quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Sertanejo Universitário: do povo à classe média

Não podemos falar em cultura se não pensarmos nas trocas de valores que são estabelecidas nela. Esses valores são construídos por meio de várias formas de se ver, pensar e agir no mundo de diversas classes sociais e diversas formas de relação de poder. Além disso, a cultura está diretamente ligada à localidade geográfica a qual afeta outras localidades e vice e versa. Como eu disse, não tem como pensarmos em cultura se não considerarmos as trocas de diversas influências contidas nela.

Para mim, esse contágio decorrente das múltiplas influências aconteceu com o chamado Sertanejo Universitário. Vejamos: a música caipira, influência do Sertanejo Universitário, foi forte em um contexto econômico no qual o Brasil era marcado por uma economia rural. Quando ocorreu o processo de urbanização, essas pessoas trouxeram em seu repertório musical, a chamada música caipira. Vale lembrar que essas pessoas chegaram às cidades empobrecidas formando grandes bolsões de miséria.

Lá pela década de 90, a industrialização brasileira já havia atingido um crescimento exorbitante em relação ao período da música caipira. Nessa década, os filhos dos imigrantes rurais, diferente de seus pais, haviam adquirido valores fortemente urbanos devido ao recorrente contato com as experiências fora do eixo rural. No entanto, como a cultura apesar de se transformar, é resultado das combinações dos valores antecedentes vividos pelos indivíduos em seus meios, vemos surgir a música sertaneja.

A música sertaneja, diferentemente da música caipira, nem sempre traz em seu repertório questões vinculadas aos espaços rurais. Na maioria das vezes, ela aborda questões vinculadas às frustrações conjugais, deixando de lado o uso de figuras folclóricas do campo. Acredito que essa necessidade de se abordar as frustrações das relações conjugais de forma compulsiva, deva-se a carência vivida pelos indivíduos em meio a um espaço urbano marcado pelo individualismo e pela fragilidade dos laços afetivos.

Contudo, a música sertaneja, antes consumida por setores desprivilegiados, hoje assume uma nova rotulação, ou seja, Sertanejo Universitário. Por que uma linguagem musical proveniente dos setores empobrecidos passa a se encontrar vinculada a um setor, isto é, o universitário, que tradicionalmente foi marcado por indivíduos provenientes da classe média? Quem são os responsáveis para que essa rotulação seja capaz de atingir altas cifras de consumo como presenciamos atualmente?

Aí entraremos na afirmação que eu fiz de que a cultura é produto de diversas classes sociais e localidades e que afetam e são afetadas por outras culturas. Pelo fato da música sertaneja ser produto dos setores pauperizados e provenientes de um contexto de imigração do campo, daí sua influência da música caipira, os filhos das classes médias ao serem deixados aos cuidados das empregadas domésticas, cresceram infiltrando esses valores musicais que terminaram desbancando no chamado sertanejo universitário.

O mercado que de idiota não tem nada, ao observar a grande tendência dos setores tradicionalmente privilegiados da classe média em consumir esses produtos, manteve algumas características da música sertaneja como os discursos amorosos, agregando em seus artistas uma indumentária extremamente urbana e pop. É isso: o sertanejo universitário não é nada mais nada menos do que uma inevitável tendência do setor médio se apropriar de culturas oriundas dos setores populares.

Como se percebe, a cultura, a partir das experiências decorrentes das diversas formas de socialização entre diversas classes sociais e diversas localidades geográficas, termina se transmutando em seu processo de misturas constantes. E como podemos também notar, em meio a essas misturas, aparecem fortes mecanismos econômicos como o mercado que, aproveitando-se dessa inevitável combinação cultural, classifica novos gêneros como forma de expô-los nas vitrines do consumo.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Um diÁRIDO

O dia começou bastante engraçado. Ao chegar ao IFAL, fui rapidamente assinar a lista de presença dos professores. Prometi a mim mesmo não mais deixar de cumprir obrigatoriamente o ritual de quando chegar no instituto, ir logo assinar a tal lista.

Ontem ao abrir a caixa de e-mails, eu vi um recado de Fabrício Avelino, professor e coordenador de extensão do IFAL me pedindo com urgência para fazer o relatório do projeto de extensão que coordeno no instituto chamado “O Velho Chico em Ação”.

Fui procurá-lo e por minha sorte, de tabela já encontrei a professora Roberta Menezes que também me enviou um e-mail me pedindo o nome dos alunos e carga horária do projeto de extensão para fazer a confecção dos certificados do ano de 2012.

Não me senti bem seguro acerca da data do início do projeto em 2012 e liguei para Claudivânia, minha aluna e bolsista do projeto. Depois de tudo resolvido, voltei à sala dos professores e fui preparar os dados pedidos pela professora Roberta.

Como Fabrício havia me prometido enviar novamente para o meu e-mail o novo modelo para fazer o relatório do projeto de extensão para eu adequá-lo, resolvi abrir a caixa de e-mail só quando chegasse em casa com calma.

Chegando em minha casa de forma bastante rápida, peguei meus dois aparelhos de som com entrada de USB que eu comprei e desci para Canindé para tentar diagnosticar na loja que eu os comprei, o que havia de errado com eles.

Um dos aparelhinhos havia sido queimado, pois como eu moro em Alagoas no município de Piranhas, esqueci de transformar a energia para 220. Asno!! A sorte é que o outro aparelho não estava queimado. Era problema apenas com a conexão do carregador.

Aproveitei que estava em Canindé e fui tirar dinheiro no banco.

Voltei para Piranhas, peguei minha amiga que estava de visita, e como já estava tarde e eu não via possibilidades de nenhum restaurante mais barato estivesse aberto, voltei a Canindé e resolvi almoçar.

Antes de voltar ao IFAL, abri a caixa de e-mail e baixei o arquivo padrão que Fabrício me enviou para eu adequar o relatório e passei para um pendriver e logo depois voltei ao IFAL e fiz o relatório.

