domingo, 27 de dezembro de 2015

Música Brega e Universidade: Apropriações e Exclusões

Quando vamos falar sobre a música brega em relação aos setores universitários, notamos duas grandes confusões das quais precisamos urgentemente retirar de cena. Uma delas diz respeito à diluição entre as fronteiras sociais no que diz respeito ao consumo da cultura de massa; a outra se refere ao sistema de cotas implementado nas universidades brasileiras. Esses dois pontos fazem com que as pessoas não aceitem mais a ideia de que a música brega sofre preconceitos dentro dos meios acadêmicos.

De fato o que percebemos é que com a cultura de massa, diferentemente de décadas anteriores, podemos encontrar pessoas dos mais diversos meios sociais consumindo um mesmo artista. Com relação às cotas, sabemos que com elas, indivíduos historicamente excluídos dos meios universitários, passaram a ter acesso a esses meios, contudo, isso não significa dizer que a universidade por ter em seu corpo mais indivíduos oriundos dos meios populares, não segregue a música brega.

Acredito que tanto para o primeiro ponto quanto para o segundo, a questão relacionada ao capital escolar, social, cultural e simbólico não pode deixar de ser salientado, assim como as relações de poder contidas em meio a esses capitais. Com capitais diferenciados, ou seja, com bagagens culturais e de valores acumulados por cada meio, o mesmo artista consumido pode ser interpretado de diversas maneiras; assim como, para se legitimar em seu meio, os indivíduos sofrem certas pressões comportamentais.

Apesar de ter havido uma diluição entre as barreiras sociais com a cultura de massa, não podemos negar que os valores sociais se revelam na forma como cada indivíduo se apropria das mensagens do cancioneiro brega. Uma pessoa de um setor socialmente privilegiado pode entender “Raquel dos teclados” como legal para curtir, mas reconhecer aspectos poéticos e melódicos diferentes de um indivíduo oriundo de um setor menos privilegiado que tem a música brega como uma música recorrente em seus valores cotidianos.

Eu posso ouvir o mesmo trabalho musical que uma pessoa oriunda de uma realidade social diferente da minha, mas a forma como interpreto a letra, resulta dos meus valores de classe. Mesmo “Pablo do Arrocha”, por exemplo, hoje em dia sendo consumido tanto pela patroa, quanto pela doméstica, as motivações da patroa ao ouvir esse artista podem ter outras finalidades daquelas da doméstica, isto é, enquanto para a patroa, Pablo é bom para dançar, para a doméstica, as letras dele afetam-na por achá-las belas.

Um exemplo são as festas bregas. Se alguém for aos eventos que acontecem no Mercado Tales Ferraz, local geralmente consumido por setores populares, verá que as vestimentas, a forma como se relacionam, vai se diferenciar das festas bregas nas universidades. Enquanto nos meios populares a música brega faz parte do cotidiano cultural deles, nas festinhas universitárias encontramos outras leituras, que por sinal, mostram-se fortemente marcadas por estereótipos e caricaturas do que para esse setor é considerado brega.

Portanto, a expectativa que cada ouvinte vai ter, assim como a motivação que cada um vai ter acerca dessa música, estará diretamente vinculada aos valores agregados em seus cotidianos em relação aos seus meios sociais. É devido a isso que, o fato de pessoas oriundas de diferentes meios consumirem a mesma estética musical, por exemplo, não retira delas a bagagem acumulada de valores, sejam eles morais, estéticos, culturais, que elas recebem a partir das transmissões advindas dos meios sociais nos quais elas se encontram.

Com relação às cotas, como dito anteriormente, o fato destas terem permitido o acesso aos indivíduos historicamente excluídos dos meios universitários, não significa dizer que a estética do brega seja considerada válida dentro desse meio, isso por que dentro de cada lugar existem códigos que delimitam certos comportamentos e que fazem com que certas práticas sejam reconhecidas ou negadas. Enfim, em cada lugar social se opera uma espécie de demarcação identitárias e diversas relações de poder.

Em outras palavras, o que podemos verificar dentro das relações sociais em determinados meios, é que, mesmo havendo indivíduos oriundos se setores sociais que possuem a música brega como uma estética recorrente, o fato de se encontrarem no ambiente universitário com suas regras de aceitação e de reprovação, faz com que estes indivíduos muitas vezes, mesmo tendo essa música como bagagem em seu repertório musical, coloquem-se em uma condição de aceitabilidade nesse meio.

Eu posso gostar de “Silvano Sales”, por exemplo, mas como forma de compensar minha aceitação diante do meio social no qual me encontro, ou seja, na universidade, eu justifico o consumo dele por outras razões que não seja a de identificação ou qualquer forma de afinidade, afinal, dentro do ambiente universitário, por ser um lugar onde a música brega não é uma música recorrente no cotidiano dos setores historicamente privilegiados ao seu acesso, ela tende a ser vista de forma reprovativa.

Existem as pressões sociais para determinadas músicas que fazem com que os indivíduos se utilizem de argumentos compensatórios para justificar o seu consumo acerca delas. Essa compensação faz com que esse indivíduo se posicione de acordo com os valores impostos pelo meio social no qual ele se encontra. Como forma de se sentir pertencido a esse meio no qual compartilha valores, ele afirma um ponto de vista que seja capaz de não torná-lo segregado ou desprestigiado pelos outros indivíduos inseridos nele.

Portanto, o fato da cultura de massa ter misturado os setores sociais no que diz respeito aos seus consumos musicais, assim como o fato da universidade ter garantido acesso às pessoas historicamente excluídas dela, não significa afirmar que não haja relações de poder e de segregação e exclusão com a música brega. Mesmo o setor social que tem a música brega como cotidiano, ao se encontrar em meio a uma realidade com capitais culturais, sociais e escolares diferenciados, assume um outro discurso acerca dessa estética.

Os setores sociais, como forma de afirmarem seu lugar de prestígio na pirâmide e na sociedade, inevitavelmente criam relações de poder entre eles, gerando assim, formas de disputas, de prestígio. Obviamente que, por cada indivíduo ter seu capital diferenciado, é inevitável que ele vá se apropriar de forma diferente das mensagens e dos discursos da música brega, mas o problema é quando não colocamos mais o setor universitário como chave importante para a segregação dessa estética musical.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

SEXISMO EM REDE


Quero discutir nesse texto sobre compartilhamento de imagens e vídeos íntimos de mulheres por meio das redes sociais. Para interpretar isso, partirei da ideia de que esses fóruns de discussão e compartilhamento abrem espaço para “tribunais moralistas” que não contribuem para rever a situação da mulher em nossa sociedade, tão farta de casos de violência.

A construção e reprodução do significado do feminino em nossa sociedade parte da submissão moral e social atribuída às mulheres e fundamentada em concepções religiosas, patriarcais e sexistas. A mulher é orientada desde criança a se resguardar para evitar qualquer tipo de julgamento moral, ao mesmo tempo em que é orientada a ser sua guardiã. No mínimo, contraditório e estratégico, já que a formação desses valores parte da construção social voltada a um controle objetivo no campo dos significados e sentidos do ser mulher em sociedade. E nada mais conveniente do que fazer do oprimido o seu próprio algoz.

Junto a isso vemos um crescimento desse tipo de violência simbólica por meio das tecnologias da informação e redes sociais. Há uma grande difusão de gravações de vídeo e fotos íntimas como forma de vingança, visando exclusivamente a exposição da intimidade, compartilhada indiscriminadamente através de e-mails, de sites pornôs, de blogs, de grupos em redes sociais e até mesmo por meio de comercialização de vendedores ambulantes.Diante dessa superexposição, abre-se espaço para toda carga e julgamento moral que recai sobre a mulher, cobrada por estar no vídeo em uma situação de intimidade, seja transando, ou seminua, ou dançando sensualmente ou em qualquer situação sensual. Fazendo com que muitas mulheres tenham que se recolher em suas casas ou, até mesmo, tenham que mudar de cidade, rejeitadas pelos familiares e amigos após o vídeo se tornar público.

