terça-feira, 30 de novembro de 2010

Para além do nosso quintal moderno

Parece-me, que após todos esses anos de convívio com meu quintal não bastaram, e aqui dentro, mais uma vez, me surpreendo com ele. Não me surpreendi por ele em si, são as coisas que o compõem, como a arrumação de um tabuleiro ou os componentes de uma paisagem em gravura: luz, cor, sombra e etc. Há alguns anos atrás esses componentes eram pálidos, parecia que os carros que passavam no meu quintal eram a única tônica vibrante nessa amalgama, e as coisas vivas por assim dizer, subproduto de um emaranhado. Vagarosamente, como um trabalho de um artista, as coisas foram clareando, algumas cores surgiram no fim da paisagem, por cima das construções, nos cabelos das mulheres, tons escuros por dias e outros mais leves e vibrantes em alguns momentos. Eu aqui me pergunto, por que então sempre me perguntei sobre as cores do meu quintal? Elas simplesmente surgiram e em alguns momentos verdadeiramente vi porque as queria ver.

Eu tinha a idade do vento, quando sem querer compreendi um pouco das coisas vivas que circulavam em meu quintal, eram alegres, eram, sobretudo, a quebra de um tédio, diferente da equação de simples pigmentos enquadrados. Sentia meu corpo provocando sensações, sentia que algo me projetava, como se as outras coisas vivas fosse a real interação com a paisagem que eu sentia e nomeava vagamente. Elas ah! Essas coisas vivas eram um misto sabe? Aquilo que se toca, aquilo que é você e que sem te explicar o próprio quintal lhe rouba, as cristalizando em imagens fugazes.

Lembro-me que sentava em uma pedra em meu quintal, e não colhia apenas um verde verso atemporal, mas parecia-me que o espaço dentro dele era muito maior que meu idealizado quintal moderno. Da pedra podia ver tudo, tantos as coisas vivas quanto os prédios e carros que se instalavam cada dia mais, e passavam como o Sergipe, rio que criava aberturas em minha alma direcionando seu fluxo para ela. Todo quintal não era apenas um corte temporal, mas simplesmente uma criança que brinca. Apesar de que, com o próprio tempo, talvez como fruto natural do mesmo, quando voltava ao mesmo lugar, para pedra do quintal, sentia-me míope e as coisas ora se mostravam ora via apenas a mim. Solidão? Não, talvez fosse o velho enquadramento dos pigmentos, produto das suas equações.

Surpreendi-me mesmo, foi quando, com o cair da noite apareceram em uma das inúmeras noites que já vivenciei aqui, no presente lugar que vos falo árvores pequenas, coisas vivas, pirilampos que sussurravam para mim - sempre há coisas vivas dentro de nós, pega novamente teu pincel meu jovem autor, cria-nos, nos dá sentido, esqueceste de teu projeto? Lembra da luz e sombra? Nós aqui obviamente não somos meras telas, exalamos cheiro, mas por estarmos aqui, queríamos de te como também te oferecemos, alguma fantasia para nos criar.

“Invento meu quintal moderno cantando a água sobre o teto e colho o verde verso atemporal” (Patrícia Polayne)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Um ano de ideias tortas

Eu havia pensado em publicar a continuação da trama da Velha, porém, eu resolvi deixar para a próxima semana, visto que nesta terça-feira dia 30, o Torto estará completando um ano de existência. Devido a isso, eu resolvi trazer um texto que abordasse, o que para mim, são idéias bases do Movimento Torto. Gostaria que os leitores lessem também o texto “Rapaz, sei não” de Roosevelt Leite, publicado quinta-feira passada o qual também trouxe uma análise sobre o Torto.

Pelo menos para mim, a idéia de criar o Movimento Torto se deu para repensar toda uma idéia do que nós temos aprendido acerca do que se entende como Movimento. O Movimento Torto, antes de ser um Movimento que venha ser pensado no sentido da militância, da alteração da conjuntura econômica, é um espaço sem fronteiras que busca se encontrar em mudanças constantes de novas idéias. Em outras palavras, é um Movimento pois implica movimento.

Por isso que antes de pensar o Movimento como algo que defende uma única idéia, que levanta uma bandeira, eu penso em um Movimento que preza e valoriza o ato do se contradizer, afinal, a busca pela não-contradição já implica a ausência de fluidez, e não é isso que o Movimento Torto, pelo menos para mim, tem buscado. Volto a repetir: o torto se entorta por que ele mesmo admite que é o próprio reflexo de suas mudanças, ou seja, ele não é reto e estático.

Essa idéia de se pensar a idéia de Movimento me levou a uma outra questão que se refere à liderança. Outra crítica que eu faço à idéia de Movimento se deve justamente a necessidade da centralização, ou seja, de uma hierarquia impositiva. Geralmente o que encontramos por ai, é que se um indivíduo pertence a um Movimento X, ele tem que se ver obrigado a aceitar as idéias decididas pelos superiores dos Movimentos, e se não aceitar, imediatamente é excluído.

A idéia do Torto é mostrar que as diferenças podem conviver entre elas, mas que as diferenças podem e devem exigir que suas opiniões sejam livres, e que não cabe ao Movimento Torto tentar impor um padrão de pensamento para ninguém. A idéia é que no Torto, os indivíduos têm o direito de pensar de maneira própria, como também devem estar preparados para admitir a crítica do outro, como também têm o direito de repudiar determinadas críticas que recebem.

No Movimento, cada autor apóia e critica o autor que quiser. Aqui não existem grupinhos fechados. Josué, por exemplo, pode se identificar com um texto de Maira postado no Torto hoje, mas próxima semana ele pode preferir compactuar com o texto de Miguel. Outro dia Miguel pode voltar a ser reprovado por Josué pelo mesmo texto que o próprio Josué aprovou, afinal, as identificações variam de acordo com cada circunstância, e isso faz parte da imprevisibilidade humana, faz parte do entortar.

Eu penso o Torto como partes que se associam a outras partes que se refazem e se desfazem associando-se a outras partes, jamais sendo um todo fechado. Por isso que no Torto não se cobra a união permanente entre seus autores, nem totalidades rigidas, afinal, como disse Alberto Caeiro em O Guardador de Rebanhos, “não há um todo a que isso pertença/ Que um conjunto real e verdadeiro/ É uma doença das nossas idéias/ A Natureza é partes sem um todo”. É por esse caminho que eu acredito que o Torto tem transitado.

Gostaria de agradecer a todos que têm contribuído com a construção do Torto, sejam os autores que entraram no inicio do Movimento e que ainda se mantêm como Josué Maia, Roosevelt Leite e Reuel Machado, sejam aqueles que entraram de forma mais recente como Alysson, Maira e Miguel, como aqueles que não são mais autores do torto como João Paulo, Lou e Éder. Agradeço também as pessoas que contribuíram com textos de participações, assim como aos nossos leitores.

Como disse Roosevelt Leite, muitos chegaram a desacreditar no Torto, mas apesar de tudo, o Torto já vai fazer seu primeiro ano de vida. Mesmo com suas confusões e brigas muitas vezes válidas e muitas vezes bobas, o Torto vai vivendo, até por que, se tem uma coisa que o Torto, diferente dos outros Movimentos, não cobrou de seus autores, é que eles fossem Super-Heróis imunes aos erros. Ao contrário. O torto é justamente torto por saber que inevitavelmente é humano.

O valor da troca

- Bom dia, bato na sua porta porque sei que o senhô tem muitas terras. Talvez precise de alguém para trabalhar.
- Sim, tenho muitas terras.
- Vejo também que quase não tem funcionários. O que faço para conseguir um trabalho com o senhô?
- Por enquanto nada. Tenho 3 empregados que dão conta de 30.000 hectares. E isso já me é o suficiente.
- Como sabe que eles têm condições para dar conta desse mundão de terras?
- Dou tudo o que eles precisam para viver bem e terem ânimo a cada dia de trabalho.
- Desculpe, senhô. O que faz para eles terem uma qualidade de vida tão boa?
- Dou pão, farinha e água. E mais um quartinho nos fundos da minha casa.

sábado, 27 de novembro de 2010

Sou torto, não morto

Gostaria, de forma breve, pelo momento que estou passando de raro acesso à rede, reclamar a remoção das minhas idéias, enquanto torto, do status de “militante do fim da história”.

A postura cansada em relação ao credo nas formas de organização humana pelo jeito tem creditado ao torto a qualidade de conservador.

Ou talvez as mentes reducionistas e pretensas confundam a admissão da necessidade de ordem por parte de alguns tortos com a afirmação de alguma doutrina ou de algum sistema – de preferência o atual, afinal “ruim com ele, pior sem ele”.

