintado, eles haviam desistido de visitar tal recinto, mas souberam da notícia. O susto foi maior que o acidente causado, os cozinheiros não estavam perto do bujão. Tudo ocorreu no início do expediente noturno, o restaurante só abria durante o dia e durante a noite, o primeiro cozinheiro a entrar na cozinha repetiu o exercício do autor dessas lembranças e no instante em que o lampejo de luz foi instigado o gás do bujão explodiu, o oxigênio se misturou com o propano dentro dos limites superior e inferior de inflamabilidade.

Ele fechou a porta da geladeira com alguns utensílios na mão, os colocou sobre a mesa e começou a preparar seu café da manhã. Ele continuava a sua vida e permitia, junto a ela, a contínua necessidade “clarioculta” do entremeio.


(Participe também! movimentotorto@gmail.com)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O torto Narcísico

O torto narcísico.
Como tudo mais na vida, ser torto é um prazer. Há uma pulsão latejante presente no coração dos que fazem este site e defendem a bandeira de uma crítica atenta aos fatos que nos abordam diariamente. O ser torto é um ser erótico, um ser erotizado em busca do prazer na crítica, seja construtiva, seja demolidora de conceitos forjados pela mente equivocada de alguns, pelo menos, para nós. Isso também nos inclui, pois sabemos que o equívoco pode estar em nós, pois está presente no elemento humano. Muitos são os que dizem ser o torto um aventureiro em busca de fama. Não jogo pedra na fama, nem a evito, entendo que isso também é humano, e quem não gostaria de seus minutos de reconhecimento global? O torto está presente em cada ser humano, ele é, sobretudo, aquele ente que se rebela e se aquieta ao mesmo tempo. Rebela-se porque se angustia com o mundo e seus meandros escabrosos, e se aquieta porque se inclui entre os moradores desse lugar sombrio chamado conceitualmente de humanidade. O torto se auto-critica, refaz seus conceitos e, sinicamente, desmente tudo que disse por que entende que o dizer é um fato temporal, portanto relativo.

Embora a carga de prazer seja muito grande no indivíduo torto, ele deve cuidar para que não se torne um torto exageradamente narcísico. O perigo é gostar de ser torto porque ser torto é bom, porque criticar é bom, porque quebrar vidraças é bom. O torto deve refletir muito antes de expelir seu fluído venenoso. Deve ser responsável no que faz e diz. Recentemente fiz críticas ferrenhas aos textos de um colega torto porque este abriu uma discussão sem conteúdo e cometeu o pecado da generalização. Tudo que o torto não deve fazer é generalizar. A generalização para o movimento torto é algo contraditório, uma vez que este movimento prega a fluidez e volatilidade dos conceitos humanos. Para nós, não existe verdade, para nós, não existe um ponto final no que se refere às produções da mente humana, seja no âmbito das ciências, seja na filosofia, seja na cultura.

Outros mal informados sobre nós dizem que somos um povo sobre o muro. Já nos chamaram de burgueses e de coniventes com as manipulações políticas. Não somos burgueses no sentido dado ao termo por aqueles que o usaram, talvez, estes intelectuais de plantão não tenham ainda assimilado a força do termo que usaram e nem fizeram uma autocrítica para ver se não se enquadram nessa família tão odiada pelos marxistas xiitas. Entendemos que a contribuição de Karl Marx para as ciências humanas é incontestável, contudo, sabemos que ele era um torto humano que falou seu dito em sua época e em um contexto de mundo que explica suas teses. O mundo mudou meus caros. Urge, então, uma nova leitura dos cânones sociológicos e filosóficos, urge uma reinterpretação do dito enquanto mal dito para nosso momento histórico. A história é tão volátil quanto o torto, ela flui em um fluxo permanente de contradições rumo a lugar algum.

Os marxistas da UFS que desejam mudar o mundo com sua verborragia defasada, retrógrada, precisam atualizar suas leituras e mentes, e se contextualizarem no novo tempo e espaço. Hoje a maior preocupação é entender a relação do homem com um mundo multicultural, multiparadigmático, um mundo sem forma e vazio com sua natureza naturandis em quase óbito, e ao mesmo tempo repleto de representações e simbolizações da realidade como nunca houve em sua história. Ser torto é deixar sempre as reticências, pois sabemos que amanhã, outro torto, em algum lugar, vai falar.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A masturbação ideológica de alguns militantes

Nas últimas discussões acerca do Movimento Torto, não faltou a velha crítica por parte de alguns proprietários estamentalizados da verdade, chapolins eficientes, com cujas astúcias sempre devemos contar. Refiro-me ao bom e velho jargão; “o movimento torto é masturbação intelectual”.
Estrategicamente ou não, isso veio de alguns militantes, que, muito provavelmente, não conseguiram descer do topo da fedentina de seu arrogante medo para ler ao menos parte das propostas e construir um debate crítico, como o fez dignamente um deles.

Acho muito interessante como tudo pode se resumir à tachação no caso de não coadunação de ideias. Aliás, Terry Eagleton, um grande intelectual socialista que deveria ser lido por alguns desses infantes, do alto de sua experiência, reconheceu a importância das discussões que “não tomam de assalto palácios e “””transformam”””””, apesar de eu, sem hipocrisia, ver a proposta do torto como engajada em muitos aspectos.

