“Ele sempre viu coisas; as coisas que precisam ser vistas. Bem, é bom descomplicar para que meus amigos entendam. Ver coisas? Foi isso que eu disse? Pois bem”.
A Aracaju de 2007 possuía o prestígio de melhor IDH do Brasil. A cidade melhor de se viver. Sem muitos bandidos, com menos desemprego, com uma cesta básica mais barata do país, e boas oportunidades de trabalho. Seu clima favorecia o crescimento de grama verde nas praças, e flores lindas por todo o município. No mês do Natal a noite aracajuana não nos deixa sentir falta de nenhum lugar do país. Seu Pimentel dizia com muita convicção: “Quem não crescer em Aracaju, não cresce em lugar algum”. O homem tinha razão. Muitas famílias que viviam das bênçãos do petróleo conseguiram estabilidade financeira. Um novo bairro surgiu, era o bairro da Atalaia Nova. Um novo bairro, em uma velha praia. Foram para a Atalaia várias famílias de classe média “a” e “b”, gente de posses, como médicos, engenheiros, negociantes, empresários, políticos, etc. Construíram seus castelos e os cercaram com cercas elétricas. Em qualquer lugar do Brasil, o rico paga caro por sua condição, e está condenado à cerca elétrica pelo resto de sua vida. Se todos compreendessem o significado da caridade xaveriana, o mundo não teria cercas.
Morava no bairro São José, na continuação da Rua Siriri, a antiga Rua das Prostitutas, um moço de seus trinta anos. Desde criança Felipe era considerado uma pessoa muito estranha por todos os seus. O rapaz cantava todos os dias pela manhã para uma platéia invisível e depois se despedia. O pobre Felipe nos primeiros anos de escola não teve rendimento algum. O tiraram do colégio e o levaram para estudar com a tia. Foram três longos anos para que Felipe retornasse ao mundo; depois disso, a vida do rapaz seguiu seu curso normal. Aracaju continuou crescendo e Felipe também. Graduou-se em Psicologia Clínica e foi trabalhar em um consultório na Praça da Bandeira. Certa feita ele estava sentado em um banco na Praça da Catedral a esperar sua namorada. Ele observava atentamente a beleza do lugar, as formas arquitetônicas que os pioneiros deixaram vivas em suas construções. Felipe distraído com o que via não se deu conta que o tempo passara. Uma voz atrás de seu banco lhe diz: “Trabalhe para mim!”
Márcia, sua namorada, chegou logo em seguida e o encontrou um pouco atônito. Os dois se dirigiram até o carro e saíram como de costume. Quando Felipe retornava para sua residência, já na Rua Siriri, o moço avista uma dama muito bonita em pé na esquina com a Laranjeiras. A moça fumava com muito gosto. Não havia ninguém por perto. O rapaz parou e disse:
- Senhora, algum problema?
- Como é? Respondeu-lhe a dama.
- Eu disse: “Algum problema?”
- Não. Eu trabalho aqui todas as noites.
- Como? Perguntou Felipe sem entendê-la, pois, o comércio estava fechado.
A mulher aproximou-se do carro, e pelo vidro do lado do passageiro ela enfia sua cabeça e diz com tom grave: “Os tenentistas vão controlar tudo. Dizem que vão mandar as mulheres da rua para o Quartel do 18 do Forte”. Sem abrir a porta, a mulher entra no carro e senta-se no banco de passageiro. Felipe, em crise, a conduziu a um casarão na Avenida Beira Mar. Era a casa do finado Barão de Maruim, um político muito importante de Sergipe. Ela desceu do carro, entrou na propriedade velha e mal cuidada, e sumiu. Felipe despertou de sua crise: “O que faço aqui?” Felipe Nogueira acordou cedo no outro dia, tomou café e foi trabalhar. Nada disse; nada pensou. “Foi só uma crise”. Ele estava em sua clínica quando uma enfermeira do Hospital Cirurgia telefona.
- Dr. Felipe, por favor, você poderia vir à minha casa na Atalaia?
- Como senhora? Atalaia? Estou sem entender. Não faço consultas a domicílio.
- Não senhor, não falo sobre isso. Minha mãe está muito perturbada. Não dorme, sente presenças...
Felipe a interrompeu e disse:
- Não sou macumbeiro, nem sou espírita, sou um médico, um homem da Ciência. Por favor, me deixe em paz!
A mulher continuou dando-lhe um golpe fatal.
- Doutor, a casa do Barão, você viu o estado? Quando não cuidamos do nosso patrimônio, as coisas tendem a desabar. O nosso endereço é ...
O psicólogo tremeu as pernas. Estava confuso; seu mundo de segurança acabara de desabar. “Afinal, o que é isso tudo?” Pensou o moço, filho de Aracaju. Ele nunca mais havia tido crises. Como psicólogo sabia que estes distúrbios são geralmente acompanhados de mudanças de comportamento e humor. As dissociações mentais não provocavam nenhuma alteração no seu quadro geral após o término do fenômeno. Ele era, então, uma pessoa normal. Contudo Felipe não pensava assim. “Barão de maruim, Mulher na Rua Siriri, telefonema louco, mundo louco. Será que estou louco?” Pensou o rapaz do São José.