Esta é a prisão em que residem os verdadeiros advogados do conservadorismo: a necessidade taxonômica – haja ordem! Hahahahahaha!
Os tortos, via de regra, são cansados com tudo que envolve a ação humana em geral. A falta de crédito não implica pretensão de estancamento de um sistema/ doutrina. O cansaço deveria ser encarado muito mais como uma justificativa de uma pretensão apartidária – mesmo que se morra na mera pretensão.

Gostaria de vos ratificar uma frase de meu primeiro texto por aqui: o futuro para o torto é um não-verso poético.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

SOBRE A MÚSICA (PARTE 2) – música, rituais e ambientes sociais

Expressar o sentimento de uma coletividade exige um exercício de criatividade tanto quanto de sensibilidade. A razão e os sentimentos precisam entrar em um estado de alinhamento para que os indivíduos possam encontrar a identificação e a empatia. A música não é apenas um elemento estético que compõe o campo das artes, ela também é um elemento que aproxima e separa grupos. Para isso, as músicas identificam pessoas e até serve como referência para julgamentos esteriotipados e preconceituosos, para isso existe as definições de rockeiros, pagodeiros, reggaeiros, entre outros. Junto a esses rótulos estão uma série de características e caracterizações expressadas por seus integrantes ou mesmo construídas por outros grupos. No entanto, os espaços sociais não se limitam apenas aqueles praticados por esses grupos. Os diversos rituais, festividades e ambientes formais nos acompanham a todo momento temperados música.
Rituais como o casamento são acompanhados por músicas que dizem muito a respeito dos noivos. São canções que expressam declarações de amor, promessas de amor eterno, nesse repertório entram também músicas da religião dos noivos, algumas dessas de cantores(as) ou bandas gospel da moda, ou de figuras já tarimbadas como Pe. Zezinho com o seu hit “Oração da Família”. A relação canção e rituais também se estendem a formaturas, aniversários, festa de debutantes, primeira comunhão, iniciados, entre outros.
Nas festividades, as canções são bem generalizadas. Já que a essa categoria podem ser consideradas os eventos de bairro ou de aqueles promovidos pelo poder público ou iniciativa privadas que reúnem milhares de pessoas. Podemos citar o exemplo dos bailes funk, onde reúnem jovens das periferias e da classe média carioca que são embalados por um ritmo envolvente e cheio de sensualidade. O carnaval seria outra expressão de festividades, onde o excesso programado para quatro dias expressa o culto a diversão e a vida, portanto, nada de música para pensar, só para pular e dançar.
Os ambientes formais dos quais me refiro são aqueles institucionais, como consultórios médicos, dentistas, que reproduzem músicas instrumentais, numa linha new wave, músicas orientais ou de sons da natureza.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Rapaz, si não...

Rapaz, sei não...

O torto tem características próprias. Ele é o que está se tornando. O fluxo de idéias do tornto o empurra em muitas direções, e isso tem ocorrido de tal forma que fica muito difícil dizer-se o que é o torto. Alguns já me perguntaram se era um movimento de loucos. Outros, em Tobias, pensavam que era um grupo de apologia a maconha. Um professor de informática da UFS disse: “Não sou do torto, graças a Deus, sou reto”. Somente depois que eu lhe falei sobre quem eram as pessoas que fazem este movimento foi que ele percebeu que tinha dado uma boa cagada, mas, afinal, para que serve o reto?

A idéia de movimento como oposição ao que é estático muitas vezes orbita a cabeça do povo. A idéia de militância, tomar partido, foi por um bom tempo um sinônimo de movimento em muitas cabeças por aí. Teve, até, um cidadão no Orkut, que se irritou comigo quando eu deixei bem claro que estou do meu lado, pelo menos, o que eu vejo o que é meu lado, milito por mim. E você milite por você.

O torto caminhou e chegou aos quarentas. Muita gente achava que nem chegaríamos aos vinte. Jogaram praga no torto, fizeram macumba contra o torto e disseram que esse tal torto é um filho da mamãe. Todo mundo tem uma mãe, logo todos são filhos da mãe, isso não cola para o torto. Lembro-me que nos mandaram fazer resenhas de livros. Que não tínhamos conteúdo, ou seja, o torto é um refugo do reto, ou melhor, do anus, abrindo o jogo, uma merda.

O torto é uma merda sergipana que tem boiado pelo mundo, pelo Brasil e por Sergipe; o sergipano o reconheça ou não, o torto está aqui, é da aqui, e é coisa de Sergipe. Sabe o que penso? Nós tortos somos um pouco vaidosos. Merecemos um pouco de aplausos, não há nada de errado nisso. Fazer cultura em terras tupiniquins é dose, e o torto conseguiu e terá o seu reconhecimento em breve, esperem, e todos vocês verão. Quero minha foto bem tirada. E quero tomar cerveja com todos.

Afinal, que diabos, é esse torto? Rapaz, sei não...

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Pulsão de morte

O que é um pensamento?

Não trago dados do IBGE,

Não uso o materialismo histórico

Não sou evolucionista,

Talvez um niilista.


Poderia falar da China e a destruição do meio ambiente

Das Coréias no Ringue,

Os EUA dizem querer paz. Paz?

Olhe o brasileiro!

A pimenta Gota nos olhos da gente

O desemprego aqui, o caos no Rio Janeiro

Os traficantes enfrentam a polícia,

Na África está a fome e a peste,

No México alguma milícia,

Hu Jintal, Obama e o Papa são “os maiorais”

A barbárie bate na porta do mundo

O “Chapolim colorado” não nos defende mais.


Pois, “os olhos e ouvidos” fazem parte da boca

O cérebro é o intestino grosso

E os lindos lábios, um ânus.


O pensamento é uma digestão do mundo,

Juntos com esse mesmo mundo,

Saímos por esses mesmos lábios com batom e mel.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

A pós-modernidade é uma qualhada

Olá! Bom dia!
Cadê você que não vejo?
Que não escuto
Oi!?
Na mesa do bar
Empanturrado de cerveja.

Talvez um mês
Quem sabe?
Sinto saudade de você
Quem?
Um retalho...

Como acorda quem não sei?
Que digo: oi!?
No ponto de ônibus
Vendo o mendigo apressado de dente podre
Correndo e fumando cigarro enrolado com papelão
Para onde também irei.

Sábado vai ser foda
Você que não sei sentirei
Risos com nossa grande rede
Codificado mundo.

É, é pela noite
Que saúdo você que não sou
Que não sei como acorda
E não me deixe só agora
Eu que pra ti me animo
Na tela.

A cibernética é uma qualhada
Triturada no liquidificador
Com porções de Visa - Master - caranguejo e cerveja na praia
Eu me sacio com um picolé de qualhada
Please no Chico Ciência
Sua risoflora foi tomada pela qualhada antropofagÍca.



"Eu não quero mais saber de amor, qualhada é o que me interessa" (Please No)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A Velha (Parte 1)

Segurando uma saia verde, a velha vai andando. Bêbada e molhada pelas lágrimas e pelo vômito, a velha vai se esfregando nas quinas das ruas como uma bucha. Apertando fumo com sua unha amarela, a velha vai liberando seu perfume pela rua. Com seus olhos de doidices, a velha vai falando. Marcando as costas dos moleques com seu coro forte dos dedos, a velha vai vivendo. Quebrando garrafas em carros de bacanas, a velha vai sorrindo. Juntando pacote, pão e sono, a velha vai fazendo seu travesseiro.

Enquanto fala, a velha arrota e escarra palavras ao mesmo tempo em que joga sua apercata velha em qualquer lugar mandando o mundo tomar no cu. A velha se senta na calçada do calçadão da João Pessoa, e em pleno centro da cidade, abarca o mundo com suas palavras descentralizadas e sai gritando:- gente safada é pica mal colocada! Gente se cala, pois gente é muda; gente transita, pois gente muda; gente morre e nasce porque é muda! Gente quebra tronco e quer tronquear o mundo!

Com seu andar vagaroso, a velha sai andando de encontro ao vento e deixando pelas ruas um lastro gonorrento e fedido de mijo. A velha exaustivamente pede que Deus abençoe qualquer alguém que lhe garantir algum resto miserável de centavo em suas mãos pretas da poeira da rua e gosmenta de tanto esfregar o priquito murcho, fudido e ultrapassado pelo tempo.

A velha range as gengivas papocadas de feridas e ausentes de dentes e se move em sensações desconfortáveis ao lembrar do tempo que vendia geladinhos na Rua México no Bairro América. De um instante para o outro, a velha joga água amarelada do corrego da rua para quem passa ao seu lado. Chora ao se lembrar do filho morto pela policia na Avenida Rio Branco, chora ao lembrar do caçula sumido e seco pelo vapor envenenado do crack.

Olhando com seus olhos perdidos a movimentação barulhenta e silenciosa das mentes preocupadas com o destino, a velha se deita e se lembra de tudo que nunca teve e de tudo que a vida a fez perder. Novamente passa a mão na xereca, coça, pega um pedaço de pão e leva à boca. Vira-se para a direita, levanta a saia, coça o buraco escuro, depois olha suas unhas amarelas de bosta, tenta esquecer do tempo e dorme.