Ontem eu conversei com um ex-militante do MPL (de Aracaju), movimento que, aliás, já vi agir há um tempo e por que já tive muito respeito, e ouvi dele algo muito intrigante; “lembro-me de que, numa de nossas manifestações, Nicodemos Falcão ofereceu uma reunião direta com o governador Déda a cinco representantes do movimento; surgiu então a conversa de que ‘não teríamos representantes’, e acabamos perdendo a oportunidade”. O que houve aqui então? Eu poderia chamar a ideologia que prima sobretudo pelo orgulho enferrujado que gera clichês do tipo “não me vendo ao sistema” como uma masturbação ideológica? Neste caso, houve transformação ou masturbação do orgulho ideológico?

O engajamento não pode partir de vários pontos e passar por vários canais? Propor, como é poroposto aqui, a disierarquização da cultura, o requestionamento insistente que propõe que nos enxerguemos como também vítimas e não apenas vítimas e somente vítimas do sistema, entre outras atitudes congêneres, não são questões engajadas também?

Eu não me nego a participar de manifestações e protestos, mas, reconheçamos, êxito por êxito logrado, de alguma forma pelo menos, somos todos punheteiros. Portanto, menos orgulho e mais reconhecimento à competência alheia é o que sugiro a alguns militantes de Aracaju. O comodismo intelectual, para mim, é também um ótimo exemplo de postura “reacionária”.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Adeus

revisito os escombros da pequena
casa demolida.nada sobrara.
senão a irregularidade dos blocos
fornidos.desfeitos na poeira
que esvoaça e irrita os olhos.
a laje no chão.prensando
sobre os escombros a vitalidade
das almas que a construíram.
era uma residencia particular.
além de pessoas nela também
jaziam sonhos.essas peças senis
construídas sem argamassa.
onde nas paredes se colecionam
as vaidades das pessoas
que querem preencher o tempo.
e foram tantos anos de paredes
preenchidas.mas a força olvidou
o laivo de beleza que havia
em cada bloco.tudo ruiu
e as lágrimas foram insufucientes
para exprimir o que era aquele pranto.
as lágrimas não eram verdadeiras.
verdadeiros eram os escombros
e as lágrimas febris que desciam
rápidas dos olhos.
a casa era uma mentira.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O torto e a preservação ambiental

Eu fico muito irritado com a necessidade de muitos ambientalistas sustentarem por via do discurso, argumentos referentes à preservação da natureza, como se fossem salvadores do meio ambiente. O erro desses discursos é que eles sonham de tal forma com o que eles acreditam como ideal, que nem se dão conta de que, uma coisa é o ideal, e outra coisa é a possibilidade desse ideal se fazer realizado em suas práticas cotidianas.

O discurso ideal dos defensores ambientalistas muitas vezes se encontra distante de suas realidades. Como sabemos, se fazem muitas polêmicas no que diz respeito à matança dos seres vivos, porém, eu pergunto: não seriam os ratos, as ervas daninhas, os mosquitos da dengue, as baratas, seres vivos também? E por que muitas vezes entendemos como correto exterminarmos esses seres vivos?

O humano não fica comovido apenas com o fato da mamãe onça ser morta para que sua pele seja comercializada. Na verdade, ele está mais preocupado é com a perpetuação de sua espécie. Quando ele quer satisfazer seu interesse, utiliza-se de venenos para dizimar parte da natureza; porém, quando o assunto se trata de uma possível extinção de sua espécie, o papo logo muda.

O humano fica indignado com as fatalidades ambientais, não apenas por amor à natureza, mas por ele se ver refletido na morte da espécie da qual ele pertence. Tanto é que, apesar da indignação exibida nos telejornais sobre os acidentes ambientais, quem já parou pra pensar nos cachorrinhos e nas plantinhas que também morreram atolados ou afogados nesses desastres anunciados?

A partir dessa explanação, eu pergunto: como o torto se manifesta diante desse discurso ambientalista? Pelo fato do torto viver se entortando por se encontrar em meio a um fluxo, mesclando-se e ao mesmo tempo se conflitando com os opostos, ele nem é a favor da destruição, nem é a favor da preservação; ao mesmo tempo ele compreende os motivos que levam à destruição, como também se mostra favorável à preservação.

O torto se manifesta contrário à destruição da natureza por ele saber que é humano, e como humano, ele necessita, assim como qualquer ser vivo, preservar-se. Por outro lado, o torto critica a preservação, isso por que ele sabe que inevitavelmente o meio ambiente é modificado pelas espécies, uma vez que, qualquer ser vivo busca encontrar mecanismos de sobrevivência.

O torto também concebe a destruição, pois para ele, se a natureza continua sendo dizimada, é por que existe uma necessidade que sustenta essa dizimação. Não haveria desmatamentos, se não houvesse uma demanda que se usufruísse deles. Quem come, quem ler, por exemplo, usufrui-se da madeira do fósforo e do papel respectivamente, que por sinal, são resultados do desmatamento, e quem pode afirmar que essas práticas são inúteis?

Por outro lado, o torto aceita a preservação, visto que para ele, é inegável que a destruição ambiental tem causado muitos danos à natureza, e que por isso mesmo, é importante buscarmos encontrar medidas cabíveis que amenizem o caráter exploratório desse desmatamento irresponsável, para que com isso, consigamos enxergar um caminho menos caótico e favorável para a convivência dos seres vivos com o meio ambiente.