sexta-feira, 17 de maio de 2013

ZÉ DE JESUS E A JUMENTA FALANTE

Diz a Bíblia, e ela não mente que num passado bem distante o bicho falou com um profeta atordoado chamado Balaão. Pois, meus amigos, meu espírito andou pela Vila de Campos em busca de um Fiel. Sim, senhor; é muito fácil dizer-se crente; estar bem bonito ou bonita na igreja; barbinha feita, ou o cabelo passado na chapa. Vi com meus dois olhos que, embora míopes, pude enxergar muita coisa braba nesses sertões no meio do povo conhecido como “O povo de Deus”. Era 1987. A Velha de Vila de Campos fervia de gente de todo canto. Parecia que, aqui, era o lugar de encontro de gentes de várias partes do sertão. Eu era ainda, um modesto contador de histórias. Minha pessoa estava sentada num bar na Avenida João Alves quando chegou um senhor de cabeça branca, barba branca, e pele branca, e se sentou à minha mesa; o homem me olhou nos olhos e me disse: “Contador de histórias, conte sobre o fiel e a jumenta que falou”. Puxei a cadeira pra trás e disse ao moço: “Se de um Fiel a Deus já é difícil contar quanto mais uma jumenta falar”. O moço coçou o coro rosado da testa e me disse olhando em meus olhos sem piscar um instante: “Então durma que eu te falo”. No alto da boiadeira nasceu um menino que lá se criou até o final dos anos 60. Um dia de sol quente uma jaracuçu picou seu pai. Este era um homem bom que temia a Deus e respeitava a todos. Sua mulher, dona Virginia depois da morte de seu velho definhou; três anos depois, a mulher desceu a cova e se juntou ao seu marido. O único filho do casal foi morar na casa de dona Austera, uma senhora muito católica; uma mulher de que ninguém podia dizer nada de errado. - Zé Jesus, hoje chega teu carro de frete pra você trabalhar na feira e na frente do supermercado, assim você vai ganhar uns trocados para ter suas coisas. Zé passou as mãos nos olhos azuis arredondados, depois pôs uma mão no bolso; olhou para tia e disse. - Graças a Deus, agora vou poder comprar minhas coisinhas. E foi isso; Zé começou com um carro de frete, depois, pôs uma barraquinha de lanches, e mais na frente, já nos anos 80, o homem era dono de uma lanchonete bem no meio da feira. Zé ganhava para si, e para ajudar sua tia que na época era uma mulher idosa precisada de cuidados. Zé tinha três casas de aluguel, dois chãos, e um chevette 81 modelo sedan. Mas o homem tinha um ponto fraco. O maldito jogo. Zé apostava em tudo e jogava baralho nas sextas feiras numa casa no final da Getúlio Vargas. Certa noite, o jogo foi até tarde, Zé ganhava e com isso se atreveu a uma jogada de mestre: “Aposto tudo nessa mão”. “Mas, Zé, se acalme, vá para casa, você num já tem seu dinheiro?” Disse um amigo anão, natural de Itabaianinha. Zé insistiu e perdeu tudo. Não se satisfez com a derrota e apostou as casas; Zé perdeu todas; o moço tornou-se compulsivo e decidiu apostar chevettinho; o perdeu também. Assim, Zé perdeu tudo numa mesa de jogo, e foi morar no beco do matadouro antigo, numa casa alugada por um amigo. O tempo passou e Zé perdeu o amigo. O homem dormiu e amanheceu morto. Diz o povo que foi o vento. “E agora, Zé Jesus?” perguntou a si mesmo o homem da boiadeira. Zé virou morador de rua. Todos os dias, como alma penada, o homem andava pela cidade pedindo uns trocados que ele dividia entre a comida e a pinga que não podia faltar. - Isso é vida de gente disse uma voz no antigo Parque dos Missionários. - Mas quem fala comigo? Perguntou Zé com a voz etílica. - Rapaz, você um homem descente cuja família ninguém se diz um agravo, nessa vida? - Oh, seu filho da peste, vá cuidar de sua vida! - Então, tá bom! Eu vou. Zé ouviu o barulho de casco de bicho pisando no chão. - Pare aí moço! - O animal parou. - Oxente onde está o homem? - Que homem; fui eu que falei contigo. Zé andou uns metros tropegamente e com dificuldade apanhou um pedra