Fui à reprografia e tirei as duas cópias cobradas do relatório. Encontrei Fabrício e os passei rapidamente para ele. Logo após fui até a sala onde costuma ficar a professora Roberta, como ela não estava, joguei por debaixo da porta os dados.

Fabrício e eu aproveitamos e fomos olhar dois tratores azuis que haviam chegado no IFAL.

Perto das seis, fui à minha terapia. Achei que minha transferência fluiu legal. Óbvio que as velhas fraquezas voltaram a se externar, mas descobri que ando capaz de juntar alguns cacos muito proveitosos da minha angústia.

Voltando para casa, liguei para Roberta avisando acerca do papel embaixo da porta, enviei o e-mail para Fabrício da outra versão do relatório do projeto, entrei no twitter e fui me deliciar com as decisões do Tribunal do Maranhão acerca de Roseana Sarney.

Ai, ai...

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A contingência ( um textito raspadinha)

Ela construiu em sua cabeça a certeza de que tinha uma doença incurável. Foi ao médico, fez os exames e voltou para sua casa contando ansiosamente os minutos para saber do resultado. No laboratório, diferente do que ela havia tomado como certeza, não havia nada de errado com ela. Ligaram para a sua casa avisando que o resultado do exame havia saído. Aflita, pôs a roupa e foi pegar o ônibus. Antes de atravessar a avenida para chegar ao ponto, novamente ela sentiu a angústia de que os dias dela estavam contados. Fixada em suas noias, ao atravessar a avenida, não se deu conta do carro que passava em alta velocidade. Hoje sua casa está em silêncio. Os exames? Ficaram no laboratório...

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

ERA UMA VEZ A FORÇA

Nossos ancestrais um dia perceberam que a força podia muito. Por meio dela garantiram suas necessidades básicas. O tempo passou e o homon sapiens percebeu também que a força podia muito mais que lhes garantir a comida de cada dia. O homem entendeu que podia dominar os outros homens bastava-lhe ter mais força que os outros. O império da força durou muito tempo e chegou aos dias atuais. Ao longo do tempo nossa espécie desenvolveu sofisticadas formas de exercer o império sobre os outros. Do arco e flecha à espada e desta à pólvora, com certeza, não foi um salto fácil – a razão, ou racionalidade – foi desenvolvida com o propósito de lhe trazer mais conforto, e nele estava uma multidão de escravos. Não foi o medo da morte a força que domou o outro. Nos primeiros dias, quem sabe, essa premissa fosse verdadeira. Mas, foi a certeza de estar certo! A verdade foi a arma mais sofisticada de todas as criaturas. O homon sapiens é o criador da verdade! Depois de muitas lutas e guerras que ainda não cessaram, pois, a verdade dos homens está nelas, que nossa espécie, definitivamente, fundou um ‘sistema de certezas’ capaz de fazer a todos acreditarem que as coisas são como são. Pergunte-me sobre a causa das guerras e dos conflitos internacionais? A verdade sempre estará lá. Ela é a resposta implícita em todos os argumentos usados pelos homens. Foi por causa da verdade que a religião matou; em nome da verdade um continente subjugou o resto do mundo aos seus modelos e culturas. A verdade é a mulher mais sedutora da terra, uma assassina impiedosa! Vivemos meus caros, permita me dizer, no império da verdade. A verdade filosófica desmistificou o mito dos primeiros dias, destronou os deuses, e exorcizou os fantasmas que povoavam a mente do homem primitivo. A verdade o ensinou que ele era humano – um ser dotado de razão, uma criatura especial. Em nome dessa verdade, o homem destrói seu ambiente sem remorsos e sem medo de não poder viver sem ele. A natureza está sendo destruída pela força da verdade dos homens. A verdade científica nos ensinou que por meio dela podemos povoar outros orbes, construir nossas casas nas estrelas. Tudo é possível para a ciência e sua eficácia é comprovada. A verdade empírica encheu os olhos do homon sapiens, contudo, ele continua escravo de seu irmão. Ela não bastou para libertá-lo de si mesmo, para libertá-lo de sua verdade! Diga-me se estou errado: “Em todas as terras o pobre mendiga o pão”. Então, a ciência é a força verdadeira que ora ajuda os bem-aventurados, e ora, escraviza os desfavorecidos. A filha mais velha dos homens insiste em viver na terra. A técnica é a feiticeira que ajudou essa besta do campo a mudar as coisas. A pedra quebra a pedra, fere a árvore, e mata o bicho. Que luz! Que certeza! Que verdade! Que progresso! Até a almas do outro mundo exaltam o progresso – eis o filho mais novo da técnica – eis a verdade! A tecnologia insiste em dizer para todos que sem ela nós não vivemos mais. Afinal, desde os dias idos ela já existia na técnica de nossos avós. A verdade permeia todos os ditos dos homens. Da pedra ao computador a verdade sempre mostrará seu rosto. Mas o que falta, então? Por que essa criatura continua a perguntar? Quando o homon sapiens inventou a técnica ele também inventou o imaginar, o sonhar, o dialogar com as coisas, e depois consigo; ponho assim apenas para facilitar a compreensão. Pois, o imaginar, o sonhar, e até o pensar é falar primeiro consigo. É sentir o calor da pedra, ou o vento frio que desce a serra. O diálogo precede a tudo! Ele está na ideia de força, de poder, de dominação, de técnica, de ciência, de filosofia, de arte e de religião. Tudo que existe teve sua origem no diálogo do homem consigo e com os outros. Se quisermos mudar tudo precisamos voltar ao principio – o diálogo! Todas as coisas estão falando com as outras, todas as pessoas estão em constante diálogo. Se despertarmos do sono e ouvirmos a voz que nos diz que o elo está ali, certamente, o encontraremos. Somos criaturas dialogistas e por meio do diálogo construímos um mundo e por meio dele podemos refazê-lo. Cada imagem, cada forma que imprimirmos na natureza partirá de nossos sonhos, de nossas imagens interiores. Portanto, meus caros, precisamos compartilhar nossos sonhos e deles retirar a ideia de força, de dominação, de privilégios, de verdade, e nos vermos parte de um grande discurso onde tudo é necessário para a economia do planeta – principalmente, a dúvida! Essa fomenta o diálogo, destrói certezas, abre portas à imaginação. O dialogismo entende que por meio do diálogo e só por meio dele pode o homon sapiens pode criar uma realidade sustentável onde a verdade é uma dúvida pulsante sempre aberta a outras imagens do real...