A hipocrisia disso tudo parte dos nossos tabus fundamentados em justificativas moralistas provenientes do patriarcalismo, concepções religiosas ou sexistas. A reprodução mais tradicional desses valores desconsidera qualquer direito que essas mulheres possam ter e as localizam em um tribunal inquisitório, depreciativo e falso moralista. Refiro-me a falso moralismo, já que o sexo é praticado por grande parte das pessoas e os julgamentos simplesmente recriminam o ato como se fosse algo que não é praticado, como um crime por ter sido revelado o que existe. Outro exemplo, é que o algoz da distribuição dos vídeos, provavelmente homens, entra nesse tribunal absolvido. A exposição não chega a ser um fardo para o homem, pois para a nossa sociedade é comum e aceitável que o homem demonstre sua virilidade e que seja sexualmente ativo. E que a quantidade é um trunfo, enquanto que para a mulher a relação é inversamente proporcional do ponto de vista do índice moral. Nada de novo.

Como podemos ver, essas situações nos colocam frente a frente com os significados construídos e reproduzidos pela nossa sociedade, pelo que esperamos do papel social de homens e de mulheres. O que, de certo modo, beira ao absurdo continuar sustentando uma estrutura de gênero em que existem todas as permissões sexuais para homens, e que esses utilizam como justificativa para atos de perversão e violência sexual; e por outro lado, mulheres que precisam se proteger e se defender da animalesca atitude masculina e do julgamento das convenções sociais. Enquanto continuarmos compartilhando e alimentando esses tribunais morais, estaremos dando vazão para que as mulheres continuem sendo desrespeitadas como mulheres, com iguais direitos, como seres humanos.

Música Brega: Modinha Retrô II

Texto dedicado a Alysoul e Rebeca Machado

No texto “Música Brega: Modinha Retrô I” publicado por mim aqui no blog, eu atentei para o fato de que a música brega, quando relacionada com a realidade do setor social oriundo dos meios universitários, tende a ser valorizada apenas quando os artistas não ameaçam mais os cânones das pirâmides estéticas desse setor. Não é por acaso que os artistas legitimados por ele, são os artistas dos anos setenta, ou seja, aqueles que já não penetram com tanta intensidade no cotidiano e na memória auditiva do público mais periférico.

Neste segundo momento, gostaria de prolongar a discussão, porém, inserindo um termo utilizado por Rebeca Machado no evento “A noite mais brega da cidade” produzida pelo “Cine Vitrola” o qual ela denominou “Fetichização da Música Brega”. Para chegar a essa questão, proponho um debate acerca da apropriação/ interpretação do conteúdo do cancioneiro brega pela chamada elite intelectual, assim como o inevitável capital cultural manifestado na apropriação e na interpretação desse conteúdo e a forma como essa estética termina por se assumir para esse setor social.

Antes do tema referente à música brega ter sido explanado pelo professor Romero Venâncio no evento, foi transmitido o documentário “Eu Vou Rifar Meu Coração” de Ana Rieper que, com uma espécie de viagem ao imaginário romântico brasileiro a partir da obra dos principais nomes da música brega, é construído com uma série de entrevistas, não só com os chamados representantes da música brega, mas também com pessoas comuns que de alguma forma se sentem atraídas por aquela estética musical.

Entretanto, apesar da proposta do documentário, o que podemos notar ao longo dele é que em nenhum instante algum depoente para falar sobre sua experiência de vida ou sobre sua relação com a música brega, necessitou criar um tipo, ou seja, um esteriotipo para se afirmar como um fá incondicional daquele gênero musical. Em outras palavras, mesmo consumindo a chamada produção musical brega, tanto seu público quanto os seus artistas não precisavam usar roupas esdrúxulas, roupas descombinadas, artefatos exagerados.

Na verdade, os ambientes pelos quais o documentário passou, eram ambientes normais àquelas pessoas, ou seja, faziam parte de seus cotidianos, enfim, estavam dentro de uma normalidade corriqueira. Em Canindé de São Francisco, eu tive o prazer de entrevistar Bartô Galeno com Márcio Santos, meu aluno na época e atual amigo. Na entrevista ele estava vestido com uma calça jeans, tênis e uma blusa bege. Simples assim. Quem não conhecesse o autor de “No Toca Fita do Meu Carro”, veria Bartô se misturar a qualquer outro na multidão.

No entanto, geralmente quando vamos a uma festa organizada por pessoas que em sua maioria não fazem parte de uma realidade periférica, ou seja, nos eventos organizados pelas pessoas dos setores médios da sociedade e que querem fazer uma espécie de elogio à chamada música brega, tendemos a encontrar indivíduos com roupas espalhafatosas, com acessórios cheios de descombinações gritantes, ambientes com ornamentos exagerados e com coloridos desconexos.

Por que é construído esse tipo de representação acerca da música brega? Será que mesmo com esses eventos homenageando essa estética musical historicamente segregada do repertório musical considerado de “bom gosto” por essa mesma elite no passado, a música brega pode ser considerada uma música de fato legitimada no repertório musical desse setor social? Será, portanto, que a criação de tipos bregas afirma realmente uma aceitação ou revelam muito mais uma nova ferramenta de segregação cultural?

Devemos observar a forma pela qual o setor médio da sociedade se apropria das mensagens contidas no cancioneiro brega, assim como a forma como ela produz sentidos através das interpretações que esse setor faz delas. Ora, como eu disse no texto anterior, apesar da música brega se encontrar mais diluída em diversos setores sociais, é fato que em geral ela ainda tende a ser uma estética musical ainda mais consumida entre os setores menos favorecidos. Nisso podemos pensar acerca do capital cultural.

O capital cultural diz respeito à bagagem de informação acumulada por cada setor social. Essa bagagem é resultante do que cada indivíduo, de acordo com suas experiências vivenciadas em sua vida a partir das interações construídas em seus ciclos sociais, vai agregando enquanto valores, crenças, etc. Ao se deparar com os discursos da música brega, os indivíduos desses setores geralmente vão tender a considerar as mensagens “bobas”, “superficiais”, “infantis”, isso por que as expectativas linguísticas e culturais são diferentes do repertório cultural dos artistas e do público geralmente consumidor da música brega.

O problema é que o setor médio cria uma realidade a partir do parâmetro dele e isso faz com que o universo da música brega termine se expressando de uma forma não condizente com as expectativas dos meios sociais de onde ela geralmente advém. Surgem então os caricatos. Essa imposição de perspectivas culturais faz com que se confundam algumas intenções, isto é, aparentemente, ao legitimar esse gênero musical, os discursos dos setores médios parecem se mostrar preocupados em pronunciar uma defesa a essa estética; por outro lado, por se impor um valor de classe mesmo defendendo essa música, a segregação termina por se manter.

No final das contas, o que podemos averiguar nessa relação de apropriação dos setores médios da sociedade é uma espécie de fetichização da música brega. Faço uso desse termo, pois de fato o fetiche diz respeito a uma excessiva admiração por um determinado objeto, no caso a música brega, mas esse excesso termina por não ser esclarecedor por quem o cria. O fetiche nada mais é do que uma espécie de alienação em relação a um objeto, ou seja, eu gozo com ele, mas não sou capaz de simbolizá-lo, isto é, de analisa-lo criticamente.

Enfim, o fetiche não passa de um objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta culto. A música brega como é apropriada pelos setores médios da sociedade tende a ser o próprio fetiche. Indivíduos dizem supervalorizá-la, por isso mesmo prestam culto a ela como se ela fosse algo além do mundo concreto, porém, deixam de visualizá-la em seu contexto real. Por isso mesmo que ela tende a ser caricatural para o setor médio, e, portanto, excluída dos padrões do “bom gosto”. Continua sendo ridicularizada e “homenageada”. Assim como um fetiche, ela é admirada alienadamente.

A música brega é cantada porque suas músicas são engraçadas e o riso é uma excelente ferramenta para a manutenção do poder, afinal, o riso estabiliza, põe as coisas em seu devido lugar, ele é o fiscalizador de toda a moral social. Assim como nós marcamos nossas bochechas com carimbos vermelhos da vergonha ao escorregarmos em uma casca de banana, nada mais favorável a uma boa gaitada do que se deparar com uma frase rimando amor com dor. É o capital cultural e escolar sempre mostrando as garras do poder baby!