e a tangeu na jumenta. “To ficando doido, nunca vi jumenta falar!” Ali, mesmo ele arriou e adormeceu. Nas segundas feiras, era costume de Zé ir à feira da Coruja para esmolar. Mas, aquele seria um dia muito especial para ele. Estava na feira o pregador Agenor. Agenor dos Santos anunciava o retorno do Cristo e ao fazer isso, ele citou a seguinte passagem: “Se Deus falou bela boca de uma jumenta quanto mais ele fará por ti”. “Opa!” Pensou Zé Jesus. “O bicho era uma jumenta sem ninguém montado, então, uma jumenta falou comigo!” “Terá sido Deus?” Concluiu o raciocínio o jogador de cartas Zé Jesus. Agenor continuava sua pregação com muita sinceridade na caixa do peito: “Se hoje ouvirdes a sua voz, e Nele Credes; Serás salvo”. Zé Jesus saiu do meio do povo tropeçando por causa da cachaça; e foi tombando e caiu aos pés do pregador que prontamente disse-lhe: “Você quer aceitar Jesus?” Zé respondeu: “Aceitxo, sim senhor!” Desse dia em diante Zé Jesus virou crente. O irmão Zé melhorou a leitura, aprendeu a escrever de tudo e de vez em quando pregava numa congregação perto do lugarejo Curtume. Zé, agora, era um homem respeitado novamente. Nunca mais jogou, ou bebeu cachaça, nem raparigou, nem roubou porco ou galinha de sua vizinhança. Quando passava com seu terno cor de abóbora, o povo das calçadas dizia: “Olha lá, olha!” “Aprontou e agora é santo!” Mas Zé não olhava para os lados como ensina o salmo sagrado, nem perdia seu tempo com as coisas desse mundo. Sua vida era a vida de um fiel de Deus. Mas, nesse mundo onde o cão anda solto, as coisas nem sempre permanecem em paz. O chifrudo resolveu tentar Zé Jesus. - Zé; vou deixar a igreja! Disse Agenor com muita tristeza. - Mas, por que meu irmão? - O Pastor não me dar oportunidade nem reconhece meu trabalho na feira. Ele comentou que sou um pirado. - Pirado! O sangue de Jesus tem poder! A saída de Agenor muito entristeceu o irmão Zé. Por causa disso ele foi ao Missionário orar. “Mas, meu Deus como pode uma coisa dessas, uma pessoa como Agenor sem o direito de prega a Palavra!” O vento assobiava nos pés de eucaliptos, os patos nadavam mansamente na lagoa do Missionário. Não havia ninguém lá, exceto, o pobre Zé. De repente, Zé entorpecido pelo clima bucólico do lugar ouve um rinchado de jumento. “Oxente, será o bicho que veio falar comigo?” - Zé; traíram o mestre, mas, mesmo assim ele não fugiu de seu intento. - Mas, dona jumenta, eu me converti por meio de Agenor; sem ele eu vou sair de lá. Com as palavras da jumenta profeta, Zé se conformou e continuou sua vida com Deus e ganhava muitas pessoas para Ele. Na loca que ficava na raiz de pau de um juazeiro, na margem do Rio Jabiberi uma cobra mostrava a língua ao tempo; a bicha estava faminta. Zé se conformou com a saída de Agenor. Sua igreja cresceu e entraram muitos jovens, entre eles umas moças que vieram do mundo das drogas. “A gente vai ter que receber esse pessoal com uma estratégia inovadora”. Disse o pastor Felisbelo. A igreja pôs uma banda de Rock Gospel. O povo nem sabia o que era isso. A confusão tomou conta da igreja. - Pastor isso é coisa do mundo! Disse o diácono Peixoto - aquele que sentava à porta da igreja e fingia estar lendo a Bíblia para dar suas cochiladas. - Eu li num livro evangélico que Rock é do satanás. Disse a irmã chefe de oração. Raimunda nunca usou calça comprida; sua roupa era sempre um vestido folgado em cima e bem apertado nos quadris. Minha humilde pessoa, por vezes, pensou que o vestido de Raimunda se rasgaria quando ela se sentasse no banco da igreja. - Olhe pastor, não devemos imitar o mundo! Falou com tom grave o evangelista Luís – um ex – gay que cuidava do grupo de adolescentes “Jovens transformados”. O pastor Felisbelo ficou muito irritado com a reação da igreja, contudo, o amor pelas as almas, o fez continuar seu projeto. Em sete meses, a igreja tinha