E o pior é que a velha sabe que como todos os outros dias, vai levantar sua saia verde, fumar seu bagaço, e poucos, pra variar, irão perceber que sua cachoeira de pelancas morre pela idade, pela dor e pela fome.

corpos memoráveis da história

o dedo de deus impôs as linhas dos tempos incontroláveis no espaço de saturno

cravados nas unhas levianas de um ditador soberano que temeu o seu império

excruciante em todas as horas da época

sábado, 20 de novembro de 2010

SOBRE A MÚSICA PARTE 1

A musica está diluída em nossas vidas e é apropriada para diversos propósitos. O fato é que a música pode servir para dizer muito sobre características da personalidade dos indivíduos, para contemplação, terapias, protestos e críticas sociais, ou para simplesmente divertir. A velha polemica entre as discussões sobre a estética e o conteúdo das músicas, retoma questionamentos sobre o papel da música em nossas vidas. Será que ela tem algum papel? Esse papel é construído arbitrariamente pelos valores e reproduzido para toda a sociedade? A perspectiva a ser analisada não é a da música como elemento estético, mas sim como produto social e de diferenciação de camadas sociais.
Música é um produto social e, por esse motivo, ganha sentido na sua utilização nos diversos meios sócio-culturais. Já foi bastante discutido, inclusive aqui no torto, sobre a relação de proximidade com as camadas de baixa renda e clara antipatia estética e política da classe média com esse tipo de música. Nesse sentido, a música além de um sentido sociocultural ganha uma versão política. Exemplos assim podem ser verificados nos hinos nacionais, uma forma de apresentar a soberania e independência de um país. Esse exemplo, responde a constante busca por símbolos que afirmem a unidade do Estado-nação.
Esse símbolo é reproduzido em eventos representativos para a nação e comemorados em feriados nacionais e reproduzidos para as crianças e jovens nas escolas. A execução orquestrada, em algumas nações, segue uma condução militarista com letras que ressaltam eventos históricos que remetem a independência ou a heróis nacionais.
Esse instrumento também funciona para o caso de grupos que utilizam a música como protesto político ou de denuncia de problemas sociais. Movimentos como Punk na Inglaterra e a música engajada fomentada pelo CPC no Brasil durante a década de sessenta e setenta são algumas amostras de como política e música podem estar ligadas. Portanto, a música é utilizada de diversas formas. O fato é que ela expressa o sentimento e os interesses individuais ou de uma coletividade.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A casa branca no final da Rua Pernambuco