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Música Brega: uma modinha retrô I

Texto dedicado a Alysson Cristian (Alysoul)

Depois que o historiador Paulo César de Araújo lançou o livro “Eu não sou cachorro, não”, começou a chover uma série de artigos científicos abordando sobre a música brega. Devido a esse crescimento referente a essas pesquisas, tendemos a achar que o universo musical brega, por agora se encontrar inserido e debatido no universo acadêmico, deixou para trás aquela triste representação pejorativa historicamente criada e reforçada pelos setores médios da sociedade.

Mas com isso eu pergunto: de qual música brega estamos falando? Ora, por terem se influenciado com o livro do autor citado anteriormente, os pesquisadores insistiram e insistem em problematizar a questão do gosto e do preconceito musical a partir da música brega estudada por Paulo César, ou seja, a que existiu entre os anos de 1968/1978, que vale lembrar, na época era taxada como música cafona. Porém, será que a música brega atual, assim como a cafona, tem sido defendida e pesquisada?

Antes de tentar responder a essa última questão, gostaria de fazer uma observação: não acredito que só pelo fato da cultura de massa ter diluído mais essa separação de música para ricos e para pobres, que se deixou de haver preconceito de um universo social para o outro. Em uma sociedade de classe como a nossa, todo o setor social privilegiado, como forma de se afirmar identitariamente, necessita estabelecer critérios de valores estéticos e artísticos com o intuito de manter as barreiras sociais. A música brega não escapa dessas barreiras.

Mesmo sendo consumida por universos sociais heterogêneos, ela, por ser historicamente advinda de setores sociais mais periféricos, ainda sofre preconceito. Isso acontece devido a uma disputa pelo prestígio, pois para que o setor privilegiado não tenha seus cânones ameaçados, ele busca uma tentativa de manutenção de seu poder na hierarquia a partir de classificações. No caso da música brega, o setor socialmente favorecido é o setor médio representado por pesquisadores oriundos dos universos acadêmicos.

O meio mais eficaz para que esse setor privilegiado consiga consolidar esse poder é a partir do discurso e a relação com o passado. O discurso porque através dele, esse setor, a partir de suas argumentações e tendências ideológicas, insere seus valores de classe; a relação com o passado por que é dela que esse setor consegue encontrar uma estratégia para se aparentar como “salvador e representante da cultura periférica” ao mesmo tempo mantendo suas táticas de exclusão no contexto presente.

É nessa relação com o passado e com o discurso que se encontra a música brega em meio à produção acadêmica. Como dito no início, geralmente os pesquisadores recorrem à música brega da década de 60 e 70. Essa necessidade de legitimar a estética do brega só a partir dessas décadas, diz respeito a uma necessidade que esse setor tem de se apropriar das manifestações populares no momento em que elas não mais oferecem perigo aos seus cânones, para com isso, não perderem a condição privilegiada da pirâmide social.

Artistas como Paulo Sérgio, Odair José, Fernando Mendes, Waldick Soriano dentre outros, apesar de terem sido bastante consumidos no passado, hoje são artistas que não mais possuem tanta frequência entre os setores periféricos. Valorizando esses artistas, o pesquisador representando o setor médio da sociedade, aparenta estar salvando os artistas populares e evitando que estes caiam no esquecimento, mas só o aceitam por que eles já não são tão frequentes e vivos atualmente na memória auditiva dos setores periféricos.

Por esses artistas não serem mais tão ativos no cotidiano desse setor, o pesquisador ao confirmar o valor apenas da música cafona dos anos sessenta e setenta, agrega essas produções ao seu “Museu Intocável”, construindo através das ideologias dos seus discursos de classe, uma visão restrita que interessa apenas e unicamente a esse setor social. É por isso que a música cafona das décadas de sessenta e setenta hoje aparece como estética cult, modinha retrô para intelectual se divertir.

Quanto às músicas bregas atuais? Estas continuam sendo vistas com discriminação, pois atuam de forma intensa na comunidade na qual são geralmente produzidas e provocam o medo desse setor médio que é a possibilidade dos desfavorecidos se igualarem a ele na pirâmide social pelo menos a nível estético-artístico-cultural. Em outras palavras, o setor médio precisa insistir naquele discurso: só as minhas músicas prestam e as que não prestavam passam a prestar desde que eu decida se elas prestam ou não.

Podemos notar esse uso do passado como legitimação da manutenção de um poder do setor médio quando vamos vasculhar os estudos acerca da música brega produzida atualmente. Com essa música a relação continua a ser de despeito. Artistas como Silvano Salles, Pablo do Arrocha, Michelle Melo, Banda Prazer de amar, Gang do Eletro, Banda Fruto Sensual, Raquel dos Teclados, dentre outros, continuam sendo desprovidos de aceitação por parte desse setor detentor do capital cultural, e, portanto, do prestígio social.

Aceitar a condição de que a música brega atual, assim como a dita música cafona dos anos sessenta e setenta deve ser aceita, é como se colocasse uma estética musical de forte presença geralmente entre os setores periféricos em uma relação de igualdade na pirâmide social. Ora, coloca-la nessa igualdade significa não deixar transparecer a posição social nítida que confere poder e prestígio ao setor responsável pelas pesquisas referentes a esse gênero musical, ou seja, o pesquisador.

A resposta para isso são os discursos que afirmam que a música brega hoje é lixo cultural. Porém, a história comprova que essa relação de apreciação pela música do passado não vem de agora. Podemos conferir isso com a juventude na década de sessenta oriunda dos setores médios da sociedade que rechaçava da mesma forma artistas ditos bregas que hoje são consagrados, mas que consagravam artistas do samba, por exemplo, que também em tempos anteriores aos anos sessenta eram rechaçados da mesma forma.

O que posso dizer, portanto, é que, não é que a música brega atualmente é inferior a do passado, e por isso mesmo, não deve ser aceita. O que acontece é que, aceitar o passado é muito mais fácil para se manter enquanto prestígio social, afinal, não oferece mais perigo, ainda mais quando o setor médio se usurpa desse passado para resguardá-lo em seu “Museu Intocável”. Não é que a música brega passou a ser valorizada. Na verdade, a música produzida geralmente pela periferia continua sofrendo preconceitos.

Equivocamo-nos quando achamos que o fato da música brega ser pesquisada, significa uma forma de resistência à opressão de classe. No momento em que desqualificamos um momento de produção dessa musica e ficamos a pesquisaro "mais do mesmo" acerca da música brega do passado, é por que estamos preservando dispositivos de opressão de maneira inversa, pois no final das contas, a opinião sobre o que se produz nas periferias continua a mesma, ou seja, a mesma negação dos valores, e, portanto, o reforço das barreiras sociais.

O que existe é nada mais do que um joguinho de poder criado pelo setor médio da sociedade. Engana-se quem acha que o pesquisar a música brega significa aceita-la ou no mínimo respeitá-la. Muitos estão aí dizendo defender a estética periférica, mas quando o assunto entra na música brega atual, o que ouvimos e lemos é uma negação dessas produções. Continua tudo do mesmo jeitinho: o pobre que fique em seu lugar de pobre e que seja rebaixado musicalmente também. A música brega não passa de uma modinha retrô.

domingo, 14 de junho de 2015

Arte de Vanguarda e Educação

Tenho me debruçado a vasculhar com bastante insistência acerca de referências bibliográficas referentes à relação do uso das artes de vanguarda nas salas de aula do ensino médio. Confesso que, se por motivo de falta de destreza da minha parte em descobrir esses materiais ou por carência de fontes sobre esse tema (o que eu tenho achado mais coerente por enquanto), a verdade é que acredito que isso seja algo bastante pertinente e que tem passado despercebido nas pesquisas. Apesar de ser um termo atualmente quase sem uso, a arte de vanguarda possui uma importância pedagógica.

