quarta-feira, 20 de novembro de 2013

FARIAS E A MOÇA

Minha pessoa acorda cedo todos os dias. Isso ocorre há tanto tempo que nem me lembro de quando começou. Às vezes me recordo de meu finado pai à porta do quarto me chamando: “Farias vá para a escola já passam das sete”. Seu Clovis foi um pai acima de qualquer crítica, e assim deve ter sido minha educação. A primeira comunhão, a crisma e outras ações religiosas, embora sob os cuidados de minha mãe Dona Tamísia da Barroca foram todas acompanhadas pelo velho Clóvis: “Tamísia esse menino foi para a catequese?” Dias bons aqueles, que Deus os tenha em um bom lugar.

Acordar cedo e ir para a repartição têm sido a rotina de meus dias nesses anos abençoados de 1998. Meu chefe, seu Antenor, um dia me disse: “Farias, é o trabalho que dignifica o homem”. Bem, eu não concordo muito não, pois, em nosso país, a classe trabalhadora nada tem. Mas deixa isso pra lá. Antenor é um sexagenário muito rigoroso, contudo, devo ter caído em sua graça. Nunca mais cheguei às sete e meia. Todo mundo reclama, mas, Antenor diz: “Deixa o homem quieto”.

Com a cumplicidade de Antenor, por vezes caminhei de manhã cedo na linda Aracaju ao desabrochar do dia. Parece que as pessoas estão melhor pela manhã. Todo mundo diz bom dia. Os sorrisos nos lábios são muitos. O calçadão da Rua da Frente fica cheio de pessoas com os cabelos pintados de preto. Elas vão e voltam como que esperassem um milagre. Lembro-me do dia que encontrei uma conterrânea de Campos. A mulher estava entrando nos setentas, no entanto, sua lucidez me deixou de boca bem aberta.

- Mas Dulce, quanto tempo!

- Quanto tempo o que? Farias tenha fé em Deus! Isso num se faz! A moça te espera até hoje!

- E ela me espera?

- Não, num espera não! Rapaz, que coisa feia!

- Ora, Dulce! São coisas da vida! Não dava para eu ficar com uma menina daquelas, né.

- Então não enchesse a cabeça dela de esperança! Farias, você foi sem vergonha! Tentei mudar o rumo da conversa, mas, a velha Dulce foi impiedosa. O caso é que há dez anos quando minha pessoa tinha cinquenta e quatro, conheci uma moça durante uma visita a Vila de Campos, a atual Tobias Barreto...

Era época de missões. Tinha gente de todo canto do imenso sertão entre Tobias e Poço Verde. A cidade, em determinadas horas parecia mais um formigueiro gigante. Todo mundo queria a benção de Nossa Senhora Imperatriz dos Campos. A praça defronte a igreja matriz estava tomada de gente. Lembro-me muito bem de uma anãzinha, natural de Itabaianinha. Dizem que lá tem a cidade dos anões. A moça queria ver a celebração, mas, o povo eufórico não deixava a mulher passar adiante. A coitada dizia: “Com licença, com licença” e nada do povo atender. Fiquei um pouco indignado com isso e acompanhei a pobre mulher até o cruzeiro dizendo-lhe: “Suba na base de pedra e você vai ver melhor”. A mulher fez isso. Quando seus olhos miúdos e azuis viram a nave do santuário, a mulher passou a exalar alegria por todos os poros de seu pequeno e frágil corpo. Ela ficou para trás e eu segui meu destino em meio ao povo. Andei pela festa toda até o sino da igreja bater avisando o fim da missa. Decidi passar novamente pela Praça da igreja para ver como as coisas estavam. O local estava vazio, o chão da praça feito de pedras portuguesas estava coberto de lixo, sacos de pipoca, guardanapos, canudinhos etc. Parecia que uma imensa boiada havia passado no local. No canto, defronte a pousada “Sol Dourado” avistei duas pessoas que conversavam baixinho, ora riam, ora cochichavam. Uma delas eu já conhecia, era a anãzinha, a outra era uma moça de seus trinta e cinco anos. A menina tinha uma aparência ibérica muito bem desenhada pelo criador. Olhos verdes claros, cabelos loiros, mas não muito loiros, um metro e setenta e dois, uma cintura brasileira bem definida, e pele branquinha mediterrânea como o sol da Grécia.

Meus olhos castanhos claros caíram de cheio sob a moça que me correspondia com sorrisos pelo canto da boca e olhares de gatinha mansa, aqueles que as atrizes de televisão fazem para mostrar ao público que a cena vai esquentar. A anãzinha ao ver-me diz: “Olha, Bela, meu salvador!” Na verdade, cá entre nós, minha pessoa, digo, eu mesmo, sou ateu. Mas, o salvador estava ali na hora certa para socorrer uma pobre anãzinha e agora recebia, quem sabe, do divino mestre uma recompensa: Bela!

- Eu sou Maria das Dores. Apresentou-se a pequena mulher.

- E essa é Bela, minha sobrinha. Continuou o pequeno ser. Cocei a garganta e disse meu nome com dúvidas se estava fazendo a coisa certa.

- E o meu é Farias. Após apresentados acompanhei as duas mulheres até o bar Secos e Molhados onde elas esperariam o ônibus para o Povoado Ilha.

- Quando é que você aparece lá, Farias? No sertão é assim, depois que se quebra o gelo, o sol aparece e esquenta as relações.

- Nesse final de semana. E foi assim durante uns dois meses. Com o tempo, eu passei a dormir na casa de Bela, com todo o respeito é claro.

As noites dormidas na casa de Bela e sua tia foram marcadas pelo misto de tensão e prazer. Primeiro, a anãzinha não me dava chances de realizar meu intento, secundo, quando Bela tocava em mim, eu me desmanchavam de prazer. Convenhamos um homem na minha idade viver um caso de amor com uma moça de trinta e cinco é, no mínimo, algo fora da regularidade. Os meses passavam, e minha pessoa fiel aos finais de semana na casa da anãzinha. Tudo que eu queria era uma chance de ficar sozinho com Bela.

- Farias e Bela venham cá!

- Pois não tia! Disse Bela como que soubesse o conteúdo da conversa.

- Vou passar esse final de semana em Campos. Vocês se comportem!

- Nos comportaremos tia, num é Farias?

- É. Não sei muito bem o que estava na minha cabeça, mas, no íntimo eu sabia que algo estava acontecendo.

- Num se preocupe, cuidarei de Bela como se fosse minha filha! A anãzinha entrou no ônibus e acenava com sua mãozinha para nós. No seu semblante estava um ar de “Deu a louca no mundo”. Tudo isso minha humilde pessoa viu, mas, não se importou!

Liguei a televisão para ver alguma novidade. Enquanto isso a jovem moça estava no banheiro a banhar-se. A televisão era aquele velho tédio de todas as manhãs e tardes dos finais de semana. Nada tinha de bom, exceto, os programas e shows tão batidos que todo mundo já sabia o que ia passar “Retrato da Vida”, “Roda da Esperança”. Eu sabia que meu alento àquele final de semana seria a jovem Bela. Eu precisava me sentir novo de novo. A menina saiu do banheiro enrolada numa toalha rosa. Passou pelo corredor onde pude ver sua silhueta: “Sensacional”. E finalmente, entrou em seu quarto, de onde ela me chamou: “Farias”.

- Farias, você pode ajudar?

- Claro, Bela!

- Passe esse hidratante em mim. Ela me estendeu a mão esquerda. Nela estava o pequeno frasco de hidratante. A pele da moça era macia como seda. Adorei cada centímetro umedecido pelo hidratante. Em certo ponto eu parei. Às vezes, é embaraçante um homem tocar numa mulher. Disse eu a mim mesmo: “Seria uma sensação indizível tocar nela toda, mas, devo manter mina compostura”. Com discrição a devolvi o creme. Ela o recebeu sem me dizer uma palavra, o silêncio entre nós dois falava muito. Seu peito, um pouco ofegante, clamava a mim que fazia de conta nada entender.

- Bela, vou ver se já acabou o show.