Andamos nas cidades tão ocupados que não percebemos que estamos cercados de estórias. Muitas delas tão próximas a nós que se soubéssemos disso pararíamos um pouco e prestaríamos atenção a alguma coisa ou a alguém que está passando na nossa estrada. Foi isso que aconteceu com Gracinez. Gracinez era uma gracinha de menina. Uma moça muito esperta e inteligente; criou-se na roça e depois, por volta de 1985, foi morar em Aracaju. Naquela época Aracaju dava sinais de crescimento e ninguém tinha tempo de parar e prestar atenção a alguma coisa fora da rotina. Todos estavam em harmonia com o ritmo do progresso. Contudo as cidades têm bueiros e esgotos, ruas velhas e novas, sangue aqui e ali. Aracaju seguia o rumo de todas as filhas do Brasil.
A jovem de Monte Alegre estava um dia à tarde caminhando perto dos trilhos da Leste. A Leste é a ferrovia Sul Atlântico, uma ferrovia que sai de Aracaju e cruza boa parte do estado. A moça estava tão desatenta que pisou em falso e machucou o tornozelo. A dor foi tão grande que a menina mal conseguia andar. Um senhor de idade um tanto avançada percebe o ocorrido e aproxima-se da moça.
- O que houve menina? Machucou-se?
- Sim. Pisei em falso e parece que torci o tornozelo.
- É bom pôr gelo. Passa logo. Chegue à frente. Aqui é minha casa! “Maria!” Gritou o senhor em busca de ajuda. Dona Maria veio logo e com Deus na boca disse:
- Valha-me meu Deus! O que houve Tião?
- Foi a menina que machucou o pé.
- Vixe minha fia, tá com a cara cheia de dor. Chega pra cá! Seu Tião trouxe um banco de madeira e dona Maria pôs gelo no machucado de Gracinez. Eles moravam no final da Rua Pernambuco já avistando os trilhos da Leste. Dizem que as aranhas caranguejeiras invadiram as casas daquela quadra. Foi um sofrimento para o povo do lugar. Mas, fazer o que? Seu Tião dizia que as coitadas não tinham mais onde ficarem.
- Tá mió, minha filha?
- Tô. Dói um pouco, mas, acho que dá para andar.
- Dá mesmo? Num quer ficar mais um pouco? Olha lá hein! Seu Tião pegou outro banquinho e sentou-se ao lado de Gracinez e iniciou uma prosa com a menina.
- Sabe moça, aqui já foi bom de morar. Não tinha bandido; nem droga, nem gente sem futuro. Todo mundo vivia como Deus quer; bem contente com o que podia ter. Tinham muitas mangueiras, havia muitos sítios; as casas eram mais distantes umas das outras, mas, nem por isso o povo não se falava. O Aribé era um lugar bom de morada e para aqui vieram muitos de todos os cantos de Sergipe. Lembro-me de uma moça cujo nome é o seu. Dona Gracinez. Ela veio de Monte Alegre com suas filhas e por aqui ficou até Deus a levar. O povo todo da rua contava que Gracinez teve um grande amor antes de casar-se com seu Feliciano. Este tal Feliciano era um homem bom, embora, muito rigoroso na educação das filhas. Ele conheceu uns homens do bando de Lampião quando morava em Monte Alegre na época em que o cangaceiro levou dona Gracinez para ser mulher de um soldado de Curísco. Naquela época as mulheres tinham muito medo que Lampião roubasse suas filhas. Dona Gracinez foi uma das vítimas do cangaço. A jovem menina se interessou pela estória do velho e esqueceu-se da dor de seu pé.
- Conte seu Tião como foi a estória de Gracinez no cangaço! Disse a menina Gracinez com curiosidade.
- Minha filha essa estória me arrepia todo. Eu tive que tomar banho de arruda para parar de sonhar com o bode preto.
- Bode preto, que bode preto? Perguntou a moça Gracinez.
Gracinez era filha de um pequeno agricultor e vivia uma vida de rainha no seio de sua amada família. Todos os dias ela ia com seu pai pegar leite no curral da roça deles. Eles saíam antes do sol subir. Gracinez estava noiva de um soldado da polícia que havia sido promovido a sargento por méritos. O homem era dedicado ao que fazia. Quando o rei do cangaço cercou Monte Alegre, o Sargento Cupertino se prontificou a chefiar a tropa de resistência e captura do delinqüente. Tentou muitas vezes, mas o danado escapuliu de todas. Lampião gostava de forró e por isso as pessoas davam festa para ele e seus homens. O problema é que moça direita não andava nesses lugares. Um dia saindo do curral de sua fazenda Gracinez e seu pai se depararam com os homens do bando de Curísco. Um deles olhou para a pequena e se apaixonou por ela. O bando seguiu destino assim como Gracinez e seu pai.
- Como era o amor dela com o Sargento seu Tião? Perguntou Gracinez.
- Cupertino era um rapaz correto e queria casar-se com ela. Todas as noites quando não estava de serviço jantava com a família dela. Era uma pessoa de casa. Os dois se amavam de verdade. Gracinez dizia: “Sem Cupertino, num vivo mais”. Eles se entendiam muito bem e as diferenças eram resolvidas na conversa como deve sempre ser, num é minha filha? Pois bem, Monte Alegre fazia tempo que tinha visto um amor daquele. Contudo o rapaz de Curísco ficou com a imagem do rosto de Gracinez em sua cabeça. Ele teve um surto de amor inesperado e sua face caiu desde então. Curísco dizia para ele: “Tá choco macho? Levanta a cabeça!” o rapaz respondia: “Choco não, mas a moça do curral me quebrou o gosto de viver, sem ela não dá. Vamos atrás dela seu Curísco!” O caso durou semanas, até que em uma tarde de sol muito quente encontraram o rapaz caído na beira do tanque. Ele estava com febre e delirava: “Gracinez minha linda onde está você?” Curísco teve muita pena do rapaz. Seu nome era Raimundo.
- Mande três homens buscar essa rapariga da peste! Ordenou o grande Curísco do sertão.
Os homens de Curísco varreram a cidade e acharam a dona Gracinez fazendo o que sempre fazia quase todas as noites. Ela e seu sargento conversavam à porta de sua casa. Os dois estavam combinando como seria a lua de mel. Falavam da serra de Itabaiana e da roça de seu Jucelino no pé da serra. “Ali nascem flores que encantam a todos que passam”.
- Moço, num dê uma de macho! Passe a arma! Disse um homem caboclo com um fuzil apontado para Cupertino. Dois outros homens pegaram Gracinez, vendaram-lhe os olhos e a levaram a cavalo sumindo na escuridão da estrada. O caboclo de fuzil na mão mandou Cupertino virar as costas. Nesse momento o rapaz pensou: “Vão me matar”. Mal parou seu pensamento e a coronhada o jogou no chão inconsciente.
-Cupertino! Cupertino!
Cupertino levantou-se, pôs a mão na cabeça, e viu sangue em suas mãos. Os pais de Gracinez choraram o seqüestro de sua filha por muito tempo. Cupertino não se consolava e alimentava o sonho de reavê-la. Tentou por vezes entrar no arraial dos cangaceiros, mas, nunca conseguiu chegar perto de seu amor. Uma manhã de fevereiro, às dez do dia, ele e três elementos fortemente armados tentaram entrar no arraial pelo acampamento das putas que ficava um pouco mais afastado de Curísco. Foram percebidos logo na primeira barraca e levaram tiros até perto do pasto de Miguel do Amarante uma légua distante do lugar. Cupertino definhava desde então e abandonou a farda. Sua triste vida passou a ser vivida no pé da mesa de sinuca e perto de uma garrafa de pinga. Pobre Manoel Cupertino.
- Seu Tião, e Gracinez? Como ela viveu no arraial? Perguntou a moça bonita do tornozelo doído.
- Bem, minha filha, Gracinez virou mulher de Raimundo. Ou deitava com ele ou morria, mas, o jovem cangaceiro não a tratava mal, seu amor era tão forte que ele sentia seu débito para com a moça e procurava agradá-la. No entanto, por mais que tentasse nada obtinha de sucesso. Raimundo e Gracinez caminharam pelas caatingas do sertão até voltarem a Monte Alegre em um verão quente de Sergipe. A terra gemia como mulher agoniada na hora de parir. A caatinga se veste de cinza com pontos verdes aqui e ali graças à força do juazeiro.
- Cupertino! Cupertino! Chamou dona Josefa, mãe de Gracinez. O rapaz estava deitado no banco da praça da matriz. Os pardais se assustaram quando Cupertino se levanta para atender sua sogra.
- Como? Perguntou ainda grogue o valente soldado.
- Lampião esta de volta, homem, vamos ver se a gente livra Gracinez! Seja macho rapaz, junte uns homens e volte lá!
Han? Cupertino retornou ao banco vencido pelo efeito etílico de sua noite anterior. Era meio dia quando o sol passou as folhas do cajueiro e incidiu seus raios no rosto de Cupertino. O calor era intenso. Quem olhasse para o chão via sombras trêmulas desfilarem ante seus olhos. Cupertino levanta-se, espreguiça-se, abre a boca, coça a barriga e caminha em direção a casa de seu sogro.
- Meu filho! Graças a Deus que você veio. Lampião está em Poço Redondo e amanhã ou depois estará aqui. Disse dona Josefa com muita fé.
- Não tenho mais farda. Vocês não lembram? Como é que vou arranjar gente para ir comigo? Disse Cupertino sem nenhuma fé. Seu Honorato, pai de Gracinez vai até seu quarto, apanha um saco de algodão, e retorna a sala.
- Está aqui tudo que juntei em toda minha vida. Pôs o homem o saco sobre a mesa com muita tristeza. Agora Cupertino sabia que podia reaver sua amada e estava disposto a tudo por esse amor.
- Não se preocupe seu Honorato, amanhã mesmo estarei com os homens aqui. Cupertino saiu da casa de seu sogro mais animado. Passou pela matriz, fez o sinal da cruz, e rumou na direção de Glória para ver se conseguia alguns homens corajosos. Na estrada de Glória, na baixada de um riacho, Cupertino desmonta de seu cavalo para aliviar o ventre. Após o serviço, percebe o moço que não estava só naquela baixada.
- Quem está aí? Sou o sargento Cupertino! Identifique-se! Nenhuma voz veio do mato.
- Será o diabo? Fale logo rapaz antes que eu atire! Berrou o sargento com muita arrogância. Saiu do mato, do lado de uma pedra enorme, um rapaz branco da cabeça grande. Seus olhos eram bem claros, nem azuis, nem castanhos, eram, na verdade, uma mistura de tudo isso. Seu cabelo era castanho escuro. As feições finas, mas a boca estava cheia de dente pobre, e o bafo era o legítimo bafo de onça. O rapaz levava consigo um livro enrolado num pano cinza.
- Que é isso que você carrega? É roubo, moço? Você é do bando de Lampião? Cupertino fez as perguntas de práxis intimidando o moço como se ele ainda fosse alguma autoridade.
- É só um livro que sempre carrego comigo e eu desço aqui para lê-lo e praticá-lo quase sempre. Disse Cristovão, o bruxo de Glória.
- Deixe-me ver este livro! Disse Cupertino dando-lhe uma ordem. Cupertino folheou o livro. Este estava cheio de rezas e de encantamentos. Haviam muitas figuras e símbolos mágicos. Era um autêntico Capa Preta. Cupertino interessou-se muito pelo trecho que diz: “Fazendo com fé a oração da cabra preta você se tornará invisível e só uma pessoa que te ame de verdade poderá te ver”. Naquele instante estava diante de seus olhos a solução da vida de Gracinez: “Entrarei no arraial de Lampião sem ser visto e a trarei de volta”. Sua vontade de ver sua amada era tão grande que ele se esqueceu do resto da oração.
- Moço, você quer quanto pelo livro? Perguntou Cupertino.
- Num vendo não moço. Esse livro meu pai trousse de São Paulo.
- Moço meu caso é urgente e preciso me tornar invisível para libertar uma pessoa que está nas garras de Lampião.
- Mas eu num vendo não. Repetiu o rapaz.
- Tenha piedade moço. Insistiu Cupertino.
- Eu rezo por você. Na verdade nunca testei este encantamento, mas acho que para uma causa nobre como essa os espíritos vão nos ajudar. Feche os olhos!
- E pode rezar aqui? Perguntou o bravo soldado do sertão.
- Num se preocupe! Aqui é o local certo de magia deste tipo, feche bem os olhos e se concentre na cabra preta.
“Pelo galo que cantou;
Pela cabra que berrou;
Pelo sol que levantou;
Pela noite que chegou;
Eu chamo as forças da jurema, do Imbuzeiro, e do cruzeiro;
este moço será um bode invisível e salvará sua amada”. Na mesma hora, em plena luz do dia, caiu um raio que torrou um pé de mandacaru que estava faceiro perto dos homens. Cupertino desapareceu, o rapaz era agora um bode preto do sertão.

- E agora seu Tião, como vai terminar esta estória. Esquisito! Perguntou assustada a pequena Gracinez. “Maria, pega um cafezinho para nós”. Dona Maria levantou-se do banco e foi à cozinha buscar café. Ao retornar ela diz: “Faz vinte anos que ouço esta estória e é nessa parte que Sebastião pede um cafezinho. Conte logo homem já, já escurece, a menina tem que ir para casa”.

O bode preto inicia sua caminhada pelo sertão em busca de sua amada. Por onde passava berrava e o povo ouvia seu berro, mas, não sabia de onde vinha. A população que morava no beiço das estradas estava apavorada com aquele berro triste de partir o coração. O sogro e sogra de Cupertino nunca souberam o motivo do rapaz não ter mais aparecido. Cupertino agora pertencia à outra estória. O bode preto avistou o arraial de Lampião na manhã do dia 29 do mês de Santana. O bode preto andou em círculos berrando sem cessar até que os cangaceiros incomodados com zoada indagaram sobre o que estava acontecendo. Ninguém tinha resposta. Era um som de bode que os acompanha pelas estradas do sertão, fosse dia ou noite, manhã ou tarde, o berro do bode estava no ouvido do povo. O próprio lampião já não suportava mais aquele berro triste.

- Curísco vá chamar dona Florisbela para rezar. Ordenou o rei do cangaço. Curísco pegou a estrada da tapera e foi em busca da benzedeira. A mulher ao chegar aos limites do arraial gritou em alto e bom som: “Salve o bode preto!”

- Que é isso dona? Perguntou Curísco a benzedeira.

- É o bode preto que está no encalço de vocês. Conta a lenda que ele não pode ser visto. Somente a pessoa que o ama pode fazê-lo tornar-se visível.

- E a tua reza não pode expulsar este animal de perto de nós?

- Não, ele está aqui porque ele está em busca de sua amada. Deve haver alguém aqui que o bode deseja.