Quando lemos materiais acerca da arte de vanguarda, deparamo-nos com algumas questões referentes a ela bastante precisas, mas que acredito que precisam ser repensadas. Uma dessas questões diz respeito ao fim da arte de vanguarda devido ao seu obscurantismo, ou seja, por causa de sua linguagem ser “não figurativa”, isto é, não compreensível aos sentidos dos observadores comuns da arte. Outro ponto diz respeito ao elitismo, visto que essa arte, devido à sua postura dada ao estranhamento, sempre se manteve afastada e desentendida pelo grande público.

Ora, se a arte de vanguarda possui essa espécie de hermetismo com sua linguagem de difícil acesso e seu elitismo gerando com isso um afastamento do público “leigo” da arte, não significa dizer que por isso devemos decretar simplesmente a sua crise, o seu fim ou a algo não importante. Tenho para mim que a arte de vanguarda pode ser de grande pertinência para a educação básica. Se os docentes buscassem compreendê-la enquanto projeto estético-político-pedagógico, tenho certeza de que ela seria um indispensável recurso a ser utilizado em sala de aula nas turmas do ensino médio.

Se queremos de fato que a arte de vanguarda seja utilizada nas aulas, temos que saber se realmente a escola ou o docente tem o interesse em fazer da educação um instrumento voltado para a emancipação do discente, e não uma mera ferramenta destinada a perpetuar a dominação. Se o docente se mostrar preocupado em proporcionar uma educação baseada na formação crítica, a arte de vanguarda será um excelente recurso; se o educador quiser fazer da educação apenas mais um meio para se transmitir conhecimento, a arte de vanguarda parecerá sem utilidade alguma.

Se analisarmos as pretensões da arte de vanguarda, perceberemos que ela busca romper com a perspectiva tradicional da arte, não só enquanto estrutura em si, mas também enquanto ideia. A arte de vanguarda se propõe a provocar ruptura nos modelos consagrados de arte. Não é por acaso que ela se encontra disposta a questionar esses modelos através de novas combinações discursivas, criando novas formas de linguagens. A vanguarda vem com o intuito de questionar as classificações e hierarquizações engessadas como arte, não-arte; como também ideias de valor estético, etc.

Vale lembrar que essas características não pressupõem apenas um rompimento vazio de propósitos. O que podemos perceber é que por trás disso existe todo um projeto de ruptura, de consciência do olhar sobre a realidade. Para isso se inverte a ideia de representação da realidade, alterando a ideia acerca da criação do artista e da interpretação do leitor da arte. O artista não costuma disponibilizar em sua obra significados prontos, cabendo ao leitor construir seus próprios sentidos através de sua própria interpretação. Isso dá ao leitor a liberdade de exercitar sua liberdade e sua criação.

Acredito que a liberdade e a criação são elementos fundamentais para uma educação que se quer crítica e emancipadora. Uma educação que faça uso da arte de vanguarda provoca o discente não só a se estranhar e a desnaturalizar a realidade a sua volta, condições fundamentais para um conhecimento que se quer crítico, como também produz um espaço para que este exercite sua imaginação, sua criatividade, estimulando assim, sua criticidade por se ver capaz e livre para produzir seu próprio conhecimento a partir do espaço que lhe é dado para construir seu próprio raciocínio.

Certa vez eu pedi que os discentes levassem revistas, colas, tesouras e cartolinas. Separamos várias equipes e eu propus a construção de uma atividade a partir das colagens, método utilizado pelo Surrealismo - movimento de vanguarda surgido na França na década de 20. Propus que recortassem gravuras, palavras, anúncios na forma de associação livre, ou seja, no que os surrealistas chamaram de automatismo, isto é, a construção de colagens sem fazer uso predeterminado da lógica racional, mas sim em usos aleatórios desses elementos na cartolina. Antes da atividade debatemos sobre Indivíduo e Sociedade.

Ao fazerem a colagem, pedi que cada equipe se apresentasse na frente expondo a cartolina. Ao fixarem a cartolina no quadro, pedi para que cada equipe criasse uma trama a partir da colagem apresentada na cartolina sobre Indivíduo e Sociedade. Houve um debate instigante, invenções de narrativas e imaginações inesgotáveis. Na outra aula pedi que trouxessem um texto falando sobre a experiência do trabalho e o resultado foi satisfatório, pois mostraram o quanto foi importante produzir ideias fazendo pontes com o conhecimento trazido em sala a partir da liberdade da criação e da imaginação

Essa liberdade unida à criticidade, à criação, à imaginação, e, portanto, a autonomia, além de ter provocado o prazer estético, terminou gerando uma emancipação do discente. É por isso que insisto que a arte de vanguarda, antes de ser considerada como algo reduzido ao hermetismo e ao elitismo, pode ser repensada e colocada dentro do ambiente educacional, afinal, é a partir do lugar que ela confere ao leitor da arte, que ela estimula caminhos promissores para a construção de humanos críticos e politicamente ativos, participativos na construção de seus projetos individuais e coletivos.

terça-feira, 17 de março de 2015

A educação da crise em crise

Um dos discursos referentes à educação diz respeito à questão da preparação do discente para enfrentar a vida em sociedade. Ora, o fato de os prepararmos para a vida social, em nenhum instante nos dá o direito de achar que podemos nos colocar como personagens completos, dotados de plena consciência e incapazes de falhas. Preparar para a vida significa olhar para ela dentro de sua condição marcada por alegrias e frustrações. A vida é composta por ônus e bônus e isso deve ser trazido recorrentemente em sala de aula.

Ao recorrermos aos livros e teorias que em geral buscam abordar os problemas vivenciados no cotidiano escolar, não conseguimos visualizar de forma mais constante uma discussão referente aos erros e transgressões como valores que também fazem parte do ambiente escolar. Fala-se muito em realidade sócio-cultural, articulação da prática escolar com o contexto do discente, mas existe de forma bastante clara uma lacuna quando o assunto diz respeito ao deslize como forma de aprendizado.

Penso ser de bastante importância questionarmos sobre isso quando optamos em discorrer acerca dos meios e estratégias possíveis referentes ao exercício educacional. A sociedade precisa se deparar com essas questões para romper com a idéia comportamentalista na educação. Os próprios docentes e demais servidores também. Questões como o caos, a desordem, o acidente, o erro, também devem ser reconhecidos como elementos imprescindíveis à prática escolar.

Para esses deslizes e imprevistos eu optei em chamar de “Educação da crise”. Pois bem, a educação por fazer parte da vida, não está em nenhum instante livre dos percalços que esta oferece. O aprendizado, mesmo o formal transmitido no ambiente escolar, vai se configurar de acordo com as predisposições do aluno tais como as suas motivações, alegrias, frustrações que eles trazem de seus ambientes familiares ou de qualquer outra esfera, seja ela de ordem privada ou pública.

A Educação da crise anda em crise pelo fato da nossa cultura escolar se negar a aceitar os desvios de conduta como inevitáveis ao contexto escolar, pois, a partir do instante em que a educação se nega a olhar a crise como parte integrante da vida, ela entra em crise também por não se reconhecer como uma educação feita para e por humanos. Devemos aceitar que errar e acertar são condições humanas, e, por isso mesmo, a crise e a resolução dos problemas na aprendizagem e na vida não se encontram separadas.

O fato de pensarmos a educação como um lugar onde ensinamos os discentes a se inserirem na vida, faz com que a gente tenha que se sentir obrigado a apresentar aos discentes a vida como ela é, como ela deveria ser e como ela não é, pois essas afirmações se sucedem constantemente entre os humanos ao longo de suas existências pessoais e coletivas em meio às suas oscilações de contaminações positivas de esperanças, mas também de frustrações e de arrependimentos.

Quando negamos a crise, inevitavelmente nos acomodamos no controle, pois o controle implica a ilusão de que somos capazes de estabelecer um manuseio do risco. O controle como forma de frear as contradições e as incessantes desordens e imprevisibilidades que fazem parte da crise, tende a produzir conseqüências nocivas para os discentes no plano político. Falo do político no sentido das ações e das éticas construídas pelas decisões vivenciadas pelos sujeitos ao longo de sua convivência com a sociedade.