sessenta jovens matriculados na classe de catecúmenos. Mas, o irmão Zé se entristeceu novamente com o que via e ouvia. Essa geração de crente não lia a Bíblia, e nem orava. De fato, eles queriam viver os mesmos costumes de antes. O que mudava era a forma. Zé foi orar na beira do Rio Jabiberi. “Senhor, eu estou vendo que está tudo mudando; meu Pai, o que está acontecendo?” A jumenta chega de mansinho e dá um susto em Zé. - Oxente jumenta profeta! Tá me fazendo medo? - Num é assim que chega o tentador? De pontinha de pé? - É dona Jumenta. Estou muito triste com que estou vendo. Agora tem de tudo na casa de Deus, menos Ele. Se eu vier para beira do rio eu num vou puder falar com Ele. - Meu filho, é sabido que seria assim, mas, o fiel persevera até o fim. A jumenta falou e saiu rinchando dando uns pinotes com as patas traseiras. “Oxente!” “O que houve com ela?” Zé olhou adiante e viu a loca da cobra. A igreja cresceu e com seu crescimento veio o interesse dos políticos: “Felisbelo devia sair vereador pelo nosso partido, num é Dr. Frank? – o médico da família” “É, sim, senhor”. Felisbelo foi eleito vereador. A igreja virou alvo das antipatias e simpatias políticas do município. Com isso Zé tornou a orar a deus e disse: “Senhor, para o mundo eu num volto, mas, aqui, num fico, não!” Após a oração contrita em sua residência, O fiel pega no sono, e acorda no outro dia com um rinchado de uma jumenta à sua porta. “Com a paciência salvareis vossas almas”. O animal irracional roçou a testa no peito de Zé. Dona Sebastiana, crente de Sambaíba há muitos anos disse: “Zé tá de chamego com uma jumenta esquisita”. “Tá vendo, diz que ora; crente safado!” Sete dias se passaram, durante os mesmos, o povo de Tobias e de Sambaíba comentava o caso do chamego entre Zé e uma jumenta. Até que a caluniadora teve um engasgo com um osso de galinha e bateu as botas. Diz o povo que a língua dela estufou saindo da boca mais de um palmo. Zé suportou a calúnia jejuando todos os dias até 5 da tarde. No final dos mesmos a bendita jumenta veio novamente. - Zé, disseram que o mestre foi caluniado e suportou tudo. Ele falava até com as putas. Sua pessoa está muito mimada. - Mas dona jumenta está escrito que “longe de vós toda aparência do mal”. Acho que eu e sua pessoa num pode mais se ver não. A jumenta saiu triste e desceu para as bandas de Riachão. Passou um tempão até que Felisbelo teve um chamado do Senhor para ter um programa de radio: “Ministério Vencedores”. A igreja comprou, primeiramente, uma hora, depois, duas horas, depois, três horas. Quanto mais horas; mais o povo dava oferta e mais a igreja crescia, e mais Felisbelo ficava rico. A igreja cresceu tanto que os antigos crentes desapareceram no meio dos novos; estes trouxeram cada um seus terrores. “A irmã Carla está prenha do irmão Francisco!” “Rapaz, num acredito não!” “Hoje à noite no culto, olhe para o bucho dela!” De fato, a mulher estava escondendo seu pecado, mas, não teve jeito. Alguns irmãos saíram escandalizados da igreja: “Pregam uma coisa e a gente vê outra”. Zé tentou desfazer a coisa, contudo, o povo tinha a prova material da contradição. “Vou falar com a jumenta e ver o que ela tem a dizer”. Pensou o homem de Deus. - Dona jumenta qual o motivo da contradição? - Que contradição, Zé? - Na pregação dizemos que as pessoas aceitem a Cristo, mas, uma ou duas num universo de centenas vivem mais ou menos alguma coisa. - É por que as igrejas têm seu foco na quantidade. Veja que o Mestre só teve doze discípulos, e mesmo assim, perdeu um. Já pensou se ele tivesse cinquenta milhões? - Então, dona jumenta eu vou deixar de ser crente! - E você é crente? - Eu pensei que você era cristão. - É só um modo de dizer dona jumenta. - Mas os modos de dizer refletem os modos ou os modelos da sociedade. Você está vendo a igreja como um crente, um membro de uma seita