- Certo, meu cavalheiro! Essa palavra, por um instante, me causou arrependimento de não ter sido ousado. Fui novamente para a sala. Olhei para o relógio de parede; eram nove e trinta da manhã. Minha mente pensou na velocidade da luz: “Já” Passa rápido. Gritei para Bela perguntando-lhe a que horas sua tia voltaria. Bela disse com um tom sério: “Depois de meio dia”. Bela saiu do quarto e veio para junto de mim. A moça estava um tanto calada, mas, isso não lhe impediu de me fazer uma proposta maravilhosa: “Farias, vamos para o quintal deitar na rede!” Não sou cearense, todavia, depois que experimentei a rede da anãzinha me apaixonei.

Bela usava uma bermuda jeans e uma camiseta fina de algodão. Havia um pequeno desenho bem meio da mesma; era um pássaro beijando uma flor. Seu cabelo fino e bem cuidado estava preso, e o seu perfume me deixou um pouco tonto. Eu o sinto até hoje, parece que ele impregnou-se em mim. A camiseta de Bela seguia o curso dos movimentos de seu corpo franzino e esbelto. Ora, ela me dava a visão de seu umbigo bem talhado naquela tábua chamada barriga. A visão de um simples umbigo fazia meu coração cinquentão acelerar e o suor escorrer pelo pescoço como uma tênue cascata. Ora, era a pequena bermuda jeans que me permitia ver aquelas penas bem trabalhadas e que me inspiravam muitos desejos. Pensei comigo: “Aos cinquenta eu vivo um momento único!” “Mas, que mulher!” De fato, Bela era um bom exemplar da mulher sergipana.

A conversa fluía, porém, Bela nada me perguntava sobre meu passado. A jovem moça se concentrava apenas no momento presente. Para ser verdadeiro, até hoje não entendi o porquê dela se envolver com um homem bem mais velho como eu. A rede balançava e com ela ia o casal em descobertas e descobertas. Seus lábios eram doces como mel, e seu hálito aumentava em cem vezes minha libido. Parece que suas entranhas eram abençoadas. Mas, algo estava faltando: “Vê-la totalmente nua!”

O relógio da sala bateu onze e meia. O tempo passava e nós dois nem via. Bela se levantou da rede e foi preparar alguma coisa. Eu a acompanhei até a cozinha; ora ou outra eu lhe abraçava e lhe beijava. Nós dois preparamos a comida; comemos juntos, e depois voltamos para o quintal: “Bela não se preocupe, eu lavo os pratos”. Um homem quando quer impressionar uma mulher diz de tudo!

Ficamos na rede a conversar sem se preocupar mais com nada, para nós dois o tempo era aquele; juntos o tempo era nosso! Bela pegou no sono eu resolvi explorar seu corpo fazendo-lhe pequenas carícias. O sono da menina era tão profundo que descobri seu corpo em poucos minutos, minha mão ficava de vez em quando dormente tamanha era a força que eu fazia para torna-la leve como uma pluma. Agradeci a mãe natureza por conhecer aquele corpo divino. Lentamente tirei-lhe a camisa. O que é muito estranho é que não tive dificuldade para fazê-lo parecia até que a camisa sabia do próximo movimento. Depois abri os botões de sua bermuda, e lentamente fui vendo o que estava do lado de dentro: “Meu Deus!” Embora ateu, mas foi essa a palavra que eu disse. Bela era toda linda!

Tirei sua roupa toda, depois tirei a minha. Sentei-me na rede e puxei seu corpo adormecido até mim de forma que eu ficasse entre suas pernas. Aí, a coisa pegou, meu coração batia tão rápido que parecia que ia sair pela boca. A respiração da menina ficou de imediato ofegante; a pobre moça mordia os lábios o que me fazia ficar ainda mais vivo. Alguns gemidos saiam ritmados de sua boca. E isso aumentava a quantidade de gotas de suor no meu rosto. Nós dois estávamos banhados de suor! Fizemos a mesma coisa uma; duas vezes, até eu me cansar. Devo admitir, a velhice é uma parte bonita da vida humana, mas, nada se compara a força da juventude.

A anãzinha nos pegou nus na rede. Ambos adormecidos. A mulher me pôs para fora de casa. Desde então nunca mais a vi. Dona Dulce, a vizinha, depois ao encontrar-se comigo na feira me contou que a moça me esperava. Mas, eu achei que foi o bastante para nós dois.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O caos: a bagunça em ordem

Texto dedicado à Tainara Inocêncio


Não defendo a desordem. O que eu luto até o fim das minhas forças é pela aceitação da desconstrução para que sejamos capazes de encontrar outras maneiras de re-montar tudo o que foi desordenado. Falo sem nenhum medo de me arrepender que amo o caos, mas o caos não é o contrário da ordem. É no caos que encontramos toda a nossa criatividade e senso crítico, pois é lá que podemos reinventar o nosso mundo, assim como, construir novas paisagens e novos olhares acerca das coisas.

Quem disse que a ordem não é importante? Quem é que nesse mundo em nenhum instante parou para encontrar sentidos nas coisas, ou seja, organizá-las em classificações? Eu pertenço a esse grupo de pessoas. Porém, eu me nego em ter que admitir que a ordem pode ser reduzida a ordem por ela mesma! É importante também aprendermos a nos atrever e a nos perder nas traquinagens liberadas pela bagunça! A vida a todo instante nos surpreende com suas imprevisibilidades, e se eu não aprendo a amar o caos da mesma forma que eu amo a ordem, eu vou me frustrar e me perder de mim, mesmo evitando vivenciar o caos.

A ordem é importante, mas ela por ela apenas é cômoda. A ordem não transfere, nem explode novos afetos. A ordem torna as coisas estáticas como se essas coisas não tivessem as intervenções das danações humanas. Definitivamente não! A vida é feita de mudanças e é só aprendendo a saborear com o caos também que eu reconhecerei a tamanha alegria de poder me desencontrar para a partir disso, me reencontrar.

Eu vejo uma vida cheia de pessoas assustadas por saber aceitar apenas a ordem. Eu vejo uma vida permeada de bocas abismadas por justamente se enganarem por acreditar na possibilidade absoluta de que os fatos do dia a dia podem ser plenos e perfeitos. O que eu vejo são pessoas incapazes de suportar o choque de valores na convivência com as outras. A intolerância existe porque o caos é negado. Resultado: a tal da diversidade, da inclusão, da relatividade, do amor ao próximo vão rolando por esgotos podres e profundos.

Ninguém mais ama, pois a ordem é sempre a ordem do dia. Ninguém mais ama porque o ato de amar implora que a gente saiba naufragar e se arriscar no caos, pois só nele é que perceberemos o quanto os outros não são nós mesmos. É só com o caos que saberemos o quanto os outros por não serem nós mesmos, vivem experiências múltiplas, mostrando assim, que a vida, apesar da comunicação, dos códigos, das instituições, das regras, enfim, da ordem, sapateia em meio a um chão esburacado e movediço do caos.

Em outras palavras, o fato de não admitirmos o caos em nossas vidas faz com que a gente não aceite as frustrações. Estamos adoecendo demais por sabermos viver apenas com a ordem. Não suportamos sermos nós mesmos, pois queremos o todo igual (bem a cara da ordem), não suportamos admitir para nós mesmos que erramos, que fomos mal educados, estúpidos, pregos, malditos, arrogantes.

O caos vem nos ensinar que somos humanos por sermos cacos que querem se organizar. Mas veja: querem se organizar. Apenas isso. De fato nos organizamos, mas quando achamos que falta apenas mais uma pedra pra finalizarmos nossa casinha protetora de nós, ouvimos os roncos dos trovões, somos banhados por tempestades e voltamos a ter o horizonte infinito e imprevisto das possibilidades como nosso único teto.

Essa nossa escola ocidental tão preocupada com a ordem tem nos tornado medrosos. Não sabemos pensar por nós mesmos. Temos que sempre esperar a resposta de alguém que mitificamos como autoridade para encontrarmos sentidos nas coisas, quando na verdade esse sentido poderia vim de nós mesmos sem precisar do mestre das verdades trepado no topo máximo de uma hierarquia tão admirada pela ordem.