São conseqüências nocivas pelo fato de educar o discente pelo viés da domesticação já que a negação da crise quer apenas se alimentar da ordem e da previsibilidade. A educação da crise é importante pois coloca o discente em uma situação com a qual nem ele mesmo tem controle, deixando-o como responsável pelas suas escolhas, mostrando ao mesmo tempo que todas essas escolhas implicam conseqüências. Quer faltar aula? Falte; quer chegar tarde à aula? Chegue; não quer fazer a atividade passada em aula? Não faça.

Essas escolhas devem ser sentidas pelos alunos. Os discentes precisam assumir o sentido que eles querem dá as suas vidas, do contrário, em nenhum instante se tornarão personagens ativos de suas histórias. É só sentindo o risco de suas escolhas e as crises por essas escolhas que o discente pode ir aprendendo a se inserir na vida social e ir descobrindo que o seu cotidiano, assim como de qualquer sujeito, implica em rasuras, borrões, acidentes, dores, mas também aprendizados dos mais valiosos.

Como podemos afirmar que preparamos o discente para ser um sujeito cidadão, crítico e consciente de sua atuação no mundo, se não o fazemos sentir em sua pele as dores de suas escolhas? Como fazer a tentativa da construção da cidadania a partir das nossas experiências em sala de aula se o discente se acostuma a ter alguém na hierarquia institucional ditando o que é certo e o que é errado sem deixar com que ele mesmo se implique nas dolorosas e arriscadas escolhas feitas por ele?

Obviamente que não estou aqui defendendo o caos em seu sentido mais extremo. Sei muito bem que é necessário reconhecermos as normatizações, afinal, elas também fazem parte da vida, assim como devem fazer. O que eu me atenho como crítica é a uma educação fadada ao engessamento de normas como se estas, antes de serem cumpridas por consciência, fossem apenas reproduzidas em forma de domesticações e preceitos muitas vezes dogmáticos, falsos moralistas e inquestionáveis.

Eu como docente tenho que mostrar ao discente que o bem é uma condição histórica, social e cultural e se este vive em sociedade, é de fundamental buscar atuar segundo esse bem ou qualquer tipo de entendimento do que seja justiça. No entanto, eu devo mostrar também que a justiça, o bem, dentre outras coisas, são construções humanas e que muitas vezes essas construções dizem respeito aos interesses de grupos sociais que buscam se manter no poder e tornar a sociedade aparentemente coesa e harmônica.

Aceitando o pecado, a desonestidade, a injustiça e não apenas a ordem, a justiça, a paz ou o amor, os discentes construirão as rédeas de seus próprios destinos, responsabilizando-se pelos seus atos para que amanhã na vida adulta, eles não reproduzam o discurso da vitimização política por terem sido educados por uma escola na qual o docente é o dono da verdade. Os discentes precisam do risco e da crise para aprenderem a reconhecer as conseqüências de seus atos, não os culpabilizando apenas para os outros.

Não podemos mais insistir na educação do receio. A educação da crise não pode mais viver o risco de ser esquecida de uma vez por todas.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Ondinas

"Solidão, solidão, tudo é solidão". Disse o homem do quarto escuro.
O moço abriu a janela de seu aposento para ver o mundo.
E este estava vazio.
Tão solitário quanto seu leito; um leito sem mácula de um pecador arrependido.
Há solidão nessa esfera que gira; em cada giro seu se esvai meu sonho e o teu.
Eles são nuvens, são fumaças; vapores que sobem da terra e não voltam mais.
O moço franzino, de lençol na mão, suplicou ao mundo um amigo.
- Quem tem amigo, tem inimigo; o homem é como o camaleão.
- Sim, mas o nada de nada é igual a nada!
- Quem tem o nada tem alguma coisa!
"Solidão, solidão, tudo é solidão. Disse o mago do quarto escuro.
O homem foi ao centro, fez um seguro; garantiu sua vida.
A morte não tem garantia; se paga à vista e não há devolução.
Viver é da escada apenas uma subida; uma alma sempre sofrida, contudo, sem medo de ser.
O rapaz, de vela na mão ascendeu sua luz mais uma vez e fez um pedido: "Companhia".
- Amiga caridade, faça-me uma bondade! Será que tem alguém no mundo?
- Não se pode confiar na sombra dos outros!
- Mas, essa sorte? Que desgraça ser um ser!
- Precisas ser forte!
- Sou um fraco, que mora no quarto, tão escuro como o mundo.
"Solidão, solidão, tudo é solidão. Diz o poeta.
Amei cedo uma moça garrida.
Sua pele era seda pura.
Seus seios duas peras maduras.
Suas coxas eram como o mármore polido.
Fui flechado pelo cupido. "Má sorte minha".
A moça virou retrato, de um quarto escuro, de um morador da rua sinistra onde ninguém passa.
- Desgraça!
- Não diga isso.
- Quem?
Uma ondina me disse um dia: "No mundo tem companhia; inclina o peito, abre os olhos para ver direito..."

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

DA LOUCURA E DA RELIGIÃO

Permitam-me um dedo de prosa....

LOUCURA A ATACADO

A sabedoria do sano declara a loucura a atacado.
Ser diferente mesmo sem ranger os dentes é insanidade, senilidade, babaquice.
O pateta que se mete a esperto expede laudos; todos eles apressados, sempre de olhos fechados.
Há uma venda no rosto preconceituoso;
Há uma máscara na face de todos nós;
Há uma espada na mão sabida de quem diz do doido.
- Quem é o homem para dizer dos modelos que ele próprio criou?
Vejo um mundo que passa e um rasto de desgraça; todas são filhas da razão.
Assalto meu irmão, mas, na esquina, no púlpito puritano peço uma porção de perdão.
Temos o céu no varejo; todo tipo de promessas que desejo; Deus é meu irmão.
O irmão que mando;
O irmão que suborno com propinas na bandeja dos dízimos;
Ou que trapaceio após minha confissão.
- Ah, humanidade sana!
- Ah, mãos que estrangulam os sonhos antes da aurora romper.
Pois, ainda em minha cama ouço uma voz que me diz como será após o amanhecer.
Todos pensam estar livres; confiam no seu livre arbítrio e no direito de ir e vir.
A loucura verdadeira, aquela sem eira e beira é uma boa loucura.
Defecar na rua sem pagar a conta d’água é sana esquizofrenia.
Andar nu sem cartão de crédito, e não pagar parcelas, e não ter méritos na vida; é simplesmente ser.
Somos nossas manias!
Somos um punhado de fobias!
Somos psicotrópicos prescritos animais proscritos, meros apitos na boca de quem pode dizer!
- E a loucura onde fica?
- Onde há companhia!
Sem companhia somos sadios;
Com ela, somos panos; tecidos costurados no manequim da razão pura.
Conte-me de teu irmão; carne de tua carne; nervo do teu nervo.
Diga-me do pobre; daquele que crer nas tuas promessas e em teu Deus!
A loucura anda solta no paraíso e na terra.
Só no inferno há sanidade!
Vejo um menino sujo com uma placenta na mão.
Sua mãe não queria mais celulite, nem quebrar os seios na amamentação.
Vejo um homem casado fazendo promessas a mocinha virgem defronte a igreja após o culto.
O Senhor fechou os olhos.
Tudo isso é ser gente.
É ser igual.
Normal.
Racional.
E eu fui ao sanatório, fiz do banheiro meu oratório, tomei meu diazepam, e todo mundo se acalmou...

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O dizer adeus
Quando o amor encontra motivos para dizer adeus;
quando uma senhora a qualquer hora te manda embora;
Quando tua mulher te confunde com um qualquer;
Quando ela se esquece de teu nome e te chama de Antônio;
Então chegou o tempo de não perder tempo.
Contudo, o coração é um irmão danado.
Mesmo zangado insiste em fincar os pés no chão;
tem pena de suas raízes;
sofre dores de todas as matizes; pois, seus olhos não se conformam em ver os retratos pendurados no quarto.
Quando tudo isso ocorre, é certo que alguém morre.
Amar e ser posto na rua, é ferida, expõe tua alma nua;
Te faz chorar até calar as vísceras;
Te joga no labirinto de lembranças boas;
Te faz comer o amargo da indiferença até que vejas tua moça nos braços daquele que passa.
Amar é coisa divina;
Faz teu coração não aceitar propinas;
Somente o real é o que importa, no entanto, um sonho de boas vindas anima a pobre figura caída.
Sara as feridas, desperta quimeras cheias de borboletas coloridas.
Mas, quando teu amor amarelou,
Ou quando as palavras param de dizer,
Não adianta mais tentar.
Deves ser forte,
Aceite o teu morrer até que uma pomba voe no teu quintal...