religiosa. - Dona jumenta sabe muito! Zé se aproximou para passar a mão na testa do bicho. Em uma moita de macambira estavam três diáconos da igreja para flagrarem Zé no ato de adultério com um animal irracional, uma verdadeira abominação ao Senhor. No outro dia à noite, Zé foi chamado para uma reunião extraordinária de membros da igreja: - Zé Jesus durante muito tempo foi um servo leal ao senhor. Pregou a Palavra e nada quis para si. De que o acusai vós. - Flagramos o irmão alisando uma jumenta com a qual ele mantinha encontros regulares. O povo a uma só voz fizeram “Ohhhhhh!” Alguns diziam; “Isso é crente nada!” - Zé Jesus, o que tens tu a dizer a teu favor? Zé pensou no texto de Pedro que diz que o Mestre ficou calado. - Teu silêncio é tua condenação, no entanto, minha esposa teve, ontem, um sonho que Jesus entrava aqui montado num jumento. Eu lavo minhas mãos! Mas o povo dizia: “Expulse Zé da igreja!” Zé foi expulso da igreja acusado de ter coito com animal. “Irmã, Zé orava tanto!” “Num é mulher, como o diabo é sujo!” “Mas, logo, uma jumenta!” “Por que ele não procurou uma mulher!” “Num foi!” “Que coisa feia!” Zé ficou triste; e envergonhado na cidade. Não se falava noutra coisa: “O crente que papou a jumenta” Muitos foram os meses que Zé comia raízes, e frutos silvestres. O homem virou um João Batista. “Raimundo, Zé tá doido; ele fica nos pastos, lá em baixo, perto da barragem. Dizem que ele rincha, mas, sua namorada não aparece”. Por quarenta dias Zé se alimentou de raízes e mel de abelha. Aqui e ali ela encontrava frutos do campo. Zé orava a Deus e Deus não o respondia, nem a jumenta sabida aparecia. Zé, em desespero, na agonia de sua fé diz para si: “Tornarei a igreja e vou dizer tudo que vejo e penso”. Ao dizer assim, sopra o vento quente do sertão; as folhas secas são erguidas do chão pela força do mesmo. Numa terça feira à noite, Zé Jesus entra na igreja no horário da pregação. “Hipócritas, arrependei-vos!” “Vixe, o homem tá doido mesmo!” Disse Cleo de Andrade. Uma mulher trajada de roupa bem sensual, que mostrava os contornos da calcinha disse respondendo ao profeta: “Vá se tratar rapaz!” “Vocês pregam o amor entanto, condenam uns aos outros; cada um só pensa em si; vossos pastores só pensam em ouro e prestígio”. Replicou Zé. Felisbelo chamou os diáconos Manfredo, 187cm e Segal, 191cm para acalmarem o irmão possesso. Tentaram expulsar o demônio de Zé pressionando-lhe a cabeça, e segurando-lhe os braços. Zé tentava reagir dizendo: “Eu sou lavado no sangue do Cordeiro”, Os diáconos diziam: “Sai dele satanás!” Quando subitamente ouve-se um rinchado dentro do santuário. Dona Euclides, mulher de Demétrio que era tio de Felisbelo gritou: “A rapariga dele acabou de entrar na casa de Deus!” Todos pararam, os diáconos soltaram Zé que estava exausto e machucado. A jumenta solta um pum e sai pinoteando dentro do santuário. O povo dizia: “Até a jumenta dele está com o cão nos couros!” Chamaram a polícia que veio como um raio. Ao ver o bicho solto na igreja, os policiais disseram: “Chamem os bombeiros, esse não é serviço nosso”. Chamaram os bombeiros que prontamente atendeu aos apelos de Felisbelo. Ao chegarem os bombeiros pediram o formulário do ibama. O pastor, então, disse: “Pelo amor de Deus, parem o bicho, pois, hoje Deus vai falar com a igreja”. “Sem formulário, não podemos fazer nada pastor, lamento”. Disse o tenete José de Arimatéia dos Santos. Um irmão novo convertido perde a paciência e saca um revolver calibre 38 que estava escondido em suas calças. Foi um tiro só; bem no meio da testa do bicho. Zé quando ver sua amiga de fé numa poça de sangue, ouve o bicho dizer: “Em tuas mãos eu entrego o meu espírito”. A jumenta morreu dentro da casa de Deus. O silencio era imenso, se caísse um simples alfinete, ele podia ser ouvido. Por um instante houve paz. Zé Jesus continuava