Eu digo: o caos sugere a aventura, e foi de aventuras que a história viveu até agora, pois sem riscos, não haveria alterações em nossos valores, e, portanto, não faríamos histórias. Temos que chutar o pau da barraca sim. Temos que cuspir nas ditas verdades que nos são impostas garganta a dentro mesmo quando não estamos com fome. Temos que sangrar as canelas, ferir nossos joelhos, arrombar os lábios com as quedas sim.

Sabe por que? Mesmo a gente sabendo que o melhor de tudo seria nos acalentar com a previsibilidade da ordem, a vida nos surpreende com suas experiências boas e ruins. Quem quiser aceitar o caos vai sofrer e sorrir do mesmo jeito de quem aceita apenas a ordem, mas há uma diferença: quem aceita o caos, sabe que é humano, e por isso mesmo, não é invencível. Sabe que busca a alegria, mas nem por isso pode ser plenamente feliz.

Enfim, sabe que pode desmontar, desfazer, remontar e reconstruir as coisas, e por isso mesmo, se hoje chora com a putaria imposta pela vida, tem consciência de que pode re-organizar todos os seus afetos, pois é isso que aprendemos com o caos, ou seja, de que nos perdemos para nos desmontar, nos quebrar, nos achar, nos refazer, mas também nos superar.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

ESCURAS SOMBRAS DO DIA

Elizabete saiu cedo esta noite. Recordo-me do barulho da porta da sala de estar quando ela deixou a casa. Depois sobre todos nós veio um estranho e forte silêncio. O vento da praia soprava pelas janelas trazendo o gemido das ondas na beira do mar. As velas da sala e da cozinha estavam acesas. Do lado de fora, um rapaz com cara de sulista descasca uma laranja com as unhas calmamente. A porta da cozinha batia para lá e para cá pelo vento que soprava dos fundos. Recordo que voltei para o meu canto e lá fiquei. Mas, saibam que embora fora do problema, eu o vi acontecer bem defronte meus olhos.
A meia noite veio logo. Pensei que era uma brincadeira pueril assustar uma pessoa com histórias de coisas do outro mundo. Esta meia noite foi fria e silenciosa. A família se reuniu e todos contaram de si e alguma novidade. Por isso que fui para meu canto. Não suporto mais quando ele conta aquelas histórias de lampião. “Nego veio, Lampião matou muita gente, mas, era um homem bom; esse lado da história o povo não conta”.
De fato, ele estava velho e cansado. A despeito da velhice e do cansaço ele estava muito lúcido. Elizabete dissera: “Pai, volto logo, é um tapa!” O velho coçou a cabeça e disse com voz rouca: “Deus te abençoe, filha!” Elizabete saiu para visitar uns amigos que moravam do outro lado da cidade. Eu vi quando ela entrou em um carro preto. Elizabete saiu com os amigos.
Retornei para a casa do velho na madrugada. Umas três horas eu ouvi o ronco de Guilherme. Foi o rapaz da laranja que caiu no sono após ouvir o jogo de futebol no radio velho. A casa estava solitária. Darci e Pedro dormiam no chão. Achei muito estranho aquilo. No entanto, o que é que eu tenho a ver com isso? Não é assunto meu! Andei pela casa até me cansar. Então sentei em frente à televisão e fiquei vendo os programas. Repentinamente, eu apaguei, entrei numa viagem mental pelas formas e cores que fluíam daquela tela...
Eu estava em Campos de Rio Real. Era época de muita chuva. O mês de julho entrou molhado. A cidade respirava eleição. Uma grande disputa em Campos estava ocorrendo. Do lado dos Cabaus, os Ferreiras respondiam; e do lado dos Pebas, Os Gonçalves davam a última palavra. A briga estava feita. E Robertinho no meio! Esse era um rapaz de ouro, o único problema segundo sua namorada era ele ser filho de um Peba, o doutor Aristóteles – o médico de sua família, como ele gostava de dizer. Amélia amava Robertinho, e Robertinho amava Amélia.
A duas famílias não apoiavam o amor deles, por isso eles foram morar em uma casa de praia para as bandas do mosqueiro. O pequeno sítio tinha coqueiros, laranja, e até um pé de jaca. A casa era confortável e com quatro quartos espaçosos com guarda – roupa e todo o conforto. O problema era que naquela época não tinha luz ali. As velas e candeeiros iluminavam a casa durante as noites. Por muito tempo aquele foi um lugar que muita gente boa gostou de visitar.
- Se sente melhor agora? Perguntou ao moço um homem com jaleco branco.
- Claro doutor! Eu parei onde mesmo?
- Deixa para lá, Gumercindo!
- Mas, olha que moço bonito! Uma senhora de meia idade entra na conversa subitamente. O estranho rapaz para o diálogo com o médico para examinar a pessoa diante de seus olhos.
- Ela é quem mesmo? Perguntou o moço quase gaguejando. A mulher olha para o médico com o olhar de desconfiada e desesperança.
- Lamento Deusita, mas, o caso é esse. A senhora de meia idade cujo nome era Deusita deixa médico e paciente a sós de novo.
Eu me lembro daquele tempo que todos nós sentávamos ao redor da fogueira para comer milho assado e soltar fogos. Oh, tempo bom meu Deus! Sabe, Carla era tão bonita, eu me lembro dela. Mas, aposto que ela já casou! As pessoas são assim, casam e vão embora deixando um pedaço de suas vidas para trás. As coisas pareciam ser assim com Gumercindo.
- Seu Gumercindo dá licença! A mulher afro descendente levanta a camisa do rapaz e injeta uma substância em suas veias. “Pronto!” “Doeu?” “Não me diga isso!” o homem tornou a falar.
“Bem, eu estava mesmo era me lembrando de Campos quando nós chegamos por aqui”.
- Ele fica assim o dia quase todo.
- E o que é isso doutor?
- É um tipo de esquizofrenia muito delicado.
- Tem jeito?
- Todo mundo fala só, não é?
- É, mas, esse é diferente.
Levaram Gumercindo para o quarto. A injeção estava fazendo efeito. O pobre homem foi levado na mesma cadeira que sentava. “Todas as vezes que ele falar assim compulsivamente aplique nele a mesma quantidade de hoje”. Calaram Gumercindo novamente. Naquela clínica a paciência era muito pouca. Sua esposa Deusita o visitava todo final de semana, mas, quando ele enganchava na conversa, ela se retirava. Ela pediu a clínica para sedá-lo em situações como essas. Afinal, quem suporta escutar uma conversa partida?
Gumercindo adormecendo em seu leito solitário, por um instante, muito breve por sinal, olha para os lados para ver se alguém o via. Gumercindo levanta-se da cama e segue em direção ao banheiro. O banheiro era um dos melhores lugares para o pobre Gumercindo, pois, era um lugar quase seu. Ele puxa a porta do armário e retira de dentro umas anotações que ele andava fazendo aquelas noites. O paciente da Clínica Repouso Seguro folheia seus escritos. Dia 21 de março de 1998:
“Mais uma vez a segui depois do horário de trabalho; seu telefone foi às 17:58 para me avisar que chegaria por volta das seis da tarde. Ela estacionou o carro no shopping center e entrou no recinto; me contive permanecendo no estacionamento; ela logo apareceu; meu Deus eu não acredito nisso? Isso não é possível; até você Deusita!” Gumercindo lia o texto e repetia tudo novamente. Ele queria encontrar um nexo lógico para tudo que vivera, mas, parece que o mundo era agora algo muito difícil de ser entendido. “Eu digo as pessoas e elas me dizem: ‘É impossível’” “Será que enlouqueci?” “Acho que devo ir fundo nessa história”.
De fato Gumercindo pagou uma investigação privada para esclarecer os fatos de vez. Em pouco tempo, ele tinha nomes, endereços e horários. Gumercindo passou a ser a sombra daquela mulher. Ele alugou um quarto no motel onde ela se encontrava com seu amante. Por uma câmera ele acompanhava tudo que ela fazia. Depois de um determinado tempo, Gumercindo percebe que seus pensamentos estavam, digamos, um pouco fora do usual. Depois as dores de cabeça vieram, e com elas algumas alucinações.
- Mulher teu marido está louco!
- Que é isso gente!
Deusita internou Gumercindo. Desde então ela vive de sua pensão e de alguns trocados que ela ganha como técnica de informática.
Gumercindo sai de seu lugar favorito e volta para sua cama. O sono estava tomando conta dele. O homem nordestino acostumado com uma vida dura para ter conforto se rendia ao efeito do calmante. Seus olhos se fecham como janelas de uma casa solitária. O sono se apodera do homem. Seu rosto mostra as contrações que criam rugas, ora de alegria e prazer, ora de dor e sofrimento. Sua respiração e os seus batimentos cardíacos compunham uma sinfonia a parte. O enredo da trama que se desenvolvia em sua mente; ninguém jamais soube.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Meu nome é desejo, muito prazer!