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Amar de novo...
Ela disse ao moço: Eu te amo.
Ela fez todas as confissões possíveis;
Não poupou os valores semânticos,
Se fez entender em meio aos gemidos de prazer num estrada de barro;
A lua foi a testemunha de seu afeto.
E o moço beijou seus pés e os lavou com suas lágrimas.
Ele e ela foram corações cúmplices,
foram desejo associado, uma ânsia de mais gozo, um rosto suado em dois corpos despidos.
Ele cobrou mais, não suportou a dúvida no olhar opaco de sua amada distante.
A moça correu pelo sertão,
fugiu sem destino,
falou sem tino,
feriu o moço com as laminas afiadas de sua língua irreverente.
Pare!
Trate-o pelo menos como um parente!
Diga-lhe que quem sabe tudo pode ser diferente!
Repensemos as encruzilhadas da vida!
Ela disse: Vá embora, aqui, agora, é lugar estrangeiro;
Teu vernáculo não tem rima.
Trate-me como tua prima; aquela que mora longe, aquela para quem tu escreves todo final de ano.
Ele enrugou o rosto, deixou os ombros atrás de si.
Percorreu as avenidas da cidade em busca de uma certeza, uma palavra delicada, um grito que levasse do peito a correnteza de dor.
O moço sem pele e osso, era nervo exposto ao calor do sol ou a frieza da noitinha.
Chorou uma prece para que se Deu o ouvisse, sua amada trouxesse.
O ser divino cochichou baixinho: "Eu responderia tua súplica se em seu coração tu coubesses. Não adianta medir com régua, nem andar uma légua para chegar a lugar algum. Aqui tu não cabes. A menina já foi embora".
Ele disse, então, ao tempo: "Traga de volta minha alma, conforta esse coração choroso, pois,sem alma não posso amar de novo"...

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O poeta chora...
O poeta chora lágrimas em forma de cachoeira de palavras,
Ele sabe que enunciar é necessário,
Pois, o sentido é do coração operário.
A alma acalma quando as frases são boas.
Ou se transmuta havendo luta.
O poeta se torna oração, verbo, predicado, um contexto de seu texto;
Um pretexto do coração.
O poeta viu que na serra havia silencio;
As palavras não acharam um lugar.
Não havia o que fazer;
O dicionário era de uma biblioteca vazia um funcionário calado.
O livros eram enfeites na estante empoeirada.
Só há vocábulo onde houver barulho.
Só há semântica se o homem sonhar.
O poeta sonha sua dor com a cabeça sem travesseiro,
acordou com cãibras no pescoço,
Dormiu de olhos abertos sem aliviar o cansaço;
Não encontrou uma forma de purgar o derretido ferro,
ou de livrar-se do aço cravado na fibra de carne coronária.
O amor é laço; é vida, é morte, é balsamo; é dor no estômago, no fígado, no baço.
O amor é sol amigo, ou enchente que mata gente.
Nos faz colegas, mais chegados que um parente;
Ou traz inimigos que dormiram conosco a noite passada.
O bom amor é carne assada no ponto, é cerveja com feijoada.
Mas, também pode da vida ser uma trapassa, uma armadilha para quem passa, ou a seta de um cupido insistente.
O poeta disse do amor que se foi;
Rimou seu pranto em busca de alento.
Congelou o tempo em sua prosa, pôs no retrato um momento.
Era a hora da dor;
de dizer adeus a sua flor,
de olhar o jarro vazio na sala escura, da casa solitária, perto da rua onde alguém mora.
Era uma poesia com cólicas no espírito.
Era um homem sem norte, sem sorte, e em nada forte.
Era alma diluída pela linguística de seu amor.
O poeta tentou dizer,
Se esforçou para articular os nervos contraídos, ou afrouxar as vísceras espremidas no seu corpo lânguido na hora da despedida.
- Aquieta-te!
- Cala-te!
- Não diga mais nada!
- O amar não se compra!
- O amor não está a venda!
Ele é um brilho no olhar de quem sente saudades de ti.
Ele é um sorriso no rosto da amiga de manhã cedo.
É um abraço no fim tarde.
São finos dedos que alisam tua derme no silêncio de um segundo que diz o que não sabemos dizer em qualquer tic-tac do relógio velho da cozinha.
O amor é sentido calado num coração afeiçoado por ti.
É doce palavra que desce como água gota a gota até teu peito relaxar.
Não se humilhe homem do sertão!
Em toda estrada haverá uma encruzilhada.
Nela as pessoas se encontram,
Pedem perdão,
Escolhem uma trilha,
Arreiam um ebó de paz,
Esquecem as brigas,
Cessam as intrigas.
O poeta viu na esquina norte da encruza perto da casa de fulano uma moça faceira, em pé, debaixo de um pé de aroeira. A menia sorriu e o poeta se calou...

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A moça da serra...
- Menina, teu seios doces segregam carinho, afeto; destilam amor!
Amanheceu em Campos, o vidente viu um moço com um tridente na mão.
O povo do santo lavou o pranto daquele que acende sua vela na chama da caridade.
A cachoeira de Oxum está colorida; São rosas, flores, girassóis, e margaridas.
- Sinto o cheiro do perfume que te encanta;
- Ouço o choro daquela que sobe das águas para trazer um sonho;
- Vejo nas suas mãos um rosto: É a menina, a moça, são duas mãos que te afagam.
- O teu escuro silêncio no quarto solitário será quebrado com gemidos, e confissões de amor.
- Ontem, Elegbara disse que um velho andou na Avenida Sete.
- E foi?
- Certamente tem gente no mundo. Há gente mais gente, gente que ama, não importa a cor.
A menina abraçou o moço velho. Ele estava quebrado, seu peito aberto, seu coração violado.
Ela o tomou pela mão, e o levou à serra onde as águas sangram e levam umidade a o todo o vale.
O moço refrescou o mutuê; falou com os valentes de arco e flecha na mão.
Havia uma oca, onde morava um pajé de muita fé.
A serra chorou com o som da maraca que aquietou o silencio do vale, até o carcará voltou ao ninho.
- Assim são os homens!
- Eles buscam carinho!
Há um caminho onde se vê uma estrada que nos leva aos sonhos depois do verão.
Há uma moça e um moço que recomeçam uma história esquecida;
foi uma despida, breve partida de um viajante do tempo.
- Psiu! Menina, ele voltou, sim, aquele que foi embora.
- Ele veio contar uma história, um trama do sul, de uma terra distante, onde os homens comem gordura de peixe, e bebem o leite da baleia.
- Moça do vale! Não temas o susto de uma noite passageira!
- Espera!, toma banho de ervas, fica faceira, descansa debaixo da aroeira!
Elegbara girou, girou a gira da noite, já passa da meia noite.
- Esse homem quando voltar vai falar de açoites!
- Não desejo as pedras no rosto de meu desafeto, cuidado!
- Por que?
- Tem ebó arriado, tem vela acessa, tem prece no congá, tem Orixá na hora!
Tem uma curva na estrada, não sei para onde vai.
- Pergunte a Ifá!
- Na encruzilhada da arupemba encontrei meu santo, minha pemba.
- Toda cabeça tem sua erva, toda senda tem seu destino.
- E eu pra onde vou?
A chuva passou; agora, o sol voltou ao Canine, de lá se vê a grande serra.
Ela é orgulhosa, ela é grande como seu povo.
- O moço vai descer a estrada que leva ao vale que fica perto do irmão consolo.
O moço viu um novo rumo; nele havia verdade, água doce, e real afeto.
A moça sorriu de novo,
Alegrou o povo.
No céu,  estalaram-se foguetes.
As mulheres se cobriram de enfeites.
O amor nasceu perto da serra, findou guerra, cessou a rixa.
Águas passadas não movem cata-ventos,
nem matam tua sede, nem cessam o tormento.
- Amar é preciso!
- Não se esqueça a menina da aroeira!
- Nem da moça faceira!
É ela que te abraça, isso não tem jeito.
O passado mandou suas duas sombras e elas se encontraram no quarto da senhora da boa hora que fica no vale perto da serra; lá nunca o verde seca, nem as flores murcham, nem os homem pecam longe de suas esposas.
A menina apagou a luz, deitou-se na cama, abraçou o rapaz aflito e foi dormir....
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Conspiração