abraçado com a jumenta morta e dava-lhe beijos na testa. As mulheres crentes, embora, emocionadas viram o carinho de Zé pelo animal. Três horas após a morte do animal algo muito estranho aconteceu. A jumenta vai lentamente se transformando em algo diferente. “Mulher, o que é isso?” “Num sei não!” “Rapaz, a jumenta está virando gente”. A jumenta virou um carpinteiro, em suas mãos estavam as chagas sagradas que perdoaram o mundo inteiro. O seu lado direito tinha uma ferida de lança e dela escorria sangue e água. Em sua cabeça uma coroa de espinhos, mas, em seus braços, sim, em seus braços estava Zé de Jesus que acabara de falecer de infarto pela tristeza de ver sua jumenta profeta morta. Meu humilde espírito se despertou com o estalado dos foguetes na Avenida João Alves. Olhei em todas as direções e o homem que falava comigo havia sumido. Perguntei as horas. O dono do bar me respondeu que eram nove horas da noite. Paguei a conta e fui dar mais uma volta pela cidade. Fui ao cemitério. Não havia ninguém vigiando o lugar. Andei por suas ruas até que achei um túmulo onde estava escrito num pedra de mármore: “Sem profecia o povo se corrompe; descanse em paz irmão Zé de Jesus”.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

MILAGRES

Nunca ninguém viu a Deus materialmente. O Ser Supremo; pai de seus filhos e de todas as criaturas do universo, não aparece com muita regularidade como alguns pensam. Deus está aqui, e estando aqui, Ele basta para sua criatura. Pelo menos é o que vemos num curto espaço de tempo chamado vida. A vida é um caminhar na matéria com o objetivo de um novo encontro com Deus; Nele estão todas as explicações e respostas sobre nossa existência. Como diz Paulo, o corpo fenece, mas, o vento inteligente, a personalidade, a pessoa, o sujeito, o “em si” devir é eterno. A matéria não pode ser eterna porque ela é constituída de elementos agregados que obedecem as leis de atração e repulsão. Assim, a matéria é, ora, um grupo agregado de elementos, ora, é a desconstrução; são elementos desagregados. O espírito vive eternamente; durante sua vida ele aprende sempre mais. Viver é aprender; é experimentar; é se encontrar com Deus. Mais uma vez citando Paulo, mas, o mesmo diz que: “Nele existimos; Nele nos movemos, pois, Nele todas as coisas existem pelo beneplácito de Sua vontade”. Assim, o foco da vida é estar em harmonia e sintonia espiritual com seu Criador. A voz de Deus pode ser ouvida em todos os lugares da terra e do cosmos. Embora Deus tenha se revelado na natureza ou em seu livro sagrado, Deus e sua mente só podem ser abstraídos por uma mente que seja proporcional ao seu poder; por isso, o que temos Dele são lampejos; luzes na escuridão, mas que nos mostram o caminho do bem, e de uma relação amorosa com Ele. Pois Deus, a Inteligência universal, O Criador de tudo só pode ser, totalmente, entendido por si mesmo. O que o homem diz de Deus é conforme o tempo e o espaço. Deus tem uma face em cada época. Por isso, a imagem de Deus é tão diversa quanto nossa capacidade de criar sentidos. Nossa compreensão Dele depende de como vemos e lemos nosso mundo e sua lógica de existência. O Deus de Abraão, não é o Deus de Zé da Silva que mora no povoado Murici. Em seu ‘Em Si’, Ele é o mesmo e não muda, no entanto, nosso olhar para Ele é mutável. Deus é o ‘Em Si’, que não é ‘devir’, mas possui muitas faces. Isso ocorre devido a nossa primitiva tendência de humanizar a tudo que existe fora de nós, que está no mundo externo. Até a pedra virou Deus em determinada época. Essa é uma pulsão primitiva. A racionalização do Sagrado serviu para termos uma visão mais próxima do ‘Ser Deus’ sem os abusos dos fanatismos, ou das aberrações religiosas. A capacidade humana de humanizar Deus é filha do instinto animal que sonhava nas antigas e perdidas cavernas dos tempos da Pré - história. Por