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

José Dinossauro High Tech

Neste texto falarei sobre o assunto abordado no CD “José Dinossauro High Tech” do projeto de extensão do IFAL “Constelações Musicais” que tem como objetivo agregar os artistas locais em sua produção. O projeto tem como bolsistas o aluno Raí (Agroecologia) e Matheus (Agroindústria) do Campus Piranhas, tendo minha pessoa como coordenadora.

A razão possui o lado humano do contemplar, do admirar. O fato de se ter razão, de maneira alguma exclui o humano do direito de vivenciar suas alegrias e suas tristezas, até por que a razão é também a capacidade de simbolizar as coisas, e cada coisa que simbolizamos, construímos valores para elas.

A razão também possui a capacidade de gerar constantemente formas de conhecimento. O que seria do acúmulo da ciência, da arte e das demais formas de criação, se não houvesse esse extraordinário dom da razão em produzir novas ferramentas, novas idéias acerca do mundo?

No entanto, a razão, além de humana e capaz de gerar formas de conhecimento e produções constantes, não anula nossos instintos. Enquanto pensa, o humano caga, trepa, mija, dorme, perpetua e preserva a espécie, assim como morre. O abuso da razão tem adoecido esses bichos vestidos.

Por acreditarem demais na razão, os humanos, além de terem se separado da natureza, visto que deixaram de se reconhecer também como bichos, uma vez que distinguiram seres racionais dos irracionais, passaram a se cobrar demais por levarem demasiadamente a sério essa razão, forçando uma conduta além da sua capacidade humana.

O problema disso tudo é que os instintos não desapareceram. Apesar de sermos racionais, todos nós carregamos a natureza. Além disso, o problema é que, cobrando uma perfeição exagerada da razão, esquecemos de contemplar as coisas, de refletirmos sobre nossa condição humana.

Antes de atingir a chamada razão, o humano era apenas bicho. O bicho vivia sua condição natural. Sofria as intempéries da natureza, mas não guardava consigo nenhuma forma de expectativa responsável pela doentia ansiedade provocada pela desregulada ânsia de um futuro.

Por se ver obrigado a assumir uma razão além de suas capacidades, o humano não só largou a condição puramente natural, como passou a se desgastar pela sua excessiva cobrança consigo mesmo. O humano passa a ter uma imensa capacidade racional, mas peca pela sua falta de humanização.

Por ser cobrado pela excessiva produção racional, o humano se morre a cada instante em seu próprio tempo. Por se tornar quase um robô devido ao excesso de lógicas e resultados cobrados, passou a virar quase uma máquina, deixando assim de sentir as coisas e de se enxergar como humano.

Diferente dos animais, o humano altera o tempo, mas assim como os animais, não reconhece o tempo, já que por se tornar quase máquina, deixa de se ver como humano. O pior de tudo é que ele necessita dos instintos, mas nega constantemente a sua condição natural; torna-se um excelente produtor, mas por não se enxergar, aliena-se.

É no meio desse emaranhado todo que se encontra José Dinossauro High Tech. Ao mesmo tempo em que é humano (José), ele é também bicho (Dinossauro), mas também uma máquina (High Tech). Na verdade o que existe é uma interligação complexa entre o lado humano, o instinto e a produção racional.

Por outro lado, José não se reconhece como animal por achar que tem razão, e por isso mesmo, não aceita o Dinossauro de si mesmo. Ao mesmo tempo José não se pensa como humano por ter virado uma máquina que não o permite refletir sobre si e sentir a vida de forma contemplativa.

José é o retrato mais fiel do humano na contemporaneidade. Um animal doente por acreditar em uma razão doente a qual termina por torná-lo um humano doente. Um bicho que quer gritar, um humano que quer admirar, mas que não grita, nem admira, vivendo submetido às tarefas racionais e desumanizantes.

Um ser cheio de culpas por não aceitar os deslizes provocados pelos seus inevitáveis instintos; um ser cheio de ansiedades por exigir os resultados de forma demasiada; um ser que não se admira, nem se conforta em sua condição humana capaz de contemplar, de admirar, por viver na amarga ilusão de um futuro.

José Dinossauro High Tech é um ser que apedreja um cachorro na rua por acreditar que ele não sente por que não é gente e não tem razão, mas que por ser robótico, consegue reproduzir os discursos cobrados pela sociedade e exige da humanidade um maior cuidado com a natureza.

José Dinossauro High Tech é um ser angustiado, incapaz de pensar sobre si mesmo, apesar de produzir inúmeros artigos científicos nos congressos da vida. Um ser atormentado que procura o divã e sequer consegue chorar, pois a sua condição de máquina cobra dele uma força calculada e anti-humana.

Ele se acha bastante à frente da natureza por acreditar que é humano e por ter razão, mas não percebe que a sua racionalidade o torna um ser capaz de ficar muito atrás dos animais, ou seja, daqueles que ele afirma como inferiores por serem “irracionais”, afinal, é uma cabeça pensante perdida de si mesma.

O galo na casa do seu vizinho canta todos os dias às 04:30 da matina. José às vezes só consegue dormir às 05:00 por estar atormentado com tantas cobranças para o futuro e por ter acabado o seu remédio para a ansiedade. Já, já se acordará, saberá qual o dia, mas ao dormir, assim como todas as noites, não perceberá o tempo.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Era um puteiro pequenino

Era um puteiro pequenino. Havia um numero tão reduzido de funcionários que eles faziam reuniões entre eles e tudo se resolvia de forma breve.

O puteiro foi ficando adolescente e foi aumentando o número de funcionários que havia nele.