- Há três anos um de nossos homens teve uma febre de fricote por causa de uma moça de Monte Alegre, e nós roubamos a moça de casa. Não sabíamos que a coisa era tão séria assim. “E agora o que fazer?” Perguntou Curísco preocupado. Raimundo estava na espreita ouvindo a estória da rezadeira. O rapaz amava muito Gracinez e não queria perdê-la. Raimundo gritou: “Faça um feitiço para o bode aparecer e nós mandamos chumbo nele.

- Num é tão fácil assim não. O bode preto é um encantado e as forças da Jurema estão com ele. Você nem imagina a força de um bode preto. O jeito é levá-lo até a moça e quando ele vê-la, ele ficará visível por causa do amor que está dentro dele. E será nesta hora que vocês vão rezar a oração do desmanche antes de pegá-lo:

“Sapo cururu;
Coruja encantada;
Serpente alada;
Pela força da calunga;
Pela força do cruzeiro sagrado;
O bode ficará visível”.

- Rezem, depois ele será visto, e façam com ele o que quiserem. Mas é bom sangrá-lo na garganta com uma faca virgem. O bode era grande, uns dois metros de bode. Ele tinha chifres afiados e uma barba de bode muito atraente, na verdade, o bode preto era um bode de lei. Depois disso Curísco e seus homens tomaram Gracinez numa conversa muito astuciosa:

- Moça, vá buscar água no tanque. Volte logo, seu Virgulino está esperando. A água do tanque era quase verde, mas, era única que tinha, e dela o povo bebia, cozinhava, e tomava banho. Quando a moça Gracinez foi buscar água, o bode veio ao seu encontro. À proporção que ele berrava, ele se aproximava, e seus berros deixavam o tom de tristeza para ser tom de alegria. A moça nada entendia até que viu uma forma trêmula de bode se formando na miragem do sol quente da caatinga sergipana. “É um bode preto!” Pensou a moça consigo. O bode aproximou-se dela e ajoelhou-se aos seus pés e berrou como que fosse um choro, misturado de alegria e sentimento. Cupertino, finalmente, encontrara seu amor. A pobre Gracinez em sua inocência passa a mão na cabeça do bode com muito cuidado para não tocar-lhe os chifres. Este se deita aos seus pés e põe como um cachorrinho a barrica para cima. A moça passa a mão na barriga do bode. Raimundo estava à espreita por entre as moitas de macambira. Ele e seus jagunços. Todos correm e amarram o bode pelas pernas.

- Mulher, estás me chifrando com o chifrudo preto? Perguntou Raimundo com o rosto transtornado.

- Não! Você não vê? É só um bode perdido. Respondeu-lhe a moça de Monte Alegre.

- Esse é o bode fantasma que andava assombrando todos os povoados desse sertão. Esteja preso bode maldito! Levaram o Cupertino para o arraial. Deram tiros no chão e o bode pinotava para todos os lados enquanto isso os homens de lampião davam gargalhadas. Gracinez não sabia o motivo, mas sua alma chorava ao ver o sofrimento do pobre bicho.

- Seu Tião, o que houve depois disso? Os dois ficaram juntos? Perguntou a pequena Gracinez do Aribé.

- Minha filha, juro por Deus, mas conta o povo que o bode...

- Parem de atirar! Ordenou o rei do cangaço.
- Isso é coisa de macho? Zombar de um pobre bicho? Continuou seu Virgulino.
- Deixem o bode quieto. De hoje em diante o bode anda conosco. Daquela hora para frente Cupertino deixou de berrar e só andava com Gracinez. Para onde a moça ia, o bode ia atrás. Muitas foram as noites e dias juntos. E Raimundo sempre cismado com o coitado do bode. Ele nunca mais ficara invisível, agora, seria um bode de estimação do cangaço.

- Mas, minha filha a vida num é sempre rosas. Essa estória parece não ter um fim, mas teve.

Era noite de lua. Esta estava imponente no céu do sertão de Monte Alegre. As serras vistas a distância não mais encobriam a orgulhosa senhora da noite. É tempo dos bichos darem seus uivos, ou gritos, e no caso do bode, berros. O bode berrava de alegria e pulava para todos os lados como que dançasse a luz do luar. Desse jeito foi se aproximando da barraca de Raimundo onde Gracinez estava. O casal estava fazendo amor, ou melhor, Raimundo fazia amor e Gracinez pensava em Cupertino. A moça nunca esquecera seu homem. As mulheres são assim, quando amam, amam até fim. O bode entrou na barraca do casal e deu um berro assustado quando viu sua amada naquela situação. “Bérrrrrrr!” Estas foram as últimas palavras de Cupertino. Raimundo saltou de onde estava e tomou a faca virgem por ele guardada em segredo e tomou o bode pelos chifres e o levou para a beira do tanque sob os gritos de Gracinez apavorada. “Não mate o bichinho, não, Raimundo”. Raimundo passou a vaca no pescoço do bode cortando-lhe a artéria. O animal se estrebuchava em uma poça de sangue que escorria para dentro do tanque. Lentamente o bode se transforma em figura de homem e de homem conhecido. Gracinez reconhecera que era o seu amor. Correu e o abraçou dando-lhe beijos no rosto e fazendo-lhe juras de amor eterno. Com isso Raimundo enfraqueceu o juízo. Quando amanheceu o dia, todos do arraial sabiam do ocorrido e como Raimundo havia assassinado o bode preto. Lampião ordenou seus homens que enterrassem Cupertino e ao lado de sua sepultura enterrasse Raimundo até o pescoço e jogasse mel na cara. A cara do cangaceiro foi comida pelas formigas e Gracinez foi mandada de volta para seus pais. Todo o povo do sertão chorou a morte de Cupertino – amor como esse é coisa rara. Gracinez voltou para Monte Alegre, conheceu seu Feliciano, casou-se com ele. Depois da Segunda Guerra vieram morar no Aribé, em Aracaju, em uma casa branca no final da Rua Pernambuco. Ali criaram suas filhas que devem estar vivas até hoje.

- E Gracinez, seu Tião? Está ainda viva?

- Não minha filha. A pobre mulher fez de tudo para amar Feliciano, contudo, sempre Cupertino estava em seus pensamentos. Morreu e foi enterrada aqui no cemitério perto da Leste.

- E na casa que eles moravam mora gente lá? Perguntou curiosa a menina Gracinez.

- A casa fica logo ali, é só seguir em frente e você a verá.

Gracinez despediu-se do velho e de dona Maria. Agradeceu-lhes os cuidados e o bom dedo de prosa. A moça seguiu seu destino caminhando com dificuldade. A curiosidade é coisa natural de todos os homens. E quando falamos do sexo feminino parece que ela é bem maior. A moça foi ver a casa da finada Gracinez. Era uma casa branca que estava toda descascada com o tempo. O portão quebrado com um lado caído. As pessoas entravam ali para fazerem tudo que queriam. Havia fezes pelo antigo jardim. As pessoas aproveitavam o muro alto da propriedade para usarem de tudo. Gracinez entrou pelo portão, e caminhou em direção do hall que estava cheio de folhas secas e papel velho. Tentou abrir a porta da frente, mas, não teve sucesso. Então, disse ela consigo: “Onde vai dar este beco?” Ela seguiu o bequinho na lateral esquerda da casa, e mais adiante avista uma goiabeira e nela amarrado um bode, e o bode era preto. “Um bode preto?” Pensou ela. “Deve ser coincidência”. Naquele instante ela rever a estória que o velho preto da leste tinha contado. “Será o mesmo bode?” Enquanto a moça está tentando situar-se no tempo e espaço, pois, sua mente procurava respostas. Atrás dela surge uma voz que ela já conhecia.


- Minha filha, a vida é cheia de sentidos assim como as cidades são cheias de casas. Em todas elas moram estórias nunca contadas. Os homens transitam entre elas como sonâmbulos acordados pelo o urgir das necessidades.

- Mas, o senhor não é seu Tião? Perguntou Gracinez confusa e assustada.

- Tião é um contador de estórias como eu. E você quem é? Perguntou-lhe o velho de Aruanda.

O bode que estava preso deu um berro e a corda quebrou-se sozinha sem força de mão de homem. O bode veio até Gracinez, ajoelhou-se ante seus pés e chorou amargamente. Depois se deitou como um cãozinho de estimação com a barrica para cima. Gracinez passou a mão em sua barriga peluda, e sentiu uma ternura profunda. Olhou para trás e lá estava um preto velho sentado com as costas encurvada observando tudo. A fumaça de seu cachimbo subia ao céu como a oração dos justos.

- Gracinez, acorde! Disse o velho de Aruanda.

Gracinez cresceu, casou-se, e foi morar no Santo Antonio. Todas as tardes quando chegava do trabalho ela ia até o oitão da igreja olhar a vista da cidade princesa do Brasil. E era nessa hora que seu peito ardia de saudades da cidade de Monte Alegre onde vivera sua infância e nunca ninguém lhe contara sobre Cupertino e o bode preto...