Cheguei ao mundo para brincar de me enrolar por entre os nós. Não condeno quem acha que vive livre deles. Quem quiser acreditar na verdade absoluta e na possibilidade da harmonia eterna que acredite. Cada um escolhe sua própria ilusão. Quanto a mim, eu fico aqui enrolado. Eu sou o caos, sou a indagação, sou o problema. Eu vim pra cá foi pra deixar suspeitas. Não é da minha intenção cobrir o universo com agasalhos e dar-lhe colo. O que eu quero mesmo é retirar a cada instante o seu véu, rir com a falta de garantia, brincar no recreio jogando para o alto todas as peças desse jogo, revirar todos os dados e sequer pensar na pretensão acomodada de que eu posso ser previsivelmente o início, o meio e o fim.

O caos... certa vez, não sei bem quando, nem onde, vozes tentaram arrancá-lo de mim. Por medo dos olhos sedentos de ordem, eu quase deixo levar esse patrimônio mais sublime que preservo em minha alma. Em crise, corri para dentro do meu quarto. Fiquei na cama pensando se deixaria minha desordem. Ao pensar em me levantar da cama, não me vi deitado a lugar algum e em lugar nenhum. Pensei: não seria eu esse querer existir? Como podem aquelas vozes ter a pretensão de retirar de mim todas as infinitas surpresas do tentar me encontrar e do me desencontrar? Por que farei imensa tolice em deixar de lado a busca que faço de mim? Não!

Nem saí, nem entrei. Fui, sei lá. Sentindo-me um mero joguete dos tempos verbais, decretei a todo o universo de nós que me cercava que eu precisava correr o risco. Eu precisava correr o risco! Não cabia a mim sugerir uma perfeita integridade. Dei-me conta de que eu era uma luz em inconstante estado de desintegração. Gritei, pois eu queria o azar. Precisava mais do que nunca de todo o perigo. As estradas, apesar de maquiadas de sentidos, eram variáveis e cheias de deslizes. As placas eram apenas rastros. Meus pés eram festas surpreendentes por novos motivos pelos quais eu alimentava o meu exercício de viver, apesar de eu perceber que nunca tinha adquirido a plenitude desse dom.

Para quê ceder ao Senhor Totalidade toda essa herança de traquinagens? Não havia sentido eu fazer com que minha vida passasse a ser uma história falseada de atos ordenados e de total apreensão das minhas memórias. Preferi viver a custa do falseamento de mim em sua originalidade pela busca do que nunca fui. A sorte que me cabia era apenas necessária para derramar toda a minha contradição em meio a algum lugar. Sempre fui dado a bagunça. Não era agora que eu teria que deixar as coisas intactas sem pretensões, sem ganâncias. Não cabia a mim encontrar a régua, o metro, o termômetro, o numero de meu pé. Precisava movimentar para lados possíveis e desconhecidos.

Triste daquele que se apega a uma verdade. Minhas mãos não a alcançam. Pelo menos as minhas mãos não alcançam. A probabilidade do encontro com a totalidade é tão opaca e cercada por miragens como a falta de certeza que me devora aqui por dentro, pelos lados, pelo que há de preenchido e pelo que há de oco. Olhos são ferramentas para acertar o caminho das nossas ações, mas são incapazes de definir com total exatidão tudo isso que foi criado por olhos cambaliantes e bêbados como os meus. As classificações exalam cheiros muito reais. As tipologias me soam organizações muito auto-suficientes. Entretanto, bastam-me aparecer os sonhos e eu logo passo a sentir algo além das meras certezas, definições, organizações e auto-suficiências.

De fato, posso dizer que a busca pela noite que não vem, pelos sonhos que não se realizam, é algo bastante cansativo e por demais desconfortável, mas é o que me resta. Se ao menos eu fosse a certeza do trajeto que se chega até a montanha, bem que eu poderia descansar na varanda da menina que tanto amo e esquecer do fluxo que me invade diante desse imenso universo. Bem que eu poderia deixar o mundo enquanto acalentava os cabelos cacheados e castanhos de Marina na rede da varanda de sua casa. Mas não é só isso. Ao mesmo tempo em que eu alimento amores e projetos com minha menina, eu corro em busca de amores perdidos, amores que penso um dia poder dizer o quanto eu estive aqui a procura.

É por tudo isso que reluto em aceitar a condição de um estado permanente das carícias e do amor de Marina. Eu sei que isso apenas não me caberia. Se esse amor que tanto devoto suprisse toda a minha sede de aventuras dentro desse espaço solúvel do qual não consigo fincar minhas raízes, bem que eu cederia toda essa minha busca. Bem que eu cederia todo esse desajuste do qual venho tentando me libertar, mas sei que não me liberto, pois eu não quero tentar me ajustar. Eu quero realmente o processo que, apesar de muitas vezes me fazer chorar, faz-me acreditar que há um sentido pra vida, nem que pra isso eu admita que sentido é tudo o que a vida não tem.

Minha história com Marina é muito bonita, mas ironicamente o amor existe para que nosso terreno chamado coração não possa ser destruído por ervas daninhas as quais chamamos de amor. Eu quero o encanto de todos os olhares de Marina, mas eu quero a vida cheia de outros amores, de outras curvas, de outras aventuras. Não posso querer menos que isso, pois menos é algo que eu já sou, mas não do que eu penso em ser. Quero ser agraciado com o acaso também. Eu preciso das mãos e do sorriso de Marina, mas preciso dos imprevistos, de outras surpresas, de novos encantos e maravilhas além da minha menina. Não posso ficar aqui.

Novamente não vejo a noite chegar. Olho-me no espelho, mas também não sei se o que vejo é o que eu tenho pra mostrar de mim ou o que o mundo precisa inventar pra mim. Preciso realmente da aventura, dos gritos, da dor, do amor, da minha casa, da minha ferida, do gelo, da oração, do canto dos pássaros, de Marina, de sua casa com sua rede na varanda e da sua singela serenidade. Mas apesar de cansado, olho bem distante tudo que eu não sei o que é, mas que sei que quero ser e ter. Ponho o infinito em minhas costas e vou à procura do querer, mesmo que para isso eu tenha que me deparar com o medo do que eu quero.

Meu nome é desejo, muito prazer!

terça-feira, 22 de outubro de 2013

A CIDADE DAS ARANHAS

A cidade e as aranhas

Todos os homens sonham com a vida eterna; a grande maioria desencarna sem descobrir que a morte é um engano.

Na Aracaju dos anos oitenta, as mudanças provocadas pela industrialização recente, jogaram muitas pessoas num oceano de dúvidas sobre o sentido de nossa existência terrena. Minha pessoa teve a oportunidade de ver florescer junto com o progresso da cidade, a semente de uma sociedade marcada pela reificação ou pela coisificação do ente humano – algo muito conhecido nas grandes metrópoles do mundo inteiro.  A mocinha Aracaju, nos anos oitenta e noventa, perdia sua pureza de cidade muito pequena para se tornar, em pouco tempo, em uma arena de conflitos, ou em um mar de contradições e tensões sociais. Seus moradores agraciados pela chave mestra do capitalismo – o dinheiro, fizeram como nas grandes cidades brasileiras - se encastelaram em seus condomínios e prédios modernos enquanto uma gigantesca massa humana mergulhava dia após dia num mar de miséria.