Como todos se dedicavam ao puteiro e havia um número pequeno de funcionários, todos dormiam em um compartimento que pertencia ao puteiro para no outro dia continuar a executar suas tarefas.

A questão é que o ar de juventude começava a se revelar. O que de início era apenas composto por algumas pessoas que rapidamente re-solucionavam seus interesses, passou a ter garçom, garotas e garotos de programa, caixa do bar, porteiro, cozinha, limpeza dos quartos para as trepadas, segurança, etc.

O compartimento onde todos dormiam continuava lá. Todos ainda conseguiam dormir nele, mas com o número crescente de funcionários, o que antes era integrado, passou a ter uma divisão de grupos, uma vez que os interesses iam ficando cada vez mais complexos e mais difíceis de serem conciliados.

Alguns grupos ameaçaram procurar outro lugar para dormir, mas, no entanto, desistiram ao ocorrer uma mudança na organização mais complexa entre os funcionários dentro do puteiro. Nesse instante foi se percebendo que o puteiro partia para a vida adulta.

Passaram a dividir várias funções para que os conflitos fossem evitados e não se espalhassem para além do compartimento do dormitório. Foram eleitos representantes para fiscalizarem banheiros, outros para garotas, outros para garotos de programa, cozinha, portaria, etc.

Mas o adulto ia vivendo cada vez mais com novos conflitos. Começaram a aparecer vários interesses particulares. Havia garotas mais antigas do puteiro. Estas queriam maiores regalias em relação às outras.

Uma nova decisão: os funcionários fizeram uma subdivisão de grupos para os responsáveis pelos quartos. Uns ficaram responsáveis em preservar o espaço das mais antigas e outros com as garotas mais recentes na casa e mantiveram o já escolhido representante-geral dos quartos.

Porém, posteriormente souberam que para a escolha dos sub-representantes de cada tipo de quarto, uma das candidatas á representante dos quartos jogou com uma estratégia e começou a articular alianças com o já representante geral dos quartos, e por isso mesmo, conseguiu se eleger.

Pela traição sentida pela categoria de garotas de programas, além dos demais funcionários, os conflitos que ocorriam no compartimento do quarto de dormir já não eram mais o centro das atenções naquele instante.

O grupo inteiro de funcionários se uniu com o intuito de confrontar a mais nova representante eleita para a fiscalização dos quartos e o representante-geral.

Ela e o representante-geral, sentindo-se ameaçados, começaram a deixar de negociar com os funcionários e partiram para a tática da centralização e da coerção. Não havia diálogos. O que havia era cumprimento literal das normas.

O grupo formado pela união de funcionários atacou e destruiu a representante e o representante-geral do quarto que, ao serem derrotados, mantiveram-se aliados e passaram a se decretar os maiores inimigos do grupo formado pela união dos funcionários.

Realizada a queda do Império, os conflitos entre os grupos no compartimento do dormitório voltaram.

O que era breve, fácil e resolvido com mais facilidade dado ao número pequeno de funcionários, e, portanto, de interesses, passou a se tornar uma guerra sem fim.

Ao se olhar no tempo, o puteiro viu que já andava bem velho. Fechou as portas, conviveu seus últimos momentos com o silêncio e morreu.

Era um puteiro pequenino. Era...

sábado, 12 de janeiro de 2013

O pagode baiano e a crise da subjetividade

Existe uma lógica bastante recorrente que diz que a arte é reflexo da sociedade. Pensando nessa lógica, acredito que não cabe a nós afirmarmos que o pagode baiano, por exemplo, não traga nenhuma significação construtiva sobre as questões sociais. Na verdade, o que podemos pensar é que ele revela uma sociedade em um processo de desumanização e crise de subjetividade entre os indivíduos.

Acredito que pensarmos sob essa expectativa já nos faz refletir sobre questões referentes às significações sociais, visto que estaremos pensando no lugar do sujeito em meio à sociedade. Refletirmos acerca da desumanização e crise da subjetividade do indivíduo pode fazer com que tenhamos não só alguns entendimentos sobre o que leva as pessoas a consumirem esse tipo de manifestação, como propor estratégias.

A desumanização me assusta muito, pois traz como conseqüência, a falta de reconhecimento do indivíduo como parte integrante da coletividade. Esse não reconhecimento social termina por resultar numa falta de interesse entre os sujeitos em fomentar formas de mobilização entre eles, estimulando o individualismo entre eles, negando-se a enxergar as relações de poder contidas na sociedade.

Essa falta de mobilização também é consequência do consumo, afinal, com o consumo, o indivíduo deixa de pensar em seu lugar no mundo perdendo sua subjetividade, uma vez que se preocupa apenas em ter, isto é, em obter o produto. Na ilusão de obter o novo, os indivíduos não se pensam no mundo, fazendo com que as problemáticas e os conflitos do presente fiquem esquecidos.

Acredito que as palavras de Jorge Mcfly em um belíssimo comentário no facebook esclarecerão o que estou querendo dizer. Pensando o capitalismo, assim se manifestou: “o comodismo causado pelo conforto capitalista, onde trabalhamos constantemente para alcançar metas e supérfluos, torna o ser humano segregável, individualista realmente, incapaz de ações plurais para o bem coletivo”.

Portanto, não acho que eu posso afirmar que o pagode não traduz a subjetividade do indivíduo atual. O que eu acho é que o pagode baiano reflete um indivíduo que anda perdendo sua subjetividade, seu senso de participação, de coletividade e os seus laços afetivos devido à mecanização das relações sociais em meio a um contexto reduzido ao consumo, ao individualismo e à satisfação imediata.

Não sou contra ao pagode baiano nem a qualquer tipo de manifestação artística e estética. O que me preocupa é a falta de reconhecimento que o indivíduo anda tendo acerca da sua subjetividade. É necessário que os sujeitos passem a perceber o quanto são imprescindíveis para a sociedade. Não acho que dançar e consumir o pagode seja errado. O erro está em consumir sem o exercício da auto-reflexão.