CONSPIRAÇÃO
A missa da tardinha, após a ladainha de um padre fiel terminou na calçada onde o povo sentado assistia, avidamente, o poslúdio daquele culto.
Deus sentiu náuseas; o divino foi às últimas consequências: "Eu, doravante, sou apenas um nome".
Os homens tomaram para si esse substantivo próprio e dividiram o espólio da fé.
Agora tem culto em todo canto;
É uma forma silenciar o pranto daquele que não crer.
O melhor crente é o ateu, pois, admite a sua descrença.
Confessa sua fé na falta da mesma.
Conheci um homem que andou com Deus.
Desde moço, o rapaz, de joelhos clamava aos céus.
Esse senhor, agora, maduro pulou o muro e foi para um gongá.
Lá o chão é de barro, suas vestes se sujam de cinza e lama.
Seus amigos não gostaram;
Sua mulher o amaldiçoou;
Seus antigos irmãos, com piedade, exorcizaram seu demônio.
Caridade!
Caridade!
Isso é caridade! Não tem preço o que fizemos por ele!
Fizemos todo o possível até o limite da paciência!
Isso faz a diferença!
Agora, é com ele!
O moço se animou no gongá;
Alegrou almas aflitas;
Andou com elas até a aprenderem a correr.
Lutero não gostou do crente naquele lugar.
O motivo é que ele está louco!
Essa é causa!
Nossa teologia é certa; é a razão do espírito; a revelação dos céus.
Interne-o!
Interne-o!
Conspirem contra ele! Estamos numa guerra santa!
Ele não aguenta, seu coração é carne, então ele se quebranta!
Queima a casa do diabo e tirem o rapaz de lá!
Vejam, até, sua mulher o deixou!
Que a cidade saiba que nossa fé tem argumento.
Nossas premissas se sustentam!
Nosso culto é legal!
Deus voltou ao mundo; de súbito Jeová desceu à terra.
Parem que essa porfia!
Tudo isso é infâmia humana, eu conheço o menino;
Desde moço ouço o seu soluço, vejo sua cândida alma;
Ele não faz mal a ninguém; nem no mundo eu estava para brigarem por mim!
Deus trouxe uma velha samaritana;
A cidade viu sua pele enrugada e envelhecida.
Seu fedor espantou a todos.
Os fieis não suportaram a criatura.
O problema está na falta de fé; ela não busca, não se arrepende!
O infortúnio é o seu destino!
O inferno sua recompensa.
Mas, no mundo tem quem pensa;
tem quem se acostumou com o pó, com a sujeira dos homens.
O moço do gongá abraçou a mulher pobre.
falou-lhe palavras que entendesse;
não usou dogmas, nem argumentos de fé.
A senhora nojenta, mulher asquerosa, de quem todos fogem se pôs em pé.
Então o Senhor Deus sorriu: "Parece que na terra ainda tem amor".
Deus voltou descansar.
E o homem do gongá andou sete dia até que seu peito parou.
Não há religião que a faça a diferença se pusermos na frente nossas crenças.
Há na terra uma conspiração que distancia os irmãos e silencia o assobio de Deus.
Seu vento paira sob o firmamento.
É uma maravilha da criação.
Que cesse a tormenta, assim não se aguenta!
Há púlpitos, há gongas;
Há mármore caro,
Há barro sujo.
Mas, se lá dentro Ele está, então, não há conspiração...

sábado, 24 de janeiro de 2015

CONSPIRAÇÃO

A missa da tardinha, após a ladainha de um padre fiel terminou na calçada onde o povo sentado assistia, avidamente, o poslúdio daquele culto.
Deus sentiu náuseas; o divino foi às últimas consequências: "Eu, doravante, sou apenas um nome".
Os homens tomaram para si esse substantivo próprio e dividiram o espólio da fé.
Agora tem culto em todo canto;
É uma forma silenciar o pranto daquele que não crer.
O melhor crente é o ateu, pois, admite a sua descrença.
Confessa sua fé na falta da mesma.
Conheci um homem que andou com Deus.
Desde moço, o rapaz, de joelhos clamava aos céus.
Esse senhor, agora, maduro pulou o muro e foi para um gongá.
Lá o chão é de barro, suas vestes se sujam de cinza e lama.
Seus amigos não gostaram;
Sua mulher o amaldiçoou;
Seus antigos irmãos, com piedade, exorcizaram seu demônio.
Caridade!
Caridade!
Isso é caridade! Não tem preço o que fizemos por ele!
Fizemos todo o possível até o limite da paciência!
Isso faz a diferença!
Agora, é com ele!
O moço se animou no gongá;
Alegrou almas aflitas;
Andou com elas até a aprenderem a correr.
Lutero não gostou do crente naquele lugar.
O motivo é que ele está louco!
Essa é causa!
Nossa teologia é certa; é a razão do espírito; a revelação dos céus.
Interne-o!
Interne-o!
Conspirem contra ele! Estamos numa guerra santa!
Ele não aguenta, seu coração é carne, então ele se quebranta!
Queima a casa do diabo e tirem o rapaz de lá!
Vejam, até, sua mulher o deixou!
Que a cidade saiba que nossa fé tem argumento.
Nossas premissas se sustentam!
Nosso culto é legal!
Deus voltou ao mundo; de súbito Jeová desceu à terra.
Parem com essa porfia!
Tudo isso é infâmia humana, eu conheço o menino;
Desde moço ouço o seu soluço, vejo sua cândida alma;
Ele não faz mal a ninguém; nem no mundo eu estava para brigarem por mim!
Deus trouxe uma velha samaritana;
A cidade viu sua pele enrugada e envelhecida.
Seu fedor espantou a todos.
Os fieis não suportaram a criatura.
O problema está na falta de fé; ela não busca, não se arrepende!
O infortúnio é o seu destino!
O inferno sua recompensa.
Mas, no mundo tem quem pensa;
tem quem se acostumou com o pó, com a sujeira dos homens.
O moço do gongá abraçou a mulher pobre.
falou-lhe palavras que entendesse;
não usou dogmas, nem argumentos de fé.
A senhora nojenta, mulher asquerosa, de quem todos fogem se pôs em pé.
Então o Senhor Deus sorriu: "Parece que na terra ainda tem amor".
Deus voltou descansar.
E o homem do gongá andou sete dia até que seu peito parou.
Não há religião que a faça a diferença se pusermos na frente nossas crenças.
Há na terra uma conspiração que distancia os irmãos e silencia o assobio de Deus.
Seu vento paira sob o firmamento.
É uma maravilha da criação.
Que cesse a tormenta, assim não se aguenta!
Há púlpitos, há gongas;
Há mármore caro,
Há barro sujo.
Mas, se lá dentro Ele está, então, não há conspiração...                    

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A MOÇA DA CALÇADA

Na calçada de meu prédio sentava uma moça às sete.
Fiel era a menina ao relógio implacável.
A pobre criatura não percebia que os minutos, os segundos e até as horas rasgavam sua face com sucos na derme.
A terra debaixo de seus pés silenciosa lhe preparava uma cova.
Seu rosto, dia triste, dia alegre esperava o carro de seus sonhos e pesadelos.
Por vezes, o sorriso lhe curou as rugas.
Outro dia, seu queijo feria o chão;
O chão onde todos pisam e se cansam.

A moça sonhava proibida.
A desgraça estava na praça.
Na praça da frente, perto do posto, distante da gente.
Eu a amava no silêncio.
Suas lágrimas; sorvi contente.

Não lhe era parente.
Morava no mesmo prédio.
Andava na mesma rua.
Vivia o mesmo tédio.
Pois, ela não me via.