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

000 - Circular vida e não vida

Anos e anos não consumados. Uma vida no ônibus com 0 percurso de destino algum. Pergunta-se onde quer chegar, mas não tem resposta alguma, o indivíduo olha pela janela. Vê o mundo, as casas, outros ônibus, o luxo, o lixo, um puteiro, o bar, o dinheiro, a igreja, a escola, a família e a mulher amada. Olha para si mesmo e o externo.

Viu tudo passar.

O espectador do ônibus que entra na estrada perdida volta para o mesmo ponto. Segue em frente no buscado destino inexistente. Mas nada que tenha sentido para descer. Não imagina onde seja, o ônibus é circular? Bruscamete para e ele questiona:

- É aqui que eu devo permanecer?

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Biológico x Simbólico - Freud e a Teoria das Pulsões

Olá, colegas! Trago-lhes aqui uma contribuição acadêmica no sentido de debater um tema recorrente no Torto, as questões que envolvem um homem biológico x simbólico.

Temos em relação ao sujeito afetivo grande colaboração da psicanálise acerca desta “fronteira”. Esta contribuição é melhor visualizada no conceito de pulsão dentro da metapsicologia freudiana.

Segundo Freud (1924), "a teoria das pulsões é a parte mais importante da teoria psicanalítica, embora, ao mesmo tempo, a menos completa". Trata-se de outro conceito que traz consigo as famosas e intrigantes questões de constatação fenomenológica que envolvem toda a psicanálise.

Nas palavras de Laplanche e Pontalis (2001), pulsão é um "processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal ( estado de tensão): o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir sua meta". A pulsão é, de uma maneira geral e na sua dinâmica, um vetor entre o psíquico e o físico, este vetor é, mais exatamente, o representante psíquico da excitação somática.Quando constituímo-nos sujeitos e passamos ao mundo significado, a pulsão se torna o representante das necessidades oriundas da ordem natural. Garcia-Roza (2003) nos fala da pulsão sexual, por exemplo, que esta "não visa a reprodução, mas a satisfação. O mínimo que podemos dizer da sexualidade humana é que ela não é natural, mas que se encontra necessariamente submetida ao simbólico. É do corpo submetido ao simbólico que Freud nos fala e não do corpo enquanto "natural" ou biológico".

As dificuldades de compreensão deste conceito se dão por várias razões, uma delas reside na tradução feita por Strachey do vocábulo alemão Trieb para o inglês Instinct, o que levou alguns a uma conjetura biologista. Esta conjetura se baseia no fato de que para a própria teoria psicanalítica, segundo Garcia-Roza (2003), "a pulsão se apoia no instinto não para confundir-se com ele, mas para desviar-se dele. A pulsão é fundamentalmente uma perversão do instinto. Essa perversão se dá por uma desnaturalização deste último na medida em que ela se desvia de seu objetivo natural, que é a autoconservação". Ou seja, para a prória psicanálise, o instinto está para a ordem natural, enquanto as pulsões, como já discutido, atuam na fronteira entre esta ordem natural e a ordem simbólica. Esta articulação entre natural e psíquico, aliás, também constitui um assunto particularmente complexo.

O funcionamento da mecânica pulsional é explorado por Freud num artigo de 1915 intitulado Os instintos e suas vicissitudes. Neste artigo, Freud destaca alguns elementos acerca da pulsão, como a força pulsional (Drang), que é constante e que se faz motor da pulsão, impelindo o organismo para o ato específico responsável pela eliminação da tensão. A finalidade ou objetivo da pulsão é, com certeza, a satisfação, uma vez que o aparelho psíquico age de acordo com o princípo do prazer, e este consiste no menor estado possível de tensão. Há também o objeto (Objekt) em relação ao qual ou através do qual o instinto consegue alcançar sua finalidade. A fonte (Quelle) da pulsão é somática e provavelmente seja proveniente de um órgão ou alguma parte parte de um corpo sexualizado pelo Outro.

Os possíveis destinos da pulsão são a transformação no contrário, o retorno contra o próprio sujeito, o recalcamento e a sublimação. Segundo Freud (1915), "As vicissitudes pulsionais que consistem no fato de a pulsão retornar em direção ao próprio ego do sujeito e sofrer reversão da atividade para a passividade, se acham na dependência da organização narcisista do ego e trazem o cunho dessa fase". A sublimação, segundo Laplanche e Pontalis (2001) é um "processo postulado por Freud para explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud descreveu como atividades de sublimação principalmente a atividade artística e a investigação intelectual. Diz-se que a pulsão é sublimada na medida em que visa objetos socialmente valorizados". Ou seja, é elevar o objeto à dignidade de coisa.

Ainda na teoria das pulsões, Freud descreve duas pulsões antagônicas, Eros, a pulsão relacionada à preservação da vida, e que engloba também as pulsões sexuais, e a pulsão de morte, Thanatos, que, segundo Laplanche e Pontalis, "designa uma categoria fundamental de pulsões que se contrapõem às pulsoes de vida e que tendem para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser vivo ao estado anorgânico. Voltadas inicialmente para o interior e tendendo à autodestruição, as pulsões de morte seriam secundariamente dirigidas para o exterior, manifestando-se então sob a forma da pulsão de agressão ou de destruição".

A pulsão de morte pode ser interpretada também como essencial para a evolução da vida do sujeito em todos os seus aspectos. Por exemplo, para que se tome a pulsão de vida que o faria empreender uma submissão a um concurso público que o levaria a uma situação financeira melhor, o sujeito antes sofre a ação de uma pulsão de morte, que o faz sentir-se insatisfeito com a sua condição anterior.

REFERÊNCIAS:

FREUD, Sigmund, volumes VII, XX e XIV, Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas, Imago Editora.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo, Introdução à metapsicologia Freudiana, Jorge Zahar Editor, 2003.
LAPLANCHE E PONTALIS, Vocabulário de Psicanálise, Martins Fontes, 2001.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Mata Urbana

Mete o focinho entre as gracinhas rechonchudas de qualquer shortinho. Escora o rabo no chão pra dizer coisas bonitas e fingir que não quer o osso. Lambe os caroços já chupados pelas rainhas tiranas. Fuça rosnando os cheiros de chocolate e de poupanças imensas. Arrebenta os dentes na carne desejada por querer preservar qualquer parte que lhe reste ou que lhe sobre. Papoca a cabeça do outro com um cocão, e por medo de viver a paz, ruma uma pedra em qualquer vidraça decadente humana.

É uma pena! Nem percebeu que a mulata do posto de gasolina sorriu pra ele por agradecer a preferência. Nem percebeu que a velha da esquina parecia uma velha porque envelheceu. Nem percebeu que o menino chorava por um brinquedo porque nasceu.

Olha o seu relógio, projeta o tempo e volta pra outro lugar que talvez nunca mais venha a voltar. Grita impaciente por um troco errado com uma linda senhorita que pacientemente tem que ouvi-lo. A senhorita se desculpa mesmo sabendo que ele também não está livre de seus erros, mas agüenta calada mesmo sabendo que terá que voltar pra casa, pegar a tromba, os tapas e o troco do seu macho que diz que é feliz com ela, mas que ela sente o seu sorriso se corroer em meio a fantasia inventada das belezas dos casais.

Nem mais se lembrando da senhorita, dispara um bicudo no pé da mesa do consultório, sente a pele oleosa pelo hambúrguer e pelo excesso de cevada, percebe que o corte novo do cabelo é apenas fruto do cansaço, que a barba feita ou não, não passa de uma ilusão de achar que conseguirá ser aceito pelo rebanho de um imenso latifúndio.

Acabado o dia, janta, coça a guela com a escova pra deixar a boca cheirosa, sente o cheiro do sabonete que usa pra ficar cheiroso, olha a estrada do mundo de sua janela, cai na cachaça, fica bêbado, esbagaça um vaso de vidro no chão, soca o espelho e ouve os pássaros cantarem avisando que o dia já nasceu.

Na janela de um quarto vizinho ao seu, encontra-se uma senhorita que não mais acredita no amor.

Cem

Sem pontos,

Sem riscos,

Sem traços,

Sem vírgulas,

Sem gestos,

Sem palavras.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O poeta angustiado

O Poeta angustiado

Falei muitas coisas; até palavras sensatas.
Tentei mostrar o segredo despido pela mente do poeta.
A alma sucumbe ante o delírio de nossa pena.
Brincamos com as palavras; abrimos mentes, criamos mundos.
Observamos ao nosso redor, o nosso interior, nunca perdemos a cena,
O momento, o retrato de um pensamento, a dor, o amor, o sofrimento.

O vidente lê os espíritos e sente suas fibras; penetra suas entranhas.
Angustia, fascínio, horror, paixão, e muitos outros são seus motores.
Entre eles, no trono, está o coração; o peito é cordel, é canção.
Seu olho é o buraco do mundo; despe o véu de todos os tormentos.