isso, o discurso religioso, seja esse qual for, é uma mistura da totalidade dos discursos produzidos até hoje sobre Ele. Dizer de Deus é produção de discurso; e se é produzir discurso é ideologia; é ideologizar Deus. O respeito às religiões é necessário por causa da finitude e fragilidade do ser histórico – o homem; porque o discurso como produção humana é temporal; Deus é uma ideia que construímos em certo tempo e lugar. Mesmo dizendo, pois, o dizer não cessará, uma vez que, o eterno sempre será o que é; mas, por isso, o que dizemos Dele está sujeito à falseabilidade; o mesmo que ocorre com a ciência e com a filosofia. Essa experiência é fundamental para o equilíbrio e bem estar de nossa espécie. O ‘em si histórico’ precisa do eterno, do ‘Em Si’ que não é devir. Nós temos a necessidade, seja cultural ou natural de dizer sobre Ele. Nossa espécie ainda possui as marcas do culto a natureza, e o misturar Deus com ela. A racionalização do sagrado entende que todos os dizeres sobre Ele são legítimos enquanto produção de sentidos da mente humana. Entendemos que a temporalidade do dizer mostra nossa limitação de dizer tudo. Somos incapazes de dizer tudo sobre Ele. Embora limitados e naturalmente levados por nossos impulsos, podemos experimentar Deus por meio de sua manifestação maior – Cristo. Cristo é o homem que nos mostrou o ‘Em si’ com o seu ‘Eu sou’. Ninguém jamais diria ‘Eu sou’ sem o ser. Dizer isso sem o ser é loucura ou jactância pueril. Cristo – Eu Sou é a objetivação do ‘Em Si’ em sua forma mais plena. Cristo é a plenitude de Deus. A manifestação do Eu Sou numa Jerusalém nas mãos dos Romanos não foi por acaso. O ‘Eu sou’ como o ‘Em Si’ possui múltiplas faces, isso é devido à diversidade das culturas e épocas humanas. O Eu Sou manifestando-se em pleno Império Romano foi estratégico para que seu conhecimento se espalhasse pelo mundo. Conclui-se, então, que o dizer Dele depende de nossas relações materiais. A inspiração do Espírito Santo ensinada nas escrituras é dada a um homem histórico, portanto, a iluminação divina dialogará com homens diferentes com diferentes representações de mundo. A teologia que se cristaliza numa estrutura sincrônica da sociedade humana, se perde enquanto construção de um pensar maior sobre Deus. Isso é a Criatura pulsando pelo seu Criador sem conseguir seu intento. Deus pode ser melhor visto no eixo diacrônico das transformações sociais. Se as relações materiais são variáveis constitutivas de nossa teia discursiva, o dizer Dele não seria diferente. Assim, não existe discurso religioso ‘zero’ – um marco zero do pensar Deus, ou o primeiro discurso; nem existe pureza discursiva sobre Deus. A diacronia dos discursos sobre Deus mostra a estrutura hibrida das diversas teologias. Isso pode ser muito bem visto na arquitetura dos templos religiosos e/ou nas doutrinas sistemáticas; nas teogonias, e nos ensinamentos morais das mais diversas religiões. O conceito de certo e errado no discurso religioso como fenômeno temporal e cultural não está totalmente estruturado num canon religioso. A leitura do canon é uma leitura de mundo, um recorte do mesmo. Não é o canom que em si se expressa e produz sentido, mas, é o sujeito em relação dialógica que produz sentido para o canon. O discurso religioso tem tendência hegemônica. A história das religiões prova esse argumento. O Deus Grego Apolo podia falar livremente em detrimento do Deus popular Dioniso. O Deus Apolo ditava as regras e as normas – ou o que deve ser. A tendência hegemônica da religião é embrião da formação e constituição do Estado e da Civilização. Entretanto, foi fonte de mortandade, e muita infelicidade na terra, e ainda o é. Posto isso, infere-se que foram os discursos sobre Deus que deram sustentação e legitimação aos diferentes estados constituídos pela humanidade. Os estados são milagres da