domingo, 12 de dezembro de 2010

A pós-modernidade e a crítica a noção de objeto da ciência do direito: por uma hermenêutica plural (Por Anderson Couto)

A pós-modernidade é uma temática muito comentada nas diversas áreas do conhecimento humano. Sem absorver as polêmicas em torno da sua existência, ela pode ser resumida numa tendência em abolir ou modificar os contornos do que antes era hegemônico no mundo ocidental. Os teóricos adeptos da tendência pós-moderna assumem uma postura de ruptura em suas análises ao constatar revolucionárias mudanças sócio-culturais na atual conjuntura histórica. Uma tendência inventariada nos diversos ramos do saber tem consistido em reavaliar a noção de objeto dado, em termos de identidade, a determinada rubrica científica. A noção apresentada em diversos discursos processa uma negativa em colacionar um determinado objeto, distinto e separado, sempre o mesmo em diversas conjunturas sociais, para determinado espaço de saber e apresenta a defesa de que todo objeto é construído de acordo com possibilidades subjetivas, lingüísticas e sociais do sujeito de conhecimento, também inserido em limitações de diversos tipos. A mesma problemática poderia ser trazida para a tão decantada e tradicional ciência do direito. O que significa interpretar um enunciado jurídico com objetividade? O direito é um conjunto lingüístico performativo e prescritivo, dotado de força coativa em virtude da força estatal. Desse modo o direito poderia ser traduzido como um “dado” para interpretações de seus operadores. Se assim acontece, como poderia existir um direito em si, objetivo, se tudo deve está resumido a uma atividade de extrair um sentido de uma norma e se a ato de interpretar ganha toda uma influência estranha ao direito? A hermenêutica com suas possibilidades poderia ser um grande caminho para descortinar certos conceitos errôneos que ainda pairam na ciência jurídica.

O que acontece entre a norma abstrata e a decisão ou orientação diante de uma circunstância da vida? Existe uma única orientação ou toda interpretação da lei é fluída e depende da conjuntura e estruturas ou possibilidades semânticas no momento em que o interprete se dispõe a aplicar uma norma ou se orientar pelo mandamento? Existe a norma enquanto conceito abstrato ou o que existe é tão somente normas particulares surgidas em situações as mais diversas? Existe uma grade lógica que impele o interprete em determinado sentido ou há uma fluidez semântica dos termos que se traduz em diversos julgamentos jurídicos e que não permite selecionar um único preceito válido para todos os casos, possibilitando, por conseguinte, a mediação do interprete e suas diversas influências no ato de aplicar e se orientar através de um preceito? O direito é voltado para prática. É destinado a resoluções de problemas. Não pode ser conceituado, portanto, sem se levar em conta seu fim. A norma pretende ser um conceito objetivo e abstrato válido para diversas situações, mas para produzir efeitos in concreto necessita da atividade de um operador que a torne apta para produção de efeitos em uma determinada situação particular. O direito torna-se um caminho do teórico para o prático com a mediação de um interprete. Sem a mediação de um determinado interprete o direito abstrato não tem movimento e aplicação. Então, o que existe não é nem um direito teórico, nem um direito plenamente prático, mas sim um direito interpretado.

O direito existe independente de um interprete. É um objeto já que não deixa de ter existência sem a mediação interpretativa. Esse argumento assim colocado poderia trazer problemáticas a interpretação aqui indicada de que o direito é um fluxo de interpretações. O primeiro passo é mostrar que não existe a norma enquanto objeto de proposições de uma ciência, o que existe é determinado conjunto de prescrições dotadas de um espaço para interpretações e atreladas a historicidade de determinada sociedade, porquanto ligadas a particularidade de determinada conjuntura em eterno fluxo. Não existe objeto jurídico enquanto conceito, o que existe é um conjunto de proposições destinadas ao trabalho inicial do interprete e que dependem de sua mediação para que exista uma aplicação concreta nas multiformes circunstâncias da vida. O direito é relativo e é um vir-a-ser, é um conjunto de proposições verdadeiras e falsas ao mesmo tempo. Parodiando Protágoras, o interprete é a medida de todas as leis. Então o segundo passo é provar que o direito não traz qualquer segurança jurídica. Pois não constitui um algo sempre mesmo diante de um conjunto de sujeitos de interpretação. Se o direito depende do interprete e o interprete de inúmeras influências, como se pode concluir que com o direito o mundo se torna mais seguro.