Devemos compreender o que levou o indivíduo a chegar a essa apatia profunda, quais os contextos que terminaram por permitir com que o consumo e a busca pelo ter e pelo prazer imediato preponderassem em nossa atualidade. Acredito que essas questões merecem uma atenção bastante cuidadosa para que não cometamos o risco de reduzir o pagode, o seu discurso e o seu público.

O entretenimento pode semear condutas de questionamentos também. Posso me divertir com o pagode e nem por isso deixar de pensar em alguns agravantes contidos em seu discurso como questões de gênero sexual, por exemplo. Posso dançar pagode sem por isso deixar de pensar no automatismo que anda reinando em nossas relações, no mercado, no consumo, na robotização do ser, etc.

Portanto, a des-subjetivação do indivíduo no pagode não significa a inexistência da subjetividade. O que anda ocorrendo é uma espécie de subjetivação em crise provocada não só pela natureza racional e produtivista de um contexto, como também pela necessidade do imediato que tem gerado uma alienação entre homens que, apesar de fazedores da história, não andam enxergando isso.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O CARROCEIRO DA LAGOA REDONDA

O CARROCEIRO DA LAGOA REDONDA Vespasiano era um homem rude, ignorante e iletrado. Trabalhava em uma carroça fazendo frete. O homem carregava entulho de construção; mato de quintal, e qualquer tralha velha que alguém não quisesse mais. Muitas foram as ocasiões em que Vespasiano encontrava moedas, notas de dinheiro e pedaços de papel com escritos. Como ele não sabia ler os jogava fora. Vespasiano tinha cinco filhos: Chico era o mais velho, depois a fila decrescente, Maria, Lurdes - a caolha, Bernardo, e Toinho - o caçula. Este último era gago, todavia, o mais sabido de todos. Lia e escrevia; Toinho habituou-se a ler jornais velhos. O rapaz não podia ver um pedaço de papel escrito que ele não se interessasse e lesse. As pessoas de bem gostavam muito de Vespasiano. Ele quebrava o galho de muita gente. Quando uma fossa entupia, ou vazava alguém dizia, “Chame Vespasiano!” O homem era disposto e muito trabalhador. Contudo os poucos recursos e uma alimentação inadequada estava enfraquecendo o pobre homem. Um dia ele sentiu uma pontada nas costas, caiu pálido no calçamento da Rua da Tripa, no povoado Lagoa Redonda, próximo a Tobias Barreto. O levaram para o Hospital de Caridade do Tobias. Uma multidão de curiosos foi ver o que ocorreu com o carroceiro Vespasiano Filho. - O caso do paciente é tuberculose. Disse o Dr. Eduardo em um tom muito sério. As radiografias diziam que o tecido pulmonar estava em adiantado estado de infecção. - E agora Dr. Eduardo? - Aqui num tem recurso; ele precisa de uma UTI. - UTI? Exclamou Germana vendedora de fato de bode no mercado municipal – o melhor fato da região. - Então, ele vai morrer inté que chegue um carro home vai tá duro! Continuou a vendedora de fato. Naquela época a Casa de Caridade de Tobias Barreto ficava onde hoje é o Convento das Vicentinas. Em seu leito Vespasiano agonizava de febre com fortes dores em todo o corpo. Uma enfermeira miúda, de rosto arredondado, de pele branca, com um lenço na cabeça se aproxima do moribundo. - Oi Vespasiano! Tá melhor? Vou te aplicar um sedativo. O homem não conseguia falar. Quando sua veia foi picada pelo líquido da seringa, o pobre homem revirou os olhos, o lado branco de seus olhos toma a frente em sua face, em seguida, Vespasiano ver o arco terrestre azul, tão azul que dava gosto de ver. Ao seu lado, um homem sério, calado, vestido de branco o acompanha em uma viagem pelo astral. A escuridão do cosmos vai cedendo lugar a uma cor lilás; aquele era um lugar que não se pode descrever. Os dois chegam ao novo orbe. Sem abrir a boca, o homem de branco diz ao moribundo da Lagoa Redonda: “Ande e veja o que puder!” O planeta lilás tinha muitas casas, elas eram feitas de um material que o carroceiro não conhecia. “Aqui, o entulho vem da mente das pessoas”. Disse o viajante misterioso. A massa mental do planeta era proporcional à população terrestre. Ali havia todo tipo de pensamento, muitos conhecidos na terra, outros jamais revelados, foram embora com seus donos. Vespasiano inicia a exploração do lugar, algo que ele sabia fazer muito bem; por décadas, o rapaz revirou entulhos, quintais, lixeiras, etc. O homem de branco diz com voz forte: “Entre naquele prédio!” “Que prédio?” Perguntou o ex - morador da Lagoa Redonda. “Aquele!” Apontou o homem com seu braço esquerdo. O prédio tinha a forma de uma pirâmide, contudo, seu vértice superior estava voltado para o chão, era, então, uma pirâmide invertida. “Que prédio esquisito!” pensou consigo Vespasiano. A porta do mesmo era muito estreita, um homem gordo não entraria ali. Vespasiano se ajoelhou, e com dificuldade, introduziu a cabeça no interior da pirâmide, depois os ombros, e em seguida, o resto do corpo. O homem, finalmente percebeu que as dores cessaram e que sua antiga força havia voltado. A base da pirâmide invertida tinha uma escada helicoidal que levava progressivamente aos compartimentos superiores; cada um era maior que o outro; sete eram os compartimentos ou salas. Vespasiano entra no primeiro, ou, na primeira sala. Esta era cheia de espelhos. Não havia luz, mas tudo podia ser visto muito bem. Todos os espelhos refletiam a imagem de um menino de oito anos. Vespasiano olha com atenção e senta numa cadeira de vidro apoiada por quatro diamantes de forma piramidal. “Não entendo nada”. Pensou o homem tuberculoso. “Veja!” Disse a voz de seu acompanhante. A criança lentamente se tornava mais nova até chegar a forma de um feto de sete ou oito centímetros. O pequeno feto estava mergulhado numa bolsa de água; seu pequeno coração batia forte e rápido. Subitamente se ouve vozes e uma tesoura retira o pequeno ser, em seguida uma mão com luva de borracha retira a placenta. Vespasiano ver quando o feto é jogado num vaso com formol. O homem pensa sobre quem seria aquela criança. As lágrimas lhe esquentam a face. Vespasiano chorou muito com a cena horrenda. - Vespasiano, não chore! - Como não? Eu vi o coração dele bater, senti seu sangue fluindo e dando forma a ele! - Isso acontece todos os dias na terra. Concluiu o homem de branco. Vespasiano foi para o segundo pavimento. Nele havia mesas e pessoas espalhadas por todos os cantos. Um cheiro de tabaco e álcool enchia o ambiente. Todos riam e se divertiam. As mulheres, e os homens se davam a todas as formas de desejo. O sexo, o vício, e tudo que as pessoas condenavam na terra estavam ali. O lugar era dominado por um senhor muito idoso, seu falo arrastava no chão como se fosse uma serpente rosada. Quando o falo serpente se enrijecia, as mulheres serpenteavam dando gemidos de gozo. Seu nome era Eronildo, popularmente conhecido no lugar como “Senhor Eros”. Sobre a cabeça das pessoas, como em revista em quadrinhos estavam as legendas mentais de cada um. Um rapaz franzino de semblante sulista americano dizia em sua legenda: “I am gonna fuck that whore. She’s quite a piece of hell!” Sobre a cabeça de uma moça nordestina como Vespasiano estava a lembrança da caatinga e o desejo de ser degustada, saboreada. “Eu quero ser a mais gostosa dentre todas”. Sua vagina escorria um líquido amarelado gonorreico. Vespasiano vomita ao sentir o cheiro da menina. No terceiro pavimento havia homens de terno, todos eram respeitados no lugar. Ali se discutia o futuro, no