Foi nesse imenso mar de desesperançados que nasceu o jovem Túlio. Túlio era um rapaz de muito valor para sua família. Esta, embora pobre, era formada por pessoas dignas e honestas. Túlio levava consigo a boa educação de seus pais e a certeza de que “Deus ajuda a quem trabalha”. Esse era o lema do jovem rapaz nascido no bairro Santos Dumont – o trabalho como meio de mudança social.

- Meu filho, eu trabalhei a vida inteira. Pelo menos, eu posso comprar o meu caixão. Seu Maurício mais uma vez disse a palavra chave.
- É meu pai, Deus sabe o que faz. Existem diferenças na sociedade, mas, o trabalho traz a mobilidade e esperança de uma vida melhor. Túlio como seu pai era adepto da filosofia do pagar para viver.
- Meu filho, graças a Deus que você entendeu isso cedo. Essa foi a causa de você não ter tido o mesmo destino dos outros garotos aqui do bairro.
- Pai, eu tenho planos de comprar, no fim do ano, uma moto. Minhas economias darão para arcar com as despesas. Graças a Deus!
- Que bom meu filho.

Pai e filho se despedem para mais um dia longe de casa. Túlio foi para a loja de autopeças “Aki tem tudo”, e seu pai para a fábrica de sandálias no bairro Industrial. A casa de Maurício ficava deserta desde que dona Amélia foi morar no céu. Amélia, mulher de Maurício, depois de anos de trabalho como domestica, conseguiu a chave da casa própria no bairro Santos Dumont. No dia em que a genitora de Túlio soube que, finalmente, sairia do aluguel, acendeu uma vela gigante para Cosme e Damião: “Eu sabia que um dia Deus ia se lembrar de mim”. Pena que dona Amélia passou tão pouco tempo na nova casa. Amélia entregou seu sonho para seu marido e seu único filho – Túlio; a morte impediu que dona Amélia visse o fruto de seu trabalho.

A natureza é implacável assim como são o individualismo e egoísmo humano. Seu Maurício foi abordado por dois marginais nas proximidades da Orlinha do Bairro Industrial. O velho prestes a se aposentar sentiu a lâmina fina de uma faca empunhada por um adolescente. Maurício foi para o céu sem ver seu sonho realizado e Túlio ficou na terra para tentar realizar o seu. Com a morte de seu pai, o jovem Túlio se desarmonizou. O rapaz nunca bebera antes, nem havia passado uma noite fora de casa. Túlio, então, passou a frequentar a balada noturna de Aracaju.

- Túlio, até que fim você acordou para o real sabor da vida. Túlio deu uma risada por entre os cantos da boca. Sua mão direita segurava um cigarro como se ele fosse uma boia para o sobrevivente de um naufrágio; na outra mão, o jovem rapaz segurava o copo de caipirinha feita de vodca e limão. Aquele devia ser o décimo copo.
- É minha amiga Têca até que fim a vida começou para mim.
- Amigo, lembra dos tempos do Costa e Silva?
- Claro que lembro. E você naquela época já era linda. Os dois passaram, a sair juntos. Túlio e Têca amavam a mesma coisa e dividiam o mesmo mundo. O paradigma era: “A semana é para o trabalho, e o final de semana para a curtição”. Este era regado a muito álcool.
As pessoas da comunidade do “Santos do Dumont” testemunharam Túlio pôr Têca para morar na casa de seus pais.
- Parece que Túlio vai fazer vida com essa moça.
- Quem é ela comadre?
- É a filha de seu Flores, o catador de alumínio.
- Como ela cresceu. Eu me lembro dela aqui na rua a brincar com suas amigas. Mulher o tempo passa ligeiro. Os anos passaram, e com eles a juventude do casal. Túlio chegava aos quarentas e Têca aos quarenta e um. Túlio continuava trabalhando na autopeça, sua mulher trabalhava na rua Laranjeiras como balconista. A moto de Túlio não suportou a idade. Túlio quis comprar outra, mais, mesmo com a inflação contida, a vida de casal e a curtição não lhe permitia uma economia maior.
- Têca, esse ano completam vinte anos na autopeça.
- Parabéns, maridão! Têca pula no pescoço de seu amor beijando-lhe a face.
- Obrigado, mas, num é isso que eu queria. Espia!
- Vinte anos trabalhando e não tenho nada. Mesmo nós dois com nossos salários não nos permite fazer nada além do que fazemos: Beber no final de semana.
- E o maridão queria o que? A vida é isso! Túlio se conformou com a resposta de sua mulher, mas, decidiu sair a pé para relaxar suas emoções. Túlio chegou à linha de trem da antiga leste. Passa a parede de proteção e caminha pelos trilhos; ele sabia que os trens trafegavam por ali muito raramente. O caminhar pelos trilhos o fez lembrar-se de seu pai e sua mãe. Ele se recordou que os dois trabalharam a vida toda e não tiveram nada. A única coisa de que eles podiam se orgulhar era de sua honestidade e dignidade.

- Psiu!
- Quem?
- Psiu!
- Quem é? Túlio olha para a linha paralela a sua. Nela estava um vagão velho que outrora fora usado para transportar suco de laranja de Boquim para Aracaju. As portas do vagão estavam abertas, contudo, seu interior era muito escuro, nada se podia ver. Túlio corajosamente caminha para o vagão.
- Pare aí moço!
- Por favor, eu não tenho nada!
- Que é isso rapaz, não sou bandido não! Túlio por um instante se acalmou.
- Venha aqui moço! Túlio subiu no vagão. Este estava muito escuro, ninguém podia ser visto ali.
- Fique aí mesmo rapaz! Túlio voltou a ficar nervoso: “Epa, acho que estou em apuros”. Pensou o jovem vendedor de peças para auto.
- Qual é o número de sua identidade?
- Que é isso moço? Ninguém dá esse número assim não.
- O cpf também!
- Quem é o senhor? Uma nuvem de fumaça na forma de caracol precedeu a resposta a pergunta do rapaz.
- Moço, os romanos diziam que tudo tinha que ser escrito e documentado. O estado de direito é o estado da papelada ou da burocracia. Você sabia que isso dá muito dinheiro e gera muitos empregos em todo o mundo? O jovem aracajuano estudou muito pouco para entender essas coisas, no entanto, Túlio se interessou pela história da misteriosa criatura do vagão.
- O moço podia sair daí, digo, do escuro, para que eu possa vê-lo?
- A falta de simetria social e de leis mais justas para todos é a causa das mazelas sociais. A burocracia é um instrumento de exclusão social em muitas realidades estatais espalhadas por todo o mundo.
- O amigo pode me dar só um pouquinho de sua atenção?
- Moço, a burocracia quer dizer também controle sobre a sociedade. A realidade social é a soma de todos os seus fenômenos. São eles que mostram suas leis, atributos e marcas distintivas e individualizantes.
- O amigo poderia se mostrar para que eu o veja. Repetiu Túlio. O interior do vagão era escuro, muito escuro. Túlio não sabia o que procurar. Ele ouvia uma voz fina de homem. A voz o remetia a imagem de um cidadão de estatura média, em boas condições físicas; o homem usava cabelo partido no meio. “Quem?” Túlio pensou ao ouvir a voz novamente. O escuro do vagão não dava chances a Túlio de encontrar a fonte da voz. Mais uma vez o homem fala:
- Todos nós viemos para cá há muito tempo atrás. Nossa comunidade cresceu entre esses trilhos. Vimos muitos trens partirem cheios de popa de suco de laranja para outros estados do Brasil. O tempo quase desativou tudo. Agora os sonhos do trilho estão menores. A estação está muito solitária.
- O amigo quer dizer o que?
- O movimento das coisas nessa época permitia o uso de uma maior rede. Todo o lugar hoje tem trilhos. Quando estes faltam, coisa rara aqui e ali, como dizia o camarada russo da linguagem; criou-se, por aqui, uma teia discursiva. Os elos ou os nós estão em relação simétrica com o outro. A simetria de uma teia de aranha entre suas redes e fios, ou fios com fios, em permanente equidistância devia ser inspiração para o estado, embora possam existir as diferenças, e outras áreas de permanente tensão, a redes das aranhas se renovam, exatamente, nos ditos pontos de tensão e com elas evoluem as sociedades.
- Moço, por que sua pessoa não aparece, essa conversa está sem sentido.
- Moço sem os documentos você não existe. Um dia tive um sonho que o homem virava papel. A humanidade inteira era um texto de infinitas probabilidades de tecer um caminho. Túlio perdeu a paciência e iniciou uma varredura no vagão. “Nada meu Deus!” “Será que estou a ouvir vozes?”
- Calma! Já vou.
- Como é seu nome moço?
- Bem, bem desde que me entendo por gente, me chamam de “Ela”. Túlio dá uma risada. A voz retorna um tanto irritada:
- Moço, olha o respeito aí!
- Que respeito, rapaz!
- Bem Eu sou Ela.
- E eu sou Ele. Disse Túlio. Os dois riram sem nunca terem se visto.
- Já vou. Disse a voz novamente.
- Já vou disse Túlio.
Túlio voltou para os trilhos. Ele ficou sem entender a experiência que acabara de ter.