Realmente, o mundo é louco. O que é normal? Quem tem a régua para delimitar o limite entre a loucura e razão sana? Esfaquear alguém e esquartejar o corpo seria um ato somente moral? Arrastar uma criança presa a um carro até desmembrá-la arrancando-lhe a epiderme é somente um ato putável? Atirar nas ruas cheias de gente sendo um policial ou não é racional? Portanto normal? O velho Joaquim sempre nos falou assim: “O mundo cria seus bichos, seus fantasmas, seus loucos; é uma expiação a vida na terra”. Felipe resistiu por dias, finalmente, contou tudo a Márcia.
- Márcia, quando eu era criança eu tinha surtos autistas. As coisas e as pessoas ficavam em outro plano para mim. Eu estava em meu mundo. E o mundo lá fora era como que não existisse. Então meus amigos apareciam. Lembro-me muito bem dos três homens que me visitavam todas as noites e das pessoas que me pediam para cantar pela manhã até elas se acalmarem. Todas elas falavam comigo pelo pensamento. Elas não tinham boca.
- Sempre achei você estranho, mas quem não é estranho no olhar do outro?
Felipe insistiu em sua tese de loucura. “Eu via objetos se movendo dentro de casa, fiquei tão preso a essas fantasias e delírios que quase me tornei incapaz de aprender. Eu não conseguia voltar ao mundo real”.
- Felipe, você conhece a obra de Bachelard?
- Não!
- A realidade é sígnica. As coisas e as pessoas são sentidos. Dormimos acordados o tempo inteiro. Vamos lá, você é que o médico!
- Mas isso não é Freud? Perguntou o rapaz.
- Não apenas ele. A Grécia antiga trabalhou a nossa relação semiológica com o mundo. O mundo dos sentidos, o mundo da linguagem.
- O que isso tem a ver comigo?
- Jung, em sua teoria da sincronização tenta explicar as coincidências. Aqueles fatos que nos ocorrem e não damos a menor importância. Freud os chamava de atos falhos e Jung chamou atos falhos oriundos do inconsciente de complexos, e as coincidências, ele as batizou de atos sincronísticos. Você pensa em alguém e depois a pessoa aparece sem nenhuma relação causal. Isto está registrado na História da Humanidade e, em particular, na História das religiões. Acho que você tem acesso a outros sentidos não muito comum a maioria das pessoas. O que deve ocorrer com você são sentidos oriundos de um outro plano.
- Márcia, fala sério, deixei de ler Jung quando vi que o cara se envolveu com espiritismo e mandalas. O cara pirou. A psicologia verdadeira pauta-se na relação estimulo/resposta, e nas teorias histórico-sociais de construção da subjetividade. As pessoas são construídas de fora para dentro. A mente social é um reflexo do mundo externo.
- Então porque os remédios não fazem efeito? Questionou Márcia.
- Não sei.
- Sabe o que eu penso. Acho que deves ir a casa desta mulher e ver com os seus olhos o que acontece. Eu irei com você, meu bem.
Eles fizeram amor muitas vezes àquela noite. A moça se pôs como refrigério a angustia de seu namorado. O passado dele havia voltado, e desta vez com muita força. No dia seguinte, um dia de sábado, Felipe dirige seu carro um pouco tenso e Márcia está ao seu lado. A Atalaia é um bairro distante do São José. A casa da senhora enfermada parecia casa de novela. Havia um portão enorme todo de madeira talhada como antigamente faziam os barões de Sergipe. Ao entrarem viram a imensidão, e o luxo da propriedade. Havia um jardim muito lindo antes da garagem que ficava na extremidade final do terreno. A entrada da casa tinha batentes, todos cheios de vasos com flores bem cuidadas, os batentes eram do mais puro e caro mármore. Dona Juçara era uma senhora que perdera seu marido muito cedo. Parece que o filho de Deus não gerava filho. Dona Juçara gozava da mais estimada reputação entre os seus. Ela estudava a doutrina de Kardec e fazia reuniões de orações pelos vivos e pelos mortos antes de adoecer. Hoje já faz dois meses que ela sofre. O casal foi recebido por uma moça fumando um cigarro com muito gosto.
- Bom dia, podem entrar. Sintam-se a vontade.
Felipe e Márcia entraram na sala da casa. Sentaram-se e aguardaram a moça voltar com dona Juçara.
Esta é dona Juçara! Disse Leiliane. Leiliane sabia de tudo de dona Juçara. Ela como se fosse uma filha. Felipe e Márcia olham com piedade para dona juçara. A mulher estava em estado mórbido sobre uma cadeira de rodas. Ha três semanas ela teve uma recaída e não voltou mais a andar. Felipe pergunta:
- Em que posso te ajudar. Sou médico, posso levá-la a um especialista.