entanto, as decisões só contemplavam o presente. Um senhor loiro que usava uma cartola preta na cabeça e nesta o símbolo de cifras monetárias tomou a palavra: - The world needs to change economy. We must make more profit and that’ll come from the Third world. Um homem bomba explode no meio da sala, seus intestinos vão com os estilhaços e espalham fezes para todos os lados. Alguns asiáticos disseram que o contrabando e a pirataria não podiam cessar: “Sem pirataria o pobre não vive”. Os antigos piratas do mar protestaram dizendo que isso era injusto. Os palestinos bradaram em alto e bom som: “Quem são vocês para falarem de justiça?” Os israelitas tentaram calar a boca dos seus vizinhos dando-lhes conselhos baseados na lei de Moisés. A confusão tomou conta da sala. Palestinos e judeus começaram a se destruírem – o carroceiro arregalou os olhos e chorou sem entender nada. A confusão continuou indiferente aos berros do tuberculoso. Os negros da África pediram para falar, mas, ninguém os ouvia. Um Zulu muito irritado pegou um facão e cortou o próprio braço – a sala calou: - Nosso sangue é igual ao de vocês, todavia, recebemos apenas o esquecimento e o banimento de vossa sociedade eurocêntrica. O mundo sem a África não sobrevive. Mas, vocês só pensam em nossas riquezas e nada deixam para nossos filhos e ainda nos chamam de preguiçosos e insolentes. Uma mulher um tanto forte sentiu um calor intenso no busto quando o negão tirou a camisa para mostrar as marcas das chibatas. - Isso é coisa do passado. Disse um senhor ibérico com um pedaço de queijo na mão. O queijo foi distribuído para todos com todo o amor lusitano para mostrar que os povos podem se irmanarem. Com o queijo consumido veio uma diarreia coletiva. Todos os presentes foram acometidos de cólicas intestinais e defecavam sem parar. O nível das fezes chegou à altura do teto da sala. Todos ficaram boiando na merda. Uma baiana de Salvador vendedora de acarajé que representava o Brasil se irritou e gritou desesperada: “O que foi que vocês fizeram?” “Estregaram o meu acarajé!” “Agora está tudo cagado!” “Quem vai pagar a conta?” Não houve uma alma que dissesse algo coerente sobre o assunto. As decisões foram deixadas para outro dia. O quarto pavimento era muito escuro; nele havia uma nuvem fria e cinzenta. Vespasiano se queixou do frio ao seu protetor. O anjo disse que ele tinha que entrar lá e não temesse. Todos os moradores do quarto estavam de costas para o seu próximo. Cada um tinha uma língua semelhante à de um sapo. Quando alguém pensava alguma coisa, a língua era acionada, dessa forma, os moradores do quarto consumiam o que a mente do outro produzia. Essas pessoas não sabiam falar nada, e quando alguém ousava dizer alguma coisa, todos, ao mesmo tempo, repetiam a coisa que fora dita. Vespasiano entrou no quinto quarto. Era uma sala muito bem iluminada; o lugar estava repleto de pessoas de todas as idades, sexo e raças. Muitos idiomas podiam ser ouvidos. As pessoas não se comunicavam umas com as outras por meio do contato direto. Elas estavam conectadas a telas e máquinas que faziam quase tudo. Um operador não dirigia sua palavra ao seu colega; o contato físico não era mais usado. Os ratos se amontoavam no lugar. As criaturas roedoras comiam as sobras dos lanches e refeições que eram feitas ali mesmo, pois, ninguém queria sair da sala um segundo apenas. Vespasiano sentiu náuseas novamente e pediu ao homem de branco para descansar um pouco. O anjo negou o pedido dizendo-lhe que o tempo estava acabando. O sexto quarto tinha janelas. De cada uma podia-se ver a terra – o planeta azul. Vespasiano viu as queimadas, as lavouras que se espalhavam por todo o planeta, no entanto, a fome e a dor era rotina naquele lugar. Da janela ocidental do quarto, Vespasiano viu os esgotos que enchiam o mar de dejetos. Os rios estavam poluídos, as lagoas também. Os manguezais aterrados e as florestas eram agora um deserto erodido pela chuva – uma chuva ácida cujos pingos causavam úlceras na pele das pessoas. Vespasiano viu que a vida era insustentável naquelas condições. Mesmo assim, as pessoas acreditavam num mundo melhor. - Seu moço de branco! Oh, seu moço! - Sim, amigo Vespasiano. - Eu morri? - Não. Você está em coma. - O que é coma? - É um estado de consciência próximo da morte. - Então quer dizer que vou morrer? - Possivelmente. Vespasiano caminhou na direção do outro quarto. Este era o último. O carroceiro, finalmente, se interessou pela viagem e pelo sétimo quarto. O último quarto da pirâmide invertida era o mais espaçoso. Nele havia sacerdotes e fieis de todos os credos da terra. A discussão entre eles era muito apaixonada. Cada um dizia segundo sua paixão. Na testa de cada pregador havia uma marca em forma de um nome, e o nome era: “Verdade”. O anjo disse: “Na terra as religiões se multiplicam; elas ditam a moral, as regras; elas constituem a base do psiquismo terrestre. As religiões servem muito bem ao propósito dos que lucram com a destruição do orbe terrestre. Em alguns casos, elas legitimam aquilo que condenam em seus credos. As religiões nunca desaparecerão enquanto o homem existir. Elas mudam de forma; se adaptam ao meio, e formam um novo modelo de criatura”. - Seu anjo, eu não entendo nada disso. Sou católico, mas, nem sei se essa história de Cristo é verdade mesmo. Tudo isso está complicado para mim. O anjo passou a mão direita nos olhos de Vespasiano dizendo as seguintes palavras: “Vespasiano acorde!” Vespasiano acordou no quarto da Casa de Caridade na antiga Vila de Campos, hoje, conhecida como Tobias Barreto. As pessoas estavam perplexas com a cura do homem. Naquela época a tuberculose era uma doença sem esperança. O moço se levantou; caminhou pelo corredor formado pelos curiosos que vieram ver o milagre; saiu do hospital e foi para casa. Sua mulher o recebeu com alegria. - Anagilda, eu vi Deus. - Como? - Vi Deus! Sim, eu vi Deus! - A mulher olhou desconfiada para seu marido e o abraçou. - Mulher, o mundo vai acabar e essa história de religião é tudo invenção do povo. - Lá em cima tem cidades; está povoado de vida. Vespasiano tentava contar o que viu para sua mulher, mas, foi em vão. Sua mulher foi procurar o padre e contou tudo para ele. O padre Martins prescreveu 30 Pais Nossos e 30 Ave Marias. Vespasiano não parou de falar, com isso, o povo se afastou dele. Até seus filhos o abandonaram. Anabatista, o pastor local, garantiu que curaria o coitado do Vespasiano. A família se animou. Após a oração poderosa, Vespasiano não parou de pensar no que vira. Levaram Vespasiano para o sanatório em Aracaju. O tempo passou; ninguém mais se lembrava de Vespasiano. Numa sexta feira de noitinha, uma senhora visita o carroceiro. A mulher era corcunda e trajava um vestido todo preto. Trouxeram o louco Vespasiano para ver sua visita. - Lembra se de mim? - Não! - Eu sou a mulher que te aplicou a injeção no braço. - E o que foi aquilo que me aconteceu? - O que? A mulher estendeu a mão para ele e lhe passou uma pedra de diamante no formato de uma pirâmide. Em seguida, ela sumiu de suas vistas como um vulto do outro mundo. Vespasiano se calou para sempre, nunca mais contou sua história. Vendeu a pedra em Salvador, e iniciou seu negócio de transporte de cargas entre Sergipe e Bahia. Em pouco tempo, sua família e amigos estavam de volta. O velho Vespasiano morreu cercado de amigos em avançada idade... - Vespasiano! - Sim! - O mundo já acabou? - Num sei não.