O casal seguia sua vida. Têca e Túlio viviam como Deus queria. No final do ano sempre tinha um churrasquinho de linguiça com carnes variadas com muita cerveja. Isso exigia que se escolhesse o final de semana, pois, o dinheiro não dava para muita coisa. O casal se aposentou. Os sobrinhos de Têca gostavam de visitar a casa. Um dia, os aposentados descobriram uma coisa: “Há um ninho de aranha no quarto dos fundos, Túlio?” “O que, meu bem!” “ Teias de aranha por todo o quarto; a vizinhança está reclamando das aranhas”.
Túlio foi ver as aranhas. Havia aranhas filhotes, e outras grandes, digo, enormes. O quarto estava, realmente, tomado pelo mundo aracnídeo!
- Meu amor o que é isso?
- Aranhas!
- Aranhas!
- Chamem os bombeiros!
- As aranhas estão mordendo!
- Isso! E agora?
- O que houve?

O processo de urbanização em decorrência do crescimento da economia devido o capital industrial exigiu ocupar todos os espaços urbanos disponíveis. As aranhas ficaram inquilinas. O inquilinato para as caranguejeiras é uma experiência não muito bem entendida. Esses animais não se conformam com a falta de espaço. As caranguejeiras invadiram garagens, e residências, a população chamou as autoridades.

- Aqui é a Tevê Fontinha falando diretamente de Aracaju no Siqueira Campos: “A invasão das caranguejeiras”. “Esse é um problema que a nova cidade tem que resolver”.
Túlio e sua mulher se aposentaram com 100% do salário mínimo. Têca e Túlio, já no fim de suas vidas diziam: “O trabalho transforma realidades”. A comunidade do Siqueira aprendeu a viver junto das aranhas. Vez ou outra uma faz uma arte em alguém.

domingo, 6 de outubro de 2013

jerson e sua amiga baleia



JERSON E SUA AMIGA BALEIA

Dizem que os bichos não deviam ter um nome, deveriam ser chamados de bichos apenas. Pois! Meus amigos, no sertão os bichos não têm apenas têm nome; eles têm, mesmo é alma...

Gérson era um menino de dez anos que se criava calmamente com seus pais até o dia que ele encontrou uma cachorra abandonada, próximo a Rodoviária de Tobias Barreto. “Olha papai a cachorrinha!” “Gérson, você me promete que se eu pegar essa cachorra e criar você vai tirar boas notas?” “Prometo pai, prometo; Juro, por tudo que é sagrado, que vou ser o menino mais comportado do quinto ano”. De fato Gérson depois que sua mãe, Dona Ximenes faleceu, o menino se tornou rebelde. As professoras da Escola Álvaro Alves de Matos não sabia mais o que fazer. Os funcionários e professores traziam todos os dias reclamações para a diretora: “Gérson, não copia a lição, não faz o dever, e passa o tempo todo com o celular”. “Gérson jogou o rolo de papel higiênico dentro do vaso sanitário”. “Gérson quebrou a descarga”. “Gérson estava ameaçando os colegas com um estilete”. A diretora Maria Padilha já havia pedido ao Padre Figueiredo para rezar uma missa na escola. Na ocasião, os alunos se confessaram menos Gérson.       Depois da cachorra baleia, a história mudou. “Mas, gente, Gérson está um primor de criança, faz os deveres, copia os assuntos, e presta atenção à aula inteira. Esse ano ele passa, mesmo”. Disse sorridente a professora, psicopedagoga Tereza de Zé do Requeijão. A diretora Padilha não mais recebera reclamações do menino, pois, Gérson estava regenerado. “Graças a Deus, menos um a dar trabalho!”
Só tinha um problema; algo muito estranho estava acontecendo em casa. Rodriguinho de Miguel estava muito preocupado com a amizade de seu filho e a cachorra baleia. A princípio, o homem não via nada, mas, depois que ele viu a cachorra sentada na cadeira junto com seu filho fazendo a lição o homem ficou apavorado. No sertão, é preciso fé para crer, mas, baleia era a melhor professora do mundo! Gérson aprendeu a conversar com ela, ou melhor, ela aprendeu a conversar com a criança. Tudo começou numa tarde de chuva. O menino escorregou na calçada e se machucou com a queda. A cachorra correu rápido e latiu três vezes balançando o rabo na vertical e depois esticando os pelos como se fosse um gato quando leva um choque. Rodriguinho achou aquilo estranho e procurou pelo filho. Logo viu que ele chorava muito e o socorreu. Gérson machucou o tornozelo e ficou sem caminhar uns dias. Daí em diante, qualquer coisa que o menino precisava a cachorra achava um jeito de avisar.
Certa noite, Gérson teve um pesadelo, a cachorra foi acordar Rodriguinho, ela lambia o homem e latia. A resistência de Rodriguinho não resistiu à insistência da cadela vira lata. Ao chegar ao quarto do garoto, ele estava suado e em estado de choque. Coisas como essas aconteceram, mas, não se comparam as aulas que a cachorra passou a dar ao garoto. A cadela sabia matemática, álgebra, inglês, história, geografia, ciências, sociedade e cultura, língua portuguesa e ainda ensinava muito bem alguns passos de capoeira. O segredo foi mantido pela família. Contudo em Campos, nada fica escondido.
- Verdade que a cachorro de Gérson é espiritada?
- Mulher, eu ouvi dizer, sabe, mas, não provo. Você sabe alguma coisa?
- Pois, estão falando na rua que pegaram o menino conversando sobre teologia com o animal. Isso é um absurdo, nunca se viu uma coisa dessas no mundo. Isso é coisa do diabo!
Depois dos comentários, Gérson não mais podia sair com seu bicho na rua que o povo jogava pedra. “Olha a cachorra espiritada!” As pedradas eram muitas, todavia, a paciência do menino era grande.
- Pai, por que o povo não gosta de baleia?
- Meu filho, o povo não gosta do que estranha.
-Não entendi pai! Diz aí baleia o que meu pai falou! A cachorra, com dois latidos curtos, pediu licença e depois abriu a boca a latir. Pouco tempo depois, Gérson disse: “Baleia falou que é preconceito contra os animais”. Seu pai arregalou os olhos e pensou consigo: “Acho que vou morar em Aracaju”.
Rodriguinho fez de tudo para morar na capital sergipana. A sorte não bateu a sua porta. Gerson crescia e com o tempo ficava mais íntimo de baleia. A cachorra baleia foi encontrada abandonada no centro da cidade. No começo, era uma cachorra normal. Tinha suas cachorradas, mas, somando o bom e subtraindo o ruim, ela foi uma cachorra nota dez. Baleia tinha o canto certo de fazer as necessidades – o jardim da praça que ficava defronte sua casa. Aquele era um lugar conhecido há anos. E tomava banho a cada três dias. O calor do sertão é muito. Baleia e Gérson estavam estudando para o vestibular de direito. A cadela estava muito sabida, conhecia o código penal, civil e outras coisas. A família assombrada estava reunida na tardinha do dia vinte três de agosto, quando Arquimedes chegou em um carro cinza prata; era um gol. “Sou do jornal coluna da verdade, gostaríamos de falar com vosso filho”. Chamaram Gérson que veio acompanhado de sua amiga leal baleia.
- Como é entender o que um animal pensa?
- Sei não.
- Digo, como é que você sabe o que ela quer, pensa ou diz?
-Quando ela me dava aulas de matemática, ela me dizia para ter cuidado com a leitura dos enunciados. Nunca me esqueço da primeira vez: “Menino, “e” pode ser mais em um cálculo de adição”. Isso revolucionou minha aprendizagem na época, logo quando ela veio morar comigo.
Depois do jornal coluna, vieram outros dois jornais, e por último, o do Rio de Janeiro. Gérson e baleia ficaram famosos subitamente. A Universidade de São Paulo fez um projeto de pesquisa sobre a relação do menino e o animal. Após alguns anos de estudo eles descobriram que era algum tipo de charlatanismo, porque a criança poderia aprender tudo sozinha. Os livros estavam em sua posse. No entanto, pareceram sem explicação algumas comunicações objetivas entre menino e a cachorra, mas, o fenômeno ficou sem explicação. Levaram Gérson para o departamento de psiquiatria de uma universidade americana, a cachorra foi estudada e o menino também, nada a psiquiatria conseguiu provar. Por fim, levaram os dois para o centro espírita ‘caridade é caridade’. “O animal tem um obsessor!” “Como?” Perguntou Rodriguinho. “Em outras vidas o animal foi gente”. “Como, moço?” “Eh, nós acreditamos que a cachorra foi gente em outra vida e ela está levando uma vida de cachorra porque merece e escolheu isso”. “Sei”. Rodriguinho parou de perguntar para ouvir a história toda.

