terça-feira, 21 de setembro de 2010

Um romance natural

Estava eu em frente ao mar, regurgitando minhas penas. Inesperadamente, que coisa, passava perto da água uma mulher com um violão. Seus cabelos me cegavam, seus acordes enchiam a praia. Quando eu era eu, estava eu e o mar; quando reparti esse pedaço de mim, a praia se encheu. Agora era eu, o mar, a dama e muitos que dela se projetavam no momento. O nome dela não seria diferente: era Maria. Ah!... O meu cansaço era a praia, a minha pena seus cachos. Envolvi-me, enfim. Dois lapsos surgiam no ar, o momento não cabia e as palavras cantadas por essa Maria me levavam para o mar, para me afogar.

Neste instante, eu como um todo me sentia apenas uma ostra. Que canto era aquele? Admito: sou fraco, não resisto a mulheres que jogam poesia como um fluido, que das águas do mar não se distingue. Eu queria sentir apenas aquele ir e vir, acrescentar mais uma metáfora para o rei das nostalgias, quando me aparece, por um lapso, a moça que tocava notas com seus cachos, ensaiando seu burburinho.

Fiquei, por fim, a admirar a cena, que com o passar do tempo era só mais uma alusão que o mar me teatralizava. Não me atrevi a chegar até a moça. Afinal, nada seria mais injusto do que isso: seria a supressão do paraíso – não por ausência de desejo; são coisas de um espírito velho. Queria, sim, a possuir até o espírito, mas o que me apaixonava era o mar, a moça, o eu e as pessoas que da boca dela saiam.

De repente, caiam brasas vivas do mar. O fogo tomou a praia, baleias encalhavam na praia e eu a ver o mar. O céu esbravejou, chovia, relampejava – eu a ver o mar. A mulher desintegrou-se em bolinhas pequenas, que voaram no ar turvo de fumaça e cinzas. Eu ainda a ver o mar. Após uma forte pressão atmosférica, virei uma esfera. Posteriormente, cada átomo de mim flutuava no ar, fui-me diluindo. Até virar, enfim, a praia, o mar e a moça.

2 comentários:

  1. Astronauta,

    Para mim, uma das maiores dificuldades que muitos tem em compreender a lógica do torto, é que a sua lógica possui uma natureza plural, fragmentada e imprevisivel. Porém, um dos motivos para tamanha estranheza, refere-se a essa postura como você desenvolveu em seu texto, isto é, uma postura que a primeira vista perece esquizofrenizada mas ao mesmo tempo demonstra ser de uma lucidez absurda, isso por que a esquizofrenia e a dita lucidez transitam e cambaleiam em linhas frágeis entre elas. Se por um lado, você em seu texto vai constituindo, desenhando uma série de elementos, concretizando-os de forma exterior a você, por outro, o que eu senti em seu texto é que toda essa externalidade é fruto de suas próprias representações, e a diversidade que você mapeia "fora" de você, não passa de uma diversidade que é você.

    Muito bom o texto

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  2. Fantástica a sua percepção Vina. Parabéns e muito obrigado pelo belo comentário!

    "...e a diversidade que você mapeia "fora" de você, não passa de uma diversidade que é você."

    É isso aí mesmo e é uma das coisas mais nítidas no final do texto. Abraço.

    Reuel Astronauta.

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