Falei dos outros e de mim;
Vi o outro em mim e eu nele.
É bom matar o bode e curtir o coro,
Contudo em tudo carrego um choro;
Clamo no meu silêncio ao vento, se me escuta.
Não sei o final desta luta.

Enquanto houver figuras moventes; sombras viventes.
O vidente, com seus olhos, ilumina a estrada.
Fixa-se nas pegadas em sua caminhada.
Sonha acordado um bom mundo,
Fala de um dia real.

Mas tudo não passa de palavras.
Invenção nossa, como tudo mais.
Coisas de poeta angustiado...

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Contrário

Em uma terça nublada de outubro, Davi volta da escola para sua casa. Cansado, ele almoça com sua mãe. Ela estava preocupada com o marido alcoólatra que estava muito doente e prestes a perder o emprego, pois, o chefe da repartição pública havia ameaçado de despedi-lo caso ele não largasse o vício. Há poucos dias havia terminado o contrato do Davi com uma empresa de comunicações e ele estava à procura de um trabalho que desse para segurar a barra. A mãe do Adolescente preocupada com sua feição pergunta:

-Você está com algum problema meu filho?

-Sim mãe, eu não estou muito bem no colégio, quero me concentrar nos estudos como deveria e conseguir um emprego que dê para segurar os problemas financeiros de casa. Esses problemas e mais um pouco andam tirando a minha atenção das coisas que estão ao meu alcance.

-Está certo meu filho, espero muito que você consiga.

Depois de tomar seu banho, o rapaz passa alguns minutos em frente ao computador. Abre o email e pergunta ao seu amigo Rafael o que ele estava fazendo naquele instante, o mesmo não responde. Então, Davi decide abrir sua gramática e durante a segunda pagina de análise sintática um sono cai instantaneamente sobre ele. Resolve dormir alguns minutos, são 3 da tarde. O sono e o medo simultâneos não deixam ele conseguir dormir nem levantar-se para continuar seus afazeres, o café não resolveu o problema. Exatamente às 16hs ele dorme profundamente e poucos minutos depois, acorda em um lugar estranho:

-Que lugar é esse? Porque eu vim parar aqui?

Seu amigo Rafael aparece e lhe responde a pergunta

-Te achei próximo à escola, você estava andando de pijama com sua guitarra nas costas. Te trouxe até aqui para descansar um tempo, não sei como conseguiu andar dormindo da sua casa para cá, mas está tudo bem, você pode pegar uma roupa minha emprestada caso queira.

Davi confuso e sonolento levanta-se e observa que a casa estava cheia de visitas. Avista na sala, um amigo do antigo colégio onde estudava, o amigo se chama Alex, que tinha lhe ensinado os primeiros acordes, estava também Lucia, ex-namorada do Rafael e alguns colegas de sua sala. Eles passavam alguns dias por lá. Após Davi falar com todo o pessoal, distraiu-se um tempinho tocando algumas musicas com o Alex, já que não o tinha visto há tanto tempo.

Três pessoas saíram da casa por alguns instantes, Alex, o Rafael e a Lucia saíram minutos antes. Davi não havia percebido a saída, pois estava concentrado no novo equipamento que o amigo tinha mostrado. Então olha para o seu relógio e são exatamente 17h, o apetite já soara em seu estômago.

Dani, colega de sala do Rafael havia preparado um banquete, Davi não sabia nem por onde começar. Após o término da refeição ele encontra o Rafael em frente a casa com Lucia.

- Jantou Davi?

- Sim Lucia, aproveite enquanto está quente na mesa. Dani é fantástica, prepara pratos deliciosos mesmo.

- Está certo, vou lá conferir então.

Lucia sorri e entra. Rafael convida Davi para ir a venda que ficava algumas quadras dali, para comprar alguns alimentos e materiais de limpeza. Já que ele estava com visitas, teria que repor os utensílios necessários. Davi olha para o relógio e percebe que já são quase 18 horas. Enquanto isso, Rafael fala durante o caminho.

-Velho, fiz uma loucura quando saí com a Lucia. Transei com ela na escada do prédio em construção da escola. Jurei que não ficaria mais com ela, mas acabou acontecendo. Está tudo bem, não vai ocorrer nenhum problema por causa disso.

-Pois é meu caro amigo, nem tudo acontece da forma que planejamos.

Enquanto isso, eles andam por uma rua meio calçada com muita terra, existe um fábrica de móveis. Em poucos instantes, essa fábrica lança uma água sobre a rua deixando-a encharcada de lama, obrigando os dois garotos a andarem pela calçada. Através do portão aberto, eles enxergam vários funcionários lavando o galpão. Davi sente um incômodo após a água ter molhado seus pés. Olhando para o relógio, vê que são exatamente 18h e 30. É noite, de repente viu tudo escurecer. Assim, o garoto encontra-se na cama, enxergando uma luz fraca vinda da sala através da porta do seu quarto escuro. Levanta-se ainda um pouco embriagado do sono e pensa o que teria acontecido possivelmente nas ultimas horas.

-Merda! Foi um sonho? Como posso ter certeza que é o meu quarto realmente? Dormir pelo dia e acordar à noite não é nada comum.

Indo ao computador, Davi lê o Email respondido pelo Rafael, enviado às 18h e 30:

-Amigo, dormi durante à tarde. Acabei de me levantar e li a sua mensagem agora.

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Medo do Ser

Aqui, neste tempo e não só neste espaço, balbuciam os advogados do fim da história: “escolhamos o menos pior!”.

Quero lhes dizer que, doravante, pensarei seriamente no pior como preferível. Afinal, ao ser como está sendo tenho preferido não só o dever-ser como o que simplesmente pode ser.

Aqueles que tentam me cooptar dentro de suas doutrinas fundamentadas em idolatrias baratas, que fazem diminuta a razão dos que não se fazem dóceis recipientes dos mais sofismáticos e eloquentes discursos. Aqueles que, com rara suspeita acerca de onde emanam os próprios padrões de normalidade que eles mesmos fazem questão de reproduzir sem se perceberem vítimas imediatas, tacham-me. Aqueles são os que abrem a boca e soltam numa eructação umbiguista, acreditando-se portadores do verdadeiro desejo do outro: “MEU PRESIDENTE (- ou pai?) VAI GANHAR! VOCÊ É LOUCO DE NÃO VOTAR EM X? VOCÊ VAI VOTAR EM Y? AQUELE DOIDO!”

E eu que gostaria de apreciar com risos, apenas, o carnaval da irrupção encabrestada, pelo contrário, diluo-me em tão grande que é o meu ódio aos que não obstante aprenderem em livros didáticos que em Hitler e Mussolini se encerra todo o mal, pregam em idas e vindas encharcadas de álcool (maconha e congêneres também são do mal) a discriminação sistemática a homossexuais, o enaltecimento aos “grandes oradores”, o eurocentrismo etc.

E, por falar neste espaço, neste em que há apoio idólatra massivo a um líder que reduz em discursos públicos o outro discordante a um “outrinho”, em que se deve “execrar” uma oposição, há de se lembrar que até mesmo Hitler foi autor de “melhorias” em âmbito social e econômico.

O que quero dizer com isto?

Capitão Nascimento! Aluga-se!

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Clichê sobre a vida

Tanto se apodera
Que o homem se enxerga
Em não saber ciente
Tudo tangível parece
Afastando-se em passos míopes.

A tudo o homem descreve
A máquina
A bola
A mira
Para computar no fim da vida
Fatias de suor, terra e nostalgia.

Nos meandros o refluxo
Na cabeça o norte
A certeza fast-food
Prenuncia o fim
Resto de um orgasmo.

Cigarro.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Quem cola conhece a escola

Principalmente nas chamadas semanas de provas do ensino médio, encontramos com uma certa freqüência, aqueles velhos e conhecidos alunos que não se encontram preparados para fazer a prova e tentam levar os famosos pedacinhos de papel com anotações referentes ao conteúdo da avaliação. Esses alunos são conhecidos como colões e em geral as escolas agem de forma punitiva em relação a eles.

Como professor, sei que muitos leitores podem achar o titulo e o conteúdo deste texto extremamente irresponsável, mas sou contra a punição que fazem acerca da cola. Porém, como um cara que adora se afogar e se salvar nas ondas bruscas do oceano torto, também compartilho da proibição do ato da cola. Para esclarecer esse paradoxo, resolvi trazer ao leitor passo a passo de minha argumentação.

Primeiro: por que sou a favor da proibição da cola? Se pensarmos a cola como um tipo de comportamento considerado proibido ao regulamento institucional, acredito que é importante cobrarmos determinadas condutas aos alunos, uma vez que a proibição ensina o discente a ter limite diante de seus atos, e para vivermos em sociedade, gostando ou não, temos que aprender a tolher o nosso excesso de liberdade.