“Baleia, em outra encarnação morava em Paris. Seus pais moraram com ela até ela concluir os estudos. Depois de formada Susana foi morar na França. Por motivos que não foram explicados ela começou atropelar os cachorros que visse nas ruas. Foram muitos os animais que matou. Houve outros que ficaram deficientes. Depois do desencarne vítima de uma doença de cachorro, Susana reencarna na forma de cachorra”. Rodriguinho, para, pensa e deduz: “Baleia é Susana!” “Quer dizer que meu filho está com a amizade com uma dona”. “Mas, o corpo é de cachorra!”
O tempo foi passando e com isso o amor de Gérson pelo animal ficava maior. Uma manhã de domingo, baleia amanhece doente. Gérson logo descobre e a leva ao veterinário na clínica “trate o seu cão como um anjo”. Foram descobertos três tumores no abdômen de baleia. A cirurgia foi marcada para semana seguinte. Na terça feira, às seis da tarde baleia é operada e falece. Seu coração idoso não suportou ao processo cirúrgico. Gérson entrou em depressão. Se o moço, embora sabido, não se dava com gente, depois da morte de sua amiga, ele se calou de vez.
- Gérson, meu sentimentos por baleia.
- Gérson, baleia agora está num lugar melhor.
- Gerson, baleia está descansando na sepultura.
- Gerson, disseram-me que viram baleia no centro espírita ‘caboclo pode tudo’.
-Gerson, está melhor? Vamos tomar uma? Gérson não se convencia por nada. Em sua mente estava a imagem da mulher de sua vida – baleia.

Os anos passaram. Gérson desde a morte de baleia nunca namorou. Deu umas paqueradas, mas, nada sério. Era nove da noite de domingo; Gérson vinha da igreja. O rapaz resolveu esquecer baleia se lembrando de Deus. No meio do caminho vinha uma moça morena clara com óculos de ler grossos caminhando em sua direção. A moça segurava alguns livros na mão. Gérson, acha esquisita a moça e a aborda para uma conversa.
- Oi!
- Oi!
- Meu nome é Gérson. E o seu?
- O meu é Marta.
- Você me dar um minuto de sua atenção?
- Sim, pois não. A menina achou estranha a abordagem, mas, Gérson era um rapaz simpático.
- Olha, não me ache esquisito; eu acho que você está doente.
- Como rapaz? Você está doido!
- Não! É porque eu senti o cheiro!
- Vá pra lá moço! Respeite-me, por favor! A menina saiu muito zangada da presença de Gérson. E assim foi até ele envelhecer. Já velho Gérson decide fazer o que sempre quis fazer; quando era lua cheia, o velho Gérson latia, latia até se cansar...


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

VIDA DOCE VIDA

Quando eu era criança eu nem percebia que o tempo passava. Eu via que as pessoas construíam casas, compravam carros, sítios e outras coisas; via até que elas iam mudando a aparência; elas envelheciam. Um dia fui visitar minha vó que morava num povoado muito distante da sede do município. A pobrezinha mal conseguia falar, e nem se lembrava de mim, mas, justiça seja feita, ela teve oito filhos e cada um fez família e o que teve menos filho, foi Teodolito, que Deus o tenha, o tifo o pegou e o levou para o lar eterno. O encontro com aquela velha senhora que não significava muito para mim, pois, convivemos muito pouco, e ela num era de muita conversa foi um tanto entediada. Eu ouvia a conversa dos adultos, não entendia muito que eles diziam; na verdade eu gostava mesmo era de brincar com os primos, mas, infelizmente naquele dia nenhum deles estava lá. Meus pais se despediram da vovó e disseram: “Vai Raimundo Nonato dá um beijo na tua vó!” Eu os obedeci, mas, a velha fedia a virilha mal lavada. Eu disse segurando na mão de minha mãe: “Adeus vovó!” A velha levantou a mãozinha acenando para mim com um olhar desfocado. Essa foi a última vez que a vi.

Um dia eu presenciei algo que ficou na minha cabeça por muito tempo. Eu gostava muito do meu velho, mas, odiava quando ele me levava para “rinha”. Ele era viciado em briga de galo, uma vez apostou o carro, um Ford 66, mas o perdeu; seu galo caiu defronte uma torcida fanática que apostara no famoso “galo de seu Antônio”; meu pai havia treinado o seu Jiló, mas, o Jilozinho não suportou três rodadas e virou frango assado. Nesse dia ele brigou com minha mãe: “Mulher, o feijão está sem sal!” “Já pensou comer feijão desse jeito!” Eles não brigavam muito, mas de vez em quando, eles tinham algumas briguinhas.

O tempo foi passando, e meus irmãos mais velhos foram saindo de casa. Aos dez anos ganhei uma calça faroeste legítima, e uma camisa que tinha um jacaré no lado esquerdo bem no peito. Eu adorava vestir aquela roupa, mas, minha mãe era cuidadosa e econômica, ela dizia: “Essa não!” “Vista a bermuda marrom, pois, essa roupa é para as festas!” Quando ela dizia festas, eu me perguntava que festa; toda vez que os dois saíam; eu ficava só. Meu irmão mais velho já era casado, o outro tinha uma namorada, minha irmã, a mais velha vai das mulheres havia ido estudar em Aracaju, então, sobrava para mim a velha televisão e o gato, que, aliás, enquanto viveu, foi um bom amigo. Eu o enterrei no quintal e encomendei sua alma ao céu dos gatos.

Enquanto minha pessoa crescia, eu observava o costume do povo, não sei por que razão, mas, eu achava os costumes de minha terra uma tolice. Sentar na calçada para falar qualquer coisa, depois comer e em seguida voltar para a calçada, e depois comer novamente, e voltar para a calçada, finalmente, chegava a hora de dormir, contudo, quando havia qualquer movimento, dava para se ouvir o estalo da janela ou da porta de alguém. Essa era a vida do povo de Campos de Rio Real.

