quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Profano Livro

Vovó Hera tinha a serenidade irritada dos que riam para não chorar.

Desde que seu esposo desencarnou, assumia o esteriótipo tão cantando nas nossas mais diversas artes – a beata caridosa e intransigente. As lágrimas, porém, não deixavam de hidratar suas maçãs com água tão fria à pele e tão quente aos zigomáticos. Era assim quando se lembrava, por exemplo, da manhã em que seu eterno amante, Arthur, um entusiasmado pela mitologia grega, seguiu-a até à igreja, atraído por tão representativo nome.

O que se pode ouvir hoje são os ecos do espírito do Vovô Arthur sendo projetados num netinho que ele sequer conheceu, Salomão. Este lhe herdou com afinco um exacerbado gosto pela leitura e um notável Q.I..

É meia-noite agora, e num descuido atento, Vovó Hera ouve absurdos vindos do quarto do garoto de apenas sete anos:

“- O que está torto não pode se endireitar, e o que falta não se pode calcular...
No decurso de minha vã existência, vi tudo isso: há o justo que morre permanecendo justo e o ímpio que dura apesar de sua malícia. Não sejas justo excessivamente, nem sabio além da medida.
Por isso odiei esta vida, porque a obra que se faz debaixo do sol me era penosa; sim, tudo é vaidade e aflição de espírito.
Os mortos são mais felizes do que os vivos e os que não nasceram são mais felizes do que os mortos.”

Pressionada por tamanhas barbaridades que mais pareciam os livros daqueles incrédulos que seu falecido homem venerava, correu para o quarto do menino a fim de arrancar-lhe defnitivamente a leitura da mão.
Quando chegou ebulitiva ao quarto, tomou o maior e mais cômodo susto de sua existência: seu netinho tinha nas mãos uma bíblia e tirava aquelas barbaridades do Livro de Eclesiastes.
Adormeceu perplexa e serena.

4 comentários:

  1. De onde nunca se espera, aí, é que tem. Parabéns pela reflexão. Roosevelt

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  2. Josua,

    Caraaaaaaalho! Muito foda esse texto! Bicho, o mais legal é que você conseguiu brincar com o gosto do neto pela leitura, observando o quanto a avó tinha seus receios em que esse saber desvirginasse a pureza moral e intelecta do pivete, e no final das contas, você mostra o quanto a sapiência biblica oferece aos humanos um imenso espetáculo (no melhor sentido do termo) de senso critico e de responsabilidade para com as nossas opiniões e os nossos apetites gananciosos. O que pude constatar de forma muito formidável em suas palavras, é que a fé, apesar de institucionalmente prescrever muitas vezes uma repulsa mortal as ideias da carne, traz tranquilamente todos os confrontos e desejos tão condenados pelo que se institui como sagrado. Enfim, o sagrado é razão, assim como não sobrevive nenhuma razão sem a constante ebolição dos nossos tormentos, de nossas emancipações, ou seja, de nosso lado mais sagradamente profano de ser.

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  3. Comentários super pertinentes,senhores. Recortei este texto para mostrar, sobretudo, que o fardo existencial é universal, e para chamar a atenção para o fato de que os sistemas de pensamento humano se visitam muito mais do que nos damos conta.

    Abraços!

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