Surrealismo e educação: é permitido criar

Neste texto eu pretendo mostrar a importância do uso da arte de vanguarda surrealista na educação para a formação crítica do aluno. No cotidiano escolar encontramos uma formação opressora que impede o aluno de criar. Porém, acredito que a arte de vanguarda, ao estimular a criação, ao mesmo tempo em que encontra sérios empecilhos na educação, pode semear um espírito de liberdade e de autonomia entre os alunos.

Não estou dizendo que só a arte de vanguarda surrealista pode promover a formação crítica do aluno. Obviamente que existem outros recursos para que esse objetivo seja realizado. Além disso, eu penso nessas estratégias dentro da minha disciplina, a Sociologia. Não posso afirmar isso em outras áreas do conhecimento, uma vez que não vivo experiências nessas áreas para saber quais as deficiências do alunado.

Para mostrar os obstáculos e os possíveis caminhos para a arte de vanguarda surrealista na educação, é necessário trazer de forma breve algumas de suas características. O surrealismo, assim como a vanguarda em geral, tem como objetivo questionar os modelos convencionais. Para isso, ela se propõe a apresentar novos modelos a partir de novas linguagens.

O surrealismo se encontra preocupado em transitar entre a esfera dita real e a surreal. Para essa corrente, a realidade vive em uma constante oscilação, alterando-se de forma constante. A realidade, antes de ser uma verdade imutável e única, passa por incessantes processos de combinação. Em outras palavras, a realidade se recria, se desfaz e se refaz o tempo inteiro.

Para o surrealismo, a realidade não existe apenas no plano real ou surreal. Não existe apenas a verdade, assim como não existe apenas a ficção. A realidade é justamente proveniente dessa tensão. Ao mesmo tempo em que se confunde a realidade com a ficção, eles terminam por se interagirem em uma espécie de conflito negociador e de negociação conflitiva.

Por entender a realidade como um misto de concreto e de abstrato, é que o surrealismo questiona a verdade absoluta dos modelos impostos socialmente. Se a realidade é resultado das infinitas combinações, obviamente que os modelos ditos oficializados, assim como qualquer fenômeno pertencente a realidade, devem ser questionados e constantemente recriados.