Na adolescência tive uma namorada, sua imagem permanece até hoje na minha cabeça. Dulce era doce como mel. Ela foi um consolo em minha vida após a morte de meu pai; meu velho resolveu, de uma hora para outra, fazer exercícios; deu uma carreira, e o coração quase saiu pela a boca. O enfarto foi fulminante. Dulce esteve comigo o tempo inteiro. Todavia nossas vidas tinha que tomar rumos diferentes; ela queria de todo gosto ser missionária transcultural; eu por outro lado, gostava de vender e comprar coisas. Tornei-me um comerciante; vivi o quanto pude de minha lojinha que ficava próxima ao Banco do Sucesso. Um dia desses, me disseram que esse banco quebrou; rapaz, eu fiquei muito triste; ele era um banco tão bom.

Meus irmãos se espalharam pelo mundo, eu fiquei na minha terra. No Natal, toda a família se reunia para comemorar. Aquele era o momento de nos abraçarmos, contarmos nossas vantagens. “Raimundo, minha criação de cavalo tá dando; rapaz, eu nunca vi coisa tão boa para se ganhar dinheiro!” “Raimundo, como vai a lojinha?” O Natal era assim, uma mistura de vaidade e de saudade dos tempos bons que vivemos. Depois cada um ia para seu mundo, e, eu para o meu. Casei, tive dois filhos, minha mulher Clarice, teve um derrame aos quarenta e sete anos; mas, graças a Deus, não lhe faltou nada durante o período em que ela ficou entrevada na cama. No dia do seu enterro, choveu muito em Campos, tivemos que esperar os parentes que vinham de longe. O cortejo na Avenida Sete de Junho foi muito grande, éramos conhecidos por todos, todavia, em Campos, muita gente vai para o enterro dos outro por “solidariedade cristã”. Isso virou tradição, você dá pêsames a alguém que não tem nenhum laço de afeto com você, mas, costume é sempre costume.

Minha menina era a cara da mãe. A danada era sabida desde o primário. Gostava muito de estudar, por isso, eu a matriculei no Colégio Monsenhor, a melhor escola para a sociedade local. Ela se formou professora e, quando chegou à política, eu pedi ao meu compadre para arranjar para ela uma vaga de professora numa escola pública. Hoje graças a Deus ela já está quase se aposentando. Nunca tive contrariedade com o meu menino Raimundo Filho. Ela passou a me ajudar na loja; pensei até que ele seguiria o ramo, pois, o danado não abriu uma farmácia. Em Campos, o que mais dá é cama, mesa e banho, bar, e farmácia. Meu negócio num era nenhum desses, o meu comercio era vender artigos para presentes. Com isso vivi, e agora com oitenta anos estou esperando a danada chegar. Fiz até um contrato com uma funerária que, segundo o povo, faz maquiagem no defunto.

- Raimundo!

- Para de conversar! Entra! Num tá vendo que tá serenando?

- Já vou mulher! Olha meu amigo foi muito bom prosear com sua pessoa. Mas, como é seu nome mesmo?

- Raimundo Nonato.

- Oxente! Então, você é meu xará.

- E num é rapaz!

- Raimundo, eu num disse que você viesse para dentro? Rapaz para de falar sozinho, e vem dormir!

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A colagem surrealista nas aulas de Sociologia II

Cotidianamente nos deparamos com uma quantidade infindável de pontos de vista. Em se tratando do contexto atual no qual as culturas extrapolam com maior velocidade os domínios circunscritos de suas fronteiras, é inevitável encontrarmos uma pluralidade de concepções de mundo formando uma cultura múltipla. As trocas estabelecidas principalmente pelos novos meios de comunicação têm propiciado isso.

Porém, paralelo a essa miscelânea de infinitas identidades e de culturas oriundas de todas as partes do planeta, encontramos formas de preconceitos e de segregações bastante marcantes em nosso dia a dia. Os mesmos meios de comunicação que projetam várias culturas, são os mesmos que são gerenciados e comandados por setores dominantes que buscam a partir desses meios, impor seus pontos de vista.

Ao mesmo tempo em que os discentes se vêem educados por esses meios de comunicação, sendo apresentados a uma diversidade de culturas e submetidos a discursos tendenciosos; o ambiente educacional não permite o convívio com a diversidade e peca em se preocupar em ensinar ao aluno um modelo de conhecimento, não permitindo que esse aluno crie sentido e produza novos conhecimentos.

Este texto se propõe a mostrar como a Sociologia no ensino básico, através dos conteúdos referentes à cultura, pode permitir com que os discentes atinjam de forma crítica um olhar acerca da diversidade e do poder contido na sociedade a partir das colagens surrealistas. Além disso, mostrar a possibilidade de fazer do ambiente escolar, um espaço voltado para a autonomia e para a liberdade dos alunos.

Quando eu uso o termo crítico, eu estou me referindo a um posicionamento consciente do discente acerca da sociedade e do mundo em que vive. Ter criticidade significa possuir capacidade de pensar de forma autônoma. Para que essa autonomia seja concretizada, é imprescindível que o ambiente escolar estimule a liberdade do pensamento para que o aluno seja capaz de criar seu próprio ponto de vista.

A Sociologia foi escolhida como a disciplina para efetuar essa aplicação das colagens surrealistas, primeiro por que atuo como professor nessa área, além de ter formação acadêmica nela; segundo por que a sociologia tem como objetivo provocar uma mudança de olhar acerca da sociedade, tornando esse olhar mais crítico. Além disso, ela busca provocar o exercício da convivência com a diversidade.

A escolha referente à cultura se deve ao fato dela não só ser marcada por essa diversidade por ser resultante das trocas estabelecidas entre diversos povos e diversos meios sociais; como também a cultura passa pelos processos sociais dissociativos como os conflitos, os quais são provenientes da relação que a cultura também estabelece com as diversas formas de poder instituídas na sociedade.

As colagens surrealistas são importantes como estratégias nos conteúdos referentes à cultura, pois como esses conteúdos trazem de forma recorrente em sala de aula as discussões acerca da diversidade e do poder, com as colagens surrealistas essas discussões podem ser visualizadas enquanto prática nas dinâmicas propostas no ambiente escolar ao fazermos usos delas nas aulas de Sociologia.

Como a colagem surrealista tem o objetivo de provocar o estranhamento do sujeito a partir do instante em que ela favorece o deslocamento das imagens ou de qualquer espécie de texto, retirando-os de seus sentidos originários, através dos recortes, no omento em que esses recortes forem feitos pelos discentes, eles mesmos vão combinar os sentidos da forma que eles quiserem.

Ao fazerem suas próprias combinações, a diversidade e o poder são visualizados, pois no momento em que os discentes fazem suas próprias colagens, perceberão que cada colega manifestou sua opinião de forma diferente. Ao perceberem que os discursos podem ser desmontados, reconhecerão que não existe um discurso “verdadeiro”, notando com isso, as relações de poder existentes na cultura.

Levando-se em conta que a Sociologia, assim como a educação em geral, precisa estimular o senso crítico do discente, é notório que a colagem surrealista, além de revelar na prática a diversidade e o poder contidos na cultura, abre caminhos para a prática da liberdade e da autonomia do discente; podendo fazer da Sociologia uma disciplina emancipatória e não reduzida a meras transmissões conceituais.

Acredito que este tema pode garantir mais uma alternativa para que o aluno enquanto um ator integrado à sociedade possa repensar o seu olhar em relação à diferença, encontrando assim, um novo caminho para exercitar seu convívio com o outro, construindo com isso, um olhar mais altero. Essa alteridade pode ser um caminho para se romper com a intolerância, encontrando estratégias de respeito com o outro.

Além disso, o discente enquanto ator social pode passar a suspeitar de certos discursos ideológicos trazidos pelos meios de comunicação, deixando de vê-los como algo “natural” e “absoluto”. Isso é de significativa importância, visto que a sociedade marcada pelo anseio da cidadania pede a esse indivíduo o exercício da participação política e da consciência de suas reivindicações enquanto sujeito ativo na esfera pública.

Fazendo uma análise mais fecunda acerca desse tema, o ambiente acadêmico pode rever sua posição acerca do papel da Sociologia no ensino médio o qual tem ainda se limitado aos conceitos. Com o uso da colagem, os educadores e pesquisadores poderão observar que ela pode contribuir para uma inovação na dinâmica da disciplina, assim como perceberem que a finalidade da disciplina pode ser realizada.