quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Positivismo Jurídico (A sinfonia soberana das convenções) I

É preciso notar-se que o positivismo jurídico não se deve confundir com o positivismo filosófico. Positivismo jurídico é uma expressão que deriva da locução “direito positivo” em oposição a “direito natural”. A diferenciação entre estas noções data do tempo dos gregos. É possível encontrar elaborações acerca do que seria analogicamente o direito positivo em Platão e Aristóteles, muito embora o vocábulo propriamente dito apareça apenas no medievo, com Calcidio.
A distinção aristotélica ainda não se apropria do termo “positivo”, sendo este chamado de direito legal, caracterizado por ser posto através de convenções humanas, enquanto o natural seria ubíquo e alheio a juízos subjetivos.

Havia, no pensamento romano, a diferenciação entre jus gentium e jus civile, que se diferencia do direito natural no sentido de ser particularizado, enquanto este seria onipresente, e, enquanto aquele seria mutável, este permaneceria perpetuamente o mesmo.

O eminente intelectual da Alta Idade Média, Pedro Abelardo, foi o responsável pelo primeiro uso da fórmula jus positivum (strictu sensu). É conservada, de certa forma, a concepção do direito positivo enquanto emanado das convenções humanas, mas o direito natural ganha agora o atributo de ter sido posto por algo que está além dos homens. Santo Tomás de Aquino, em sua Summa theologica, também se preocupará com semelhante distinção, diferenciando a lex humana da lex naturalis.

Séculos mais tarde, Grócio, o pai do Direito Internacional, formula uma distinção entre jus naturale e jus voluntarum, sendo que este emanaria do poder civil, o poder que compete ao Estado, entendendo-se por Estado a associação perpétua de homens livres. Com Glück há a seguinte elucubração: o direito natural tangeria ao que se demonstra a priori, uma vez que a razão deriva da natureza das coisas, enquanto o direito positivo derivaria de um ato volitivo do legislador.
Sumariamente, acerca da distinção entre direito natural e direito positivo tem-se que; o primeiro é universal e o segundo particular, o primeiro perpétuo e o segundo mutável, suas fontes são distintas, em termos de destinatário da lei, o primeiro é conhecido pela razão, enquanto o segundo é a institucionalização de um ato volitivo, o primeiro é neutro em termos de valores morais, enquanto o segundo não.

Já no início do século XX o jurista do Círculo de Viena, Hans Kelsen, empreende o que ficaria conhecido como positivismo jurídico. O jurista austríaco depura a “ciência” do Direito de todo sociologismo e do teor axiológico tais como empreendia Comte. O Direito deixa então de ser “refém” de fatores para além das letras da lei, restando ao jurista uma abordagem puramente lógica do que está posto. Se um fato social sofreu incidência da norma gerando um fato jurídico, e se esta norma é hierarquicamente coerente, tendo como ápice hierárquico a Constituição, que emanaria de uma obscura “norma hipotética fundamental”.

Este tipo de pensamento jurídico, despido de fatores morais, de considerações sociológicas etc, apesar de ser tratado como um paradigma superado por alguns juristas e de ter encontrado ao longo da história correntes que o combatessem, seja deslocando o substrato do Direito da mera vontade de um legislador competente (como pretendia Kelsen) para bases concretas e reais que implicavam valorações, seja deslocando o caráter da ciência do Direito do meramente lógico para o hermenêutico, ainda encontra apreciação entre muitos de nossos “homens da lei”.

Lembro-me de uma aula de Direito Penal em que o professor explicava o princípio da insignificância, que consiste basicamente em se alegar a materialidade desprezível do suposto crime, exemplo, um pai de família morto de fome furtar um pacote de feijão de um grande supermercado. Quando terminou a exposição perguntei ao professor, “se este princípio é doutrinário, vejo que dependerá muito da inclinação ideológica do juiz, estou certo?”. Ele me respondeu que em sua própria carreira já teve uma resposta negativa de um juiz ao alegar este princípío; “recusado por não condizer à letra da lei”.

Rssss.... É muito apreço às convenções, não acham?

Referências:

BOBBIO, Noberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1995.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2009.

3 comentários:

  1. Josua,

    Pois é meu querido, homens investidos do poder de conhecer as proibições humanas com cara de divinas é o que não faltam.

    Foi interessante você ter observado ao longo do texto as variações de denominações a respeito do direito marcado pela especificidade legal, pela subjetividade e pela naturalidade das coisas, pois o que percebo é que misturamos demais isso tudo em nossa prática cotidiana.

    Depois de ter lido o seu texto, o que observei é que entendemos a oficialização do direito com a naturalização deste, quando você mesmo observa que o direito oficializado em regulamentações legais é justamente o direito que se caracteriza pela vulnerabilidade do tempo.

    Foi muito importante essa observação, pois infelizmente encontramos ainda uma militância presa aos modelos estruturas da sociedade, como se simplesmente a derrubada das estruturas fossem nos levar a uma glorificação de todos os nossos males. Mas para muitos deles isso é possivel, simplesmente por que caem no velho erro de achar que o que é dito como "objetivável", não é subjetivo. Esquecendo do subjetivo, é claro que os conflitos parecem ser mais faceis de serem resolvidos, afinal, paralelo a estrutura não existem coisas chamadas medo, frustração, ambição, duvidas, etc.

    Um excelente texto!

    ResponderExcluir
  2. "pois infelizmente encontramos ainda uma militância presa aos modelos estruturas da sociedade, como se simplesmente a derrubada das estruturas fossem nos levar a uma glorificação de todos os nossos males"

    Ótima observação, meu caro. Afinal, há como desvincular as convenções (que são vitalmente necessárias a qualquer forma de sociedade) de um poder? O que legitimará as convenções? Há coisas que deveriam ser levadas em conta como os limites do objetivo e a natureza litigiosa das espécies.

    ResponderExcluir