religiosidade humana; não são apenas constructos das relações com os meios de produção, pois, o discurso religioso é base de sustentação do Estado de direito, do certo e do errado ou do ‘que deve ser’. O olho esotérico de Isis até hoje está à espreita olhando os atos humanos; a onisciência de Deus faz a mesma coisa. O discurso religioso nasce da crença que estamos ante o crivo do olhar sagrado, e que esse olhar para o sujeito sanciona sua conduta; delimita suas escolhas, e forma seu superego. Essa dimensão psicanalítica do sagrado foi muito bem posta por Lacan na teoria do ‘O Grande Pai’. Conclui-se no momento, que foi o discurso religioso umas das variáveis constitutivas do estado, e é evidente que contribuiu para as desigualdades sociais. A mesma religião que ensina a Caridade é a mesma que, de certa forma, legitima a desigualdade, a relação meritória do homem com realidade, e as classes sociais. Esse é um dos milagres da religião; ser ambígua em si, como o nosso hipotálamo; os mesmos neurônios que, ora são ativados para a libido ou o prazer, ora são ativados para a agressividade; tudo depende da representação ou do estímulo que incida sobre ele. Alguém disse que a humanidade evoluiu do mito para a religião e desta para a ciência e filosofia. Essa linearidade só existe na mente humana. O dizer do homem sobre as coisas é como sua atividade onírica; sempre será constituído por fragmentos que se apresentam confusos, tão confusos quanto nossa humanidade. Diga-me, por favor: “Qual a racionalidade da guerra, ou do crime, ou do consumo exagerado, ou da destruição da natureza?” Dizer sobre Deus é o maior milagre que Ele produziu na natureza. O termo milagre aqui não é o mesmo que fenômenos que transcendem as leis da matéria. O milagre de dizer sobre Deus é o mesmo de dizer sobre tudo. Deus criou no mundo um homem, um ser capaz de pensa-lo e produzir discursos sobre Ele. A teologia que nega o dizer como ponto de partida para ‘o pensar Deus’ se torna estática e não dialoga com as transformações materiais da realidade. E se ela é construída dessa forma, em vez de apresentar Deus ao homem, o afasta Dele, pois, Deus mesmo não sendo devir é movimento como todas as coisas o são. Deus se apresenta no mover do tempo dos homens; no seu tempo é impossível Deus se expressar a humanidade terrena. Os Hebreus usaram o ‘dizer sobre Deus’ para legitimar seu estado na Palestina. Seu discurso foi tão poderoso que grande parte da humanidade chama aquele pedaço de terra de “Terra Santa”. Se olharmos com mais cuidado para o texto bíblico, veremos que os hebreus são descendentes dos caldeus, pois, Abraão, seu patriarca, era filho de Ur dos caldeus. Sendo assim, o território que hoje é reconhecido como hebreu nunca pertenceu a essa etnia. Vemos com isso que o dizer sobre Deus é um ato político. Mais uma vez fica claro que não é o canon quem diz por si; assim como a palavra por si não tem sentido. Ora, se a palavra só tem sentido em uma relação discursiva, da mesma forma o dizer sobre Deus só tem sentido enquanto produção de discurso, ou enquanto relação dialógica entre os homens. Proponho uma teologia que se pauta na epistemologia das contradições dos nossos dizeres. Na certeza de que o dito do homem não é inocente e que Deus transcende a todos os nossos enunciados. Dizer Dele é tentativa; isso não significa que não possamos tocá-lo aqui e ali. Deus se manifesta aos homens de muitas formas; sua imanência é tão palpável quanto sua transcendência é intangível. Essa aparente contradição serve de motivação para que a humanidade continue dizendo sobre Ele. O dialogismo entende que Deus está em permanente comunicação com sua criação, pois, foi Ele mesmo que nos pôs em relação de diálogo com tudo e com nós mesmos. Espero que este pequeno e breve ensaio, meu caro Souza, possa contribuir com suas pesquisas. Paz e Luz!