No máximo poder-se-ia asserir que o direito torna as interpretações sobre condutas humanas mais estáveis, nunca mais seguras. É preciso retirar da expressão segurança jurídica toda uma carga filosófica herdada no sentido de conferir a abolição da historicidade dentro do direito. No conteúdo da expressão segurança jurídica existe uma pretensão de conferir sempre um mesmo modo de interpretar o objeto jurídico diante das circunstâncias particulares apresentadas a um interprete. Diante da expressão o que se pretende é deixar claro que um interprete sempre chegará ao mesmo veredicto diante de um caso particular. É como se diante de um caso, o mediador da lei e realidade normada chegasse a captar o mandamento objetivo da lei, abstrato e impessoal, e não tivesse qualquer influência externa e de cunho subjetivo na avaliação. A pergunta que se deve fazer é se a norma é um objeto dado ou toda norma é construída pelo interprete. Se ela é construída e não alcança um dado objetivo, ela possivelmente sofre influência de três tipos, a saber, subjetiva, estrutural lingüística e social, e esse fator, se provado, traz impactos na noção de segurança jurídica tão decantada na ciência jurídica. O presente trabalho pretende discutir a noção de objeto da ciência jurídica e sua influência na noção de aplicação da lei. Busca demonstrar que todo objeto de ciência é construído e sofre impactos de vários tipos e toda discussão sobre a objetividade da ciência jurídica, como conseqüência, tem impacto na noção de hermenêutica. Não existe um dado objetivo no direito para proposições verdadeiras. Existe no ato de interpretar uma construção do objeto jurídico e toda interpretação de uma norma será diferente de acordo com espaço onde o interprete se encontra inserido.

5 comentários:

  1. Caro Anderson, é de grande valia esta sua contribuição. Afinal, você está mexendo com um dos pontos nevrálgicos das indagações tortas, qual seja, o estatuto de perenidade em relação ao tempo e ao espaço de determinado fenômeno.

    Apenas uma coisa não ficou muito clara para mim neste seu texto. Quando você escreveu este trecho:

    "O direito é um conjunto lingüístico performativo e prescritivo, dotado de força coativa em virtude da força estatal."

    Você está afirmando ou levantando uma possibilidade aberta? Pois, no caso de se tratar de uma afirmação, você não estaria ratificando o ponto de vista do positivismo jurídico?

    Acho que esta definição seria discutível, por exemplo, para a gnosiologia proposta por Cossio, afinal, para a fenomenologia em geral a própria linguagem seria, grosso modo, a concretização de um significado já intuido, não é isto?

    Abraço!

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  2. Não porque o próprio positivismo busca na filosofia uma forma de tornar o fenômeno jurídico um objeto específico da ciência do direito. No caso citado, como digo que todo objeto é construído e passa por contornos semânticos e pragmáticos diferenciados a depender da posição do mediador, deve surgir algo perene não por causa da existência de um objeto sempre mesmo, mas sim por causa da imposição de determinada interpretação. A questão das súmulas pode ser enquadrada nessa questão. Se o objeto é em fluxo e não fornece enquadramentos discursivos com base no critério da verdade, a única via da uniformização é unicamente a força. Creio, por exemplo, que Kelsen utilize Kant somente na divisão do sein e do solen, mas não abrace não afinco as consequências gnosiológicas e epistemológicas do criticismo. Vi um livro na Estante Virtual que estou afim de comprar, trata da comparação entre Wittgeinstein e Kelsen e ele toca em algo central que estou tentando burilar, essa moldura lógica das normas através das quais os autores jurídicos tentam descascar os significados sintáticos da normatização. Perceba que essa questão de captar a forma em detrimento do conteúdo olvida várias influências através das quais o interprete fica manietado na hora de captar o sentido de uma norma, por exemplo, o inconsciente de Freud. Falta ainda ao direito abraçar de vez o construcionismo que fez escola na sociologia e outras ciências humanas. Aqui está a porta e caminho para tordidão do direito. É o que acho. Veja um texto no meu Blog chamado Manifesto do Blog Mundo Fluído.

    Anderson

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  3. Veja, por exemplo, que interessante. Kelsen, considerado o pai fundador da ciência do direito, procurou fazer epistemologia na teoria pura do direito. Procurou dotar um objeto para a ciência jurídica e assim utilizou algumas noções de Kant. Se fosse fiel ao criticismo, base da teoria, o próprio Kelsen estaria impedido de captar um realidade em si, já que no criticismo a perenidade é fruto da criação do sujeito através das estruturas categoriais que ele detém para pensar os fenômenos. O objeto e as qualidades objetivas de um fenômeno são uma duplicação do eu que se reflete nas coisas. Então se assim pensassemos com Kant, não existe o objeto jurídico como procura descrever Kelsen. Mas a epistemologia de Kelsen no começo do livro parece tratar de uma realidade objetiva legitimada para uma espécie de dicurso. Engraçado é que toda ciência é legitimada em torno da noção de fenômeno, mas quando falam em epistemologia trazem a noção de nômeno. Não consigo ainda captar com profundidade o porquê dessas questões. Conseguindo com profundidade isso, conseguiria um passo enorme nas "minhas convicções".

    ANDERSON

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  4. Veja, caro Anderson. Você está certíssimo em sua interessante observação. Mas me refiro ao trecho supracitado. Pois você está afirmando que o Direito é um conjunto linguístico, portanto algo posto, e, pior ainda, que é dotado de força coercitiva em virtude do poder do Estado. Esta é uma concepção altamente positivista, ou estou enganado?

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  5. Nessa frase pequei e possivelmente escorreguei no positivismo. Quando interpretada separadamente resvala na definição de positivismo. Embora acredite que quando o positivismo faz ciência ele procura uma objetividade, quando no mediação entre interprete, situação concreta e lei o que surge é uma construção. É uma problemática que ainda ando engatiando. Depois trago mais questões sobre o assunto. E as cláusulas pétreas?!

    abs

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