Com isso, segue a pergunta: por que a arte de vanguarda surrealista encontra profundos obstáculos na prática educacional? O surrealismo, por acreditar que a realidade oscila e se refaz incessantemente, faz com que os modelos impostos como verdadeiros sejam questionados. Além disso, por prezar pela criatividade, a arte de vanguarda surrealista objetiva a liberdade e a autonomia do sujeito.

Contudo, como mostrar a fragilidade dos modelos em um sistema educacional submetido a eles? Como abrir caminhos para a liberdade do aluno, se a própria conjuntura educacional se encontra marcada pela castração técnica dos manuais de aprendizado os quais se preocupam muito mais em ensinar como fazer do que em exercitar o criar no aprender, anulando as subjetividades dos discentes?

Vivemos em um contexto extremamente autoritário. Ao observarmos as práticas pedagógicas desde o ensino infantil, percebemos que os professores insistem em educar as crianças como se elas fossem objetos a serem moldados. Percebemos o reflexo disso quando damos aula para adolescentes no ensino médio. Existe uma dificuldade absurda para se expressarem. Eles não acreditam em suas capacidades criativas.

Ao ceder aos alunos certas ferramentas, ao invés dos professores do ensino infantil abrir espaços para a liberdade e para a formação subjetiva da criança, fazendo-a perceber a importância de sua construção, os professores ensinam como fazer. Nesse sentido, o brilho da imaginação, da criatividade, do encanto com as surpresas da descoberta passam a ser anuladas em prol de um manual.

Obviamente que não podemos pensar nessa formação opressora apenas partindo de uma análise acerca da educação. Vale lembrar que os professores do ensino infantil também são reflexos dessa educação autoritária. Portanto, pensar no medo de se manifestar dos alunos e na metodologia opressora dos professores, é também pensar na nossa formação familiar que também é fundada na base do autoritarismo.

O medo de responder, de participar, de construir, é também um reflexo da opressão sofrida pela cultura construída por nossa cultura familiar, ou seja, a de que as crianças e os adolescentes não têm direito a voz por “não saberem de nada” e por não terem o direito de se manifestar por não serem responsáveis pelo fator econômico do lar. Portanto, os sujeitos vão crescendo com medo de reivindicar.

Para complicar ainda mais a realidade dos fatos, além do autoritarismo educacional e familiar, encontramos uma realidade atual moldada pela sociedade do consumo que faz com que tenhamos a necessidade do imediato. Isso nós podemos notar também de forma bastante evidente nas salas de aula. Os alunos, ao invés de buscar criar caminhos para as respostas, necessitam de modelos prontos.

Temos, portanto, um problema extremamente complexo. Por um lado a formação educacional vinda desde a infância que faz com que o aprendizado seja direcionado ao invés de construído; uma formação familiar marcada por fortes doses hierárquicas nas quais esses alunos não têm direito a voz e uma realidade capitalista impositiva do consumo que os educa ao imediatismo e a busca por modelos prontos.

Os alunos, por não possuírem a liberdade, não aprendem a criar. Pelo fato de serem reflexos de uma cultura familiar autoritária, vão crescendo sem ter direito à autonomia. Por estarem em meio a um sistema que preza pelo agora, não exercitam a reflexão e naturalizam as coisas devido ao imediatismo tomando os modelos impostos socialmente como verdades absolutas.

Voltemos à questão da arte de vanguarda surrealista na educação. Vejamos: modelos absolutos, direcionamento do aprendizado. Todos esses pontos podem ser relacionados com falta de liberdade, ausência da prática da criação, anulação da subjetividade. Levando-se em conta que o surrealismo propõe a liberdade, a autonomia, a criação, como articulá-los dentro da nossa educação?

O surrealismo faz uso da chamada collage. A collage é uma espécie de método que possibilita o sujeito recriar sua própria realidade. Ela se propõe a cultivar o senso de liberdade do sujeito ao deixá-lo aberto para as suas próprias combinações. Com isso, o sujeito passa a garantir para ele mesmo um senso de autonomia, visto que ele é se reconhece como responsável por sua criação.

Juntando a liberdade com a autonomia, inevitavelmente através da collage o sujeito se vê capaz de montar/desmontar seus próprios modelos. Percebendo que foi capaz de construir outras realidades, o sujeito não só passa a se enxergar como dono de suas ações, como questiona os modelos impostos socialmente como verdades absolutas ao invés de apenas reproduzi-los enquanto tais.

Através da collage usando recortes de jornais, por exemplo, o educador pode estimular os alunos a combinarem várias gravuras de acordo com suas próprias escolhas, gerando assim, a liberdade e a autonomia deles. Ao perceber que foram capazes de elaborar novas imagens a partir de outras, reconhecerão que são capazes de criar, de construir, de gerar novas realidades.

O educador pode também buscar outros meios propondo que a partir de uma gravura, por exemplo, os alunos passem a produzir um texto, e que esse texto depois de produzido, seja trocado com os textos dos outros colegas, para que com isso, eles possam desmontá-los, recortá-los. Isso pode fazer com que os alunos reconheçam que os discursos são dados a reformulações.

Com isso, os alunos podem reconhecer que os discursos, antes de se constituírem como uma verdade absoluta e inquestionável, assim como querem fazer acreditar os setores dominantes com as suas ideologias, na verdade podem ser reformulados e alterados como foram os discursos dos colegas. Perceberão com isso que os discursos ditos como verdadeiros, escondem vários interesses de classe.

A arte de vanguarda surrealista, mesmo parecendo andar na contramão das práticas educacionais, pode encontrar caminhos. Com o surrealismo através do recurso da collage, os alunos poderão repensar a naturalização dos modelos impostos como verdadeiros, assim como podem reconquistar a liberdade, a criatividade e a subjetividade amputadas pelo sistema político, familiar e educacional.

A educação enquanto formadora da criticidade do aluno, deve se preocupar em estimulá-lo a criar seus próprios modelos, isto é, sua própria concepção de mundo. É de profunda importância que esse aluno ao buscar o seu lugar na sociedade, passe a questionar esse lugar. Esse questionamento só ocorrerá quando ele tiver a liberdade e autonomia enquanto sujeito.