- Acho que o problema dela é outro, ou os dois; não sei. Ela dizia que sentia presenças, ouvia vozes e sentia-se muito cansada. Então sonhei que eu estava na Rua Siriri e passava por mim um jovem; não conseguia ver seu rosto, mas sabia que iria comigo até em casa. Outro dia sonhei que eu trabalhava no hospital Cirurgia e me pediram para telefonar para a sala de cirurgia. Liguei várias vezes; ninguém respondia, mas eu sentia que havia alguém lá.
Bem, não sei então o que eu posso fazer por vocês. Não trabalho com hipnose. Trabalho com medicamentos e dinâmicas. O estado mórbido da dona Juçara pode ter causas neurológicas. Aconselho fazer uma série de exames.
Moço, tudo que eu quero que é o senhor tire os sapatos e ande pela nossa casa. Felipe tirou os sapatos, tirou as meias, levantou a borda da calça e foi-se pela casa. Todos os quartos, todos os lugares e tocou em seus objetos. Os minutos passavam. O semblante do rapaz tornava-se cada vez mais cansado. Havia muita tristeza transfigurada em pele e músculos, era a silhueta de um passado enterrado, contudo muito vivo.
- Bem, não sinto nada, sinto apenas um cansaço muito grande. Felipe olha para o piso de madeira polida e esmaltada com sinteco e vê marcas de arranhões, como se alguém houvesse tentando cravar as unhas ali. As rosas do jardim em frente à garagem eram muito viçosas. O perfume dessas rosas encheu a sala onde eles estavam e Márcia disse para Felipe.
- Meu amor, vamos ao Jardim! Vamos Leiliane! Dona juçara chorou. Não sei o que houve naquele momento, mas nunca entendi qual a origem daquelas gotas. Pode ter sido algum reflexo fisiológico. Pode ter sido um cisco. Márcia depois me falou que...
- Bem, eu não sou Felipe. Continuemos a estória. Felipe foi até o jardim e com ele sua namorada e Leiliane, a menina que sabia de tudo sobre dona juçara. Felipe caminha com muitas lágrimas em seus olhos voltados para as rosas, parecia aquele menino de outrora na Rua Siriri, aquele menino que cantava para os mortos. “Talvez uma canção possa acalmá-la, irmã! Não foi assim que Davi acalmava o opressor de Saul?” Felipe chorava e depois parou. Ele ouvia um choro fino de menina. Saia de dentro da terra preta no pé das rosas de dona Juçara. O choro aumentava de intensidade, o volume não fazia diferença. Subitamente do meio do nada o rapaz ouve nitidamente uma voz de criança: “Diga a ela que eu a perdou!” Felipe foi para a sala e encontra dona Juçara chorando alto. Felipe a pergunta:
- Você abortou sua filha?
- Sim, mas faz muito tempo. Já está enterrado. E eu a enterrei entre as rosas. Ela era para mim como as rosas. Meu marido não podia saber dessa gravidez, ele era infértil. Ele viajava muito, me deixava só. Até que um dia conheci um jovem, muito bonito o rapaz. Apaixonamos-nos e vivemos aqui dentro dessas paredes um romance muito lindo. Depois ele foi embora, a ditadura o levou para o 18 do Forte.
- Tua filha diz que te perdoa. Dona Joana derrame-se em lágrimas. Levanta-se da cadeira e vai até o jardim. Agora, ela, de verdade, recomeçaria sua vida. Um novo sentido havia surgido dentre rosas e espinhos plantados na terra preta de Sergipe Del Rei. As duas, Leiliane e Juçara viveram até onde puderam. Não deveria ser assim com todos? Márcia e Felipe foram para o Centro Espírita Irmão Fêgo no Siqueira Campos; casaram-se, tiveram filhos, e sempre moraram no São José, perto do hospital Cirurgia, na Rua Siriri.
E eu? Quanto mim?
A estória não é sua.
O autor possui uma vaidade incrível. Ninguém escreve para si. Escrever é um ato para outro. Não havendo isso, não existe razão...
ResponderExcluirgosto das peças de quebra-cabeças que encontro aí. muito familiar.
ResponderExcluirA voz é o instrumento que mais acalma uma alma.
Você tem o dom de contar histórias, meu caro. Obrigado!
ResponderExcluirRoosevelt,
ResponderExcluirSempre acho que por mais que a dita ciência consiga escavar respostar afundo, ela atinge apenas uma superficie superficial da realidade. De fato, há situações nas quais nenhum metodo cientifico conseguiu explicar. Como você bem expos, as certezas não podem ser reduzidas a delimitações, uma vez que medir a realidade, implica em infindáveis possibilidades e variáveis e existem coisas que não conseguimos explicar com o objetivismo frio calculista da dita ciencia tradicional como a do médico.
Sim meu caro Vina. O amigo que é psicanalista deve ter entendido o momento em que Juçara se depara com o seu conflito e se livra da paralisia histérica. Foi um pouco o estilo da velha e antiga psicanálise. O resto fica segundo a imaginaçao do leitor. Abraços.
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