A pobre menina bonita que me enchia os olhos e acelerava o peito se foi.
O carro a levou; seu motorista vestido de terno bege era o foco do seu olhar.
No canto, a dez metros de lá, do seu costumeiro lugar de sentar, chorei sua partida.

O coração não escolhe a quem amar.
Enganoso e estranho órgão que pulsa sangue sem parar.
Em diástole e sístole ele te leva a lugares que não podes.
Crueldade da natureza!
Malvadeza!
Amar sem ser amado; uma tortura sem cura!

Nunca mais a vi.
Dizem que foi para São Paulo.
Pensei que a moça era carioca.
Beijei o lugar onde ela sentava todas as noites às sete.

Destruíram a calçada;
Construíram um Shopping.
Nada restou no chão de concreto.

- Psiu!
- Silêncio!

Vejo uma morena sentada na mesma calçada!
Vejo um amor não consumado.
Vejo um coração, agora, confortado.
A vejo na lembrança que ainda arde nos olhos do peito:
- Ela não tem defeito!
A culpa é da calçada...







quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

PRESÉPIO SERTANEJO

É natal em Campos;
A avenida sete de junho parece um rio de gente.
É gente de todo canto e de toda cor.
São faces sorridentes, ou olhares de dor.
É natal em Campos;
O gado continua no pasto;
O povo permanece crendo, pois, no sertão, acreditar é vício.
Ainda vejo um “cariri” envergar seu arco.
Ainda existem “negros” nas senzalas.
No comércio da cidade, as calçadas tem o piso liso.
Feliz de quem nele não escorrega.
Se você me saudar, dar-te-ei um abraço, um sorriso.
Isso é coisa que não se nega, mesmo, se no estômago a comida estiver fria.
É o resto da fome do dia;
É a flecha que ninguém pega.
É uma noite sem lua num sertão sem pão.
Para muitos, o natal de Campos não tem esperança.
É natal e Papai Noel de papel.
É uma alma que se cansa.
Uma caçada sem presa, só pressa.
E ai de quem nela tropeça.
É natal em Campos;
Carros de som pela cidade espalhados;
O povo em todo canto de radio ligado;
Mensagens de felicidades nos intervalos comerciais.
Isto é Campos; é terra de cristãos.
Somos irmãos; compartilhamos do mesmo chão.
O chão do sertão.
Do sertão de Peão, de São João, de vaquejada, de banhos na barragem, de missas aos domingos, de imposto de renda, de tiroteio na rua, de gente nua em vestidos de gala.
O sertão tem veredas e encruzilhadas cercadas de fazendas.
É natal em Campos, a vida continua.
É uma corrida sem volta.
É uma viagem de ida.
É a sorte tua, que por nada ninguém troca.
É natal em Campos.
É natal no sertão.
É tempo de presentes, de abraçar os parentes depois de um dia de sol quente.
É natal em Campos de Rio Real.
É missa do galo.
É Ave-Maria.
É ambulância na estrada com uma vida aflita e uma verba vazia derramada como água no copo de poucos.
É madrugada em Campos.
É noite calada.
É boca cerrada de medo ou covardia.
É natal em Campos;
É Real...

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Diálogo entre Zé Coragem e Zé Covarde

Zé Covarde: - tu é metido a corajoso!

Zé Coragem: - tu é que é um covarde!

Zé Covarde: - Compadre, você não percebe que perde seu tempo tentando confrontar as regras sociais?

Zé Coragem: - Oxente, e você veio pra vida para aceitar as coisas como dizem que elas devem ser?

Zé Covarde: - se a maioria aceita as coisas como elas são, é por que a realidade atual é que é a correta! Não tem por que mudar!

Zé Coragem: - E quem te disse que o fato da maioria aceitar essa realidade, significa que ela é reconhecida como a melhor para essa maioria?

Zé Covarde: - Não é?

Zé Coragem: - Você não coloca em questão alguns grupos sociais que querem dominar a sociedade, e que por isso mesmo, insistem em fazer dessa realidade a verdade?

Zé Covarde: - Independente disso, você vive a sua vida sempre fazendo as coisas que gosta?

Zé Coragem: - Não, mas você sempre aceita as coisas que os outros dizem que são corretas?

Zé Covarde: - Não, mas você se acha muito corajoso...

Zé Coragem: - E você é muito do covarde

Zé Covarde: - Você acha que é ser medroso aprender a se submeter às regras?

Zé Coragem: - Eu acho medroso o fato de você não questionar as regras...

Zé Covarde: - Viver de acordo com as exigências da sociedade é ter medo ou ter maturidade?

Zé Coragem: - É não ter peito para questionar, é viver fugindo das dúvidas e das contradições

Zé Covarde: - E você quando questiona, busca criar estratégias para superar essa realidade ou se utiliza das indagações justamente para não confrontar a realidade de forma concreta?

Zé Coragem: - Tem razão, mas você, mesmo aceitando essa realidade, não pensa vez ou outra em uma outra realidade?

Zé Covarde: - Tenho que admitir que muitas vezes penso sim.

...

Zé Covarde: - Coragem, será que você também não é covarde?

Zé Coragem: - Covarde, será que você também não é coragem?

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O prazer estético I

O que seria do humano dotado de linguagem e excedido de duvidas, se não tivesse a capacidade de eleger determinados objetos para extravasar todas as suas faltas e desejos reinantes em sua alma? Sequer suportaria o enigma que perdura a sua realidade se não fosse apto para se adentrar nos prazeres estéticos que constrói ao se relacionar com certos objetos a sua volta.

Misturada a uma realidade que definimos como real, todos nós humanos carregamos circuitos desenfreados que perpassam, e, portanto, desmoronam toda a afirmação que fazemos do que é real. O que afirmamos se embaralha com afirmações que giram em outras órbitas. O que dizemos que somos, em um rápido instante se desfaz, fazendo-nos re-significar tudo que havíamos jurado ser verdade.

A alma humana é um labirinto e tudo o que nós podemos mapear dela não passa de contornos cambaliantes em suas imprevisibilidades. Se nossos pés se avançam na certeza do que achamos ter domínio, muitas vezes não temos controle do que achamos dominar, e os nossos passos se tornam meros rastros transfigurados e desaparecidos pelos ventos desnorteados que nos perseguem.

O prazer estético que temos das coisas serve para que a gente possa ter a fantasia do controle que não temos de nós. O prazer estético promove a ilusória capacidade de nos orientarmos diante de um mundo desenhado e rabiscado por nós mesmos que não passa de re-configurações deslizantes e incapazes de nos tornar aptos em apreender a plenitude conceitual daquilo que nos afeta.

É com o prazer estético que nós somos capazes de escavar aquilo que sabemos sentir, mas que não sabemos dizer. É dele que nos sentimos libertados dos nossos próprios emaranhados, mesmo que para isso a gente continue sem saber qual o caminho e qual a possível estratégia podemos encontrar para superar de toda essa falta de sentido que não nos garante nenhuma forma de libertação.

Ah, mas de que vale esse prazer estético, se ao mesmo tempo em que ele me garante o conforto, esse conforto não passa de mera fantasia de minha mente? Vale tudo. Ele nos garante um momento de suspensão de uma realidade crua, objetiva, calculista e massacrante de cronômetros e exigências, e nos leva, pelo menos por um instante, a uma realidade que escapa a todo esse pesadelo.

O prazer estético nos garante o reencontro com a alma da criança; com a alma recheada de afetividades e de leveza. Entrar nesse prazer é aceitar a plenitude que foi rompida pela crueza da cultura; é nos possibilitar uma reconstrução de nossa integridade que foi despedaçada a partir do instante em que aprendemos a nomear o mundo, abstraí-lo, e por isso mesmo, expurgá-lo de nossas vidas.

O humano que se deixa navegar no prazer estético, além de encontrar seu provisório sossego, exercita sua postura consciente e crítica de si e do mundo que o cerca, afinal, deixa rasgar a alma, desfaz e passa a rever seus fantasmas que o corroem pelas entranhas e por todo seu espírito potencialmente fracassado, o qual, se por um lado soluciona enigmas, por outro, perde-se por entre eles.