Segundo: por que sou contra a proibição da cola? Gostaria de me prolongar mais nesse ponto. Para começar, gostaria de falar do discurso que construímos acerca do ensino médio. Sempre mostramos aos alunos que o ensino médio é a ponte para o ensino superior, porém, sabemos que as universidades prezam pela pesquisa, e para se fazer pesquisa, precisamos de várias fontes para fundamentar nosso conhecimento.

A partir do instante em que proibimos a cola, nós não exercitamos o aluno à pesquisa, e, portanto, ao ensino superior, pois não há como se fazer pesquisa sem exercitarmos o ato de recorrermos às diversas fontes para elucidarmos nossas questões. Quando proibimos a cola, empobrecemos o aluno por limitá-lo a uma fonte restrita ao livro geralmente indicado pela escola. O aluno não pesquisa, guarda o conteúdo e faz a prova.

Quando proibimos o aluno de ter acesso a outras fontes, não estamos possibilitando um bom aprendizado, pois não há um bom aprendizado sem vários pontos de vista contradizendo e enriquecendo determinado conteúdo. Enfim, estaremos apenas limitando o aluno a reconhecer a grandiosidade do conhecimento, pois ele passa a acreditar que o entendimento acerca da disciplina se reduz ao fazer bem uma prova.

O aprendizado só surge através do intercâmbio estabelecido pelos sujeitos com outros sujeitos, pois são deles que surgem as negociações, os conflitos, e, portanto, novas questões. A proibição da cola só amputa a possibilidade do aluno reconhecer a importância de saber dialogar com o outro aluno, visto que o discente não percebe que o aprendizado se enriquece a partir do instante em que ele dialoga com diversas realidades.

Os educadores insistem em mostrar aos alunos a importância de se viver coletivamente, mas a partir do momento em que se proíbe a cola, estamos proibindo o aluno de exercitar a prática de aprender a conviver com os outros, afinal, proibir a cola é perpetuar a velha idéia do cada um por si, mantendo assim, o modelo do individualismo tantas vezes criticado por eles.

Claro que esse tipo de cola defendido por mim, não é a cola que leva o aluno a simplesmente reproduzir uma determinada questão por simplesmente não encontrar outro caminho para responder uma prova. A cola que eu defendo, é a cola sem seu sentido pejorativo, ou seja, a cola que possibilita o acesso do aluno à prova do colega por ser uma cola não no sentido de ser copiada, e sim por implicar trocas de informações.

Acredito na cola que faça o aluno se reconhecer como um indivíduo participativo e crítico, e não na cola individualista que serve apenas para a ambição do aluno dito “melhor’ querer perpetuar seu prestigio na hierarquia, e por concorrência, não cooperar com o outro; e o dito aluno “pior” ter que optar pela falta de sinceridade com o educador, ao invés de estabelecer uma relação amistosa e amiga com ele.

a Bárbie

A Barbie é linda e loira. Tem os cabelos acetinados e ondulados. Tem cintura fina e pernas torneadas. É eternamente maquiada e bem arrumada. Usa salto alto, roupas da moda e óculos escuros. Perfeita, dentro de todas as leis que regem a perfeição de uma mulher moderna.

É completa, transparece um sorriso que não murcha nunca e não reclama de absolutamente nada. Ao mesmo tempo, consegue ser encantadora, tão encantadora que não se fragiliza a qualquer olhar de alguma remanescente inveja. Ela nasceu para ser contemplada. Para ser a verdadeira modelo do gênero feminino.O resto é: meras cópias que insistente em ser igual a ela. Gasta fortunas para repuxar, cortar o corpo nas mãos de navalhas. E quando se aproximam não conseguem se sentir um pouco satisfeitas, pois o espelho sempre será um verdadeiro mentiroso. Ele reflete a imagem que elas querem vê. Só elas, apenas.

Enquanto que a Barbie continua linda, loira e estática. Estática no tempo, pois é uma mulher atemporal.Por isso que ela não se move. Ela não pode ter problemas na coluna, nos olhos ou na cabeça. Ela não se estressa. E nem tem plobemas existenciais. E a sua casa só tem duas dimensões. Em uma parede, só encontra desenhos de espelho, pente, de uma suposta cama e um namorado. Ele não entra em contato com ela, pois ela está em outro plano e pespectiva. A Bárbie tem projeções e ele não. Até mesmo as necessidades mais íntimas a ela parece ser dispensável, pois não tem buraco e nem implora pela caneta dele.

É incrivél como ela continua estática. Sem nada a contestar. Mas para quê? Se ela já atingiu há muito tempo o que todas buscavam incansavelmente em várias gerações?
Por isso que ela continua, linda, loira, jovem e triunfante com seus olhinhos azuis e cintilantes.

Aí está o reflexo de uma mulher moderna e emancipada de qualquer preocupação com o seu tempo.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Além... *

Vejo a minha frente um imenso encadear de pedras,
Como é fina a natureza. Tão perfeita e eu tão pequeno no meu mundo.
Essas serras não me queriam por aqui, embora eu seja teimoso em visitá-las.
Mas até paisagens mais bonitas se acostumam. O fato é que a minha vista se vislumbra com tamanha beleza que chega a me deixar quieto, só olhando...
Num momento me levanto, com pouca pressa, e olho mais além do que a minha própria altura. Isso acontece para que eu possa enxergar melhor aquele todo ao meu redor e lanço um anzol invisível para dentro de mim e passo a descobrir o universo que povoa a minha imensidão.


*título de Ivan

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

SINCRONICIDADE

“Ele sempre viu coisas; as coisas que precisam ser vistas. Bem, é bom descomplicar para que meus amigos entendam. Ver coisas? Foi isso que eu disse? Pois bem”.

A Aracaju de 2007 possuía o prestígio de melhor IDH do Brasil. A cidade melhor de se viver. Sem muitos bandidos, com menos desemprego, com uma cesta básica mais barata do país, e boas oportunidades de trabalho. Seu clima favorecia o crescimento de grama verde nas praças, e flores lindas por todo o município. No mês do Natal a noite aracajuana não nos deixa sentir falta de nenhum lugar do país. Seu Pimentel dizia com muita convicção: “Quem não crescer em Aracaju, não cresce em lugar algum”. O homem tinha razão. Muitas famílias que viviam das bênçãos do petróleo conseguiram estabilidade financeira. Um novo bairro surgiu, era o bairro da Atalaia Nova. Um novo bairro, em uma velha praia. Foram para a Atalaia várias famílias de classe média “a” e “b”, gente de posses, como médicos, engenheiros, negociantes, empresários, políticos, etc. Construíram seus castelos e os cercaram com cercas elétricas. Em qualquer lugar do Brasil, o rico paga caro por sua condição, e está condenado à cerca elétrica pelo resto de sua vida. Se todos compreendessem o significado da caridade xaveriana, o mundo não teria cercas.
Morava no bairro São José, na continuação da Rua Siriri, a antiga Rua das Prostitutas, um moço de seus trinta anos. Desde criança Felipe era considerado uma pessoa muito estranha por todos os seus. O rapaz cantava todos os dias pela manhã para uma platéia invisível e depois se despedia. O pobre Felipe nos primeiros anos de escola não teve rendimento algum. O tiraram do colégio e o levaram para estudar com a tia. Foram três longos anos para que Felipe retornasse ao mundo; depois disso, a vida do rapaz seguiu seu curso normal. Aracaju continuou crescendo e Felipe também. Graduou-se em Psicologia Clínica e foi trabalhar em um consultório na Praça da Bandeira. Certa feita ele estava sentado em um banco na Praça da Catedral a esperar sua namorada. Ele observava atentamente a beleza do lugar, as formas arquitetônicas que os pioneiros deixaram vivas em suas construções. Felipe distraído com o que via não se deu conta que o tempo passara. Uma voz atrás de seu banco lhe diz: “Trabalhe para mim!”
Márcia, sua namorada, chegou logo em seguida e o encontrou um pouco atônito. Os dois se dirigiram até o carro e saíram como de costume. Quando Felipe retornava para sua residência, já na Rua Siriri, o moço avista uma dama muito bonita em pé na esquina com a Laranjeiras. A moça fumava com muito gosto. Não havia ninguém por perto. O rapaz parou e disse:
- Senhora, algum problema?
- Como é? Respondeu-lhe a dama.
- Eu disse: “Algum problema?”
- Não. Eu trabalho aqui todas as noites.
- Como? Perguntou Felipe sem entendê-la, pois, o comércio estava fechado.
A mulher aproximou-se do carro, e pelo vidro do lado do passageiro ela enfia sua cabeça e diz com tom grave: “Os tenentistas vão controlar tudo. Dizem que vão mandar as mulheres da rua para o Quartel do 18 do Forte”. Sem abrir a porta, a mulher entra no carro e senta-se no banco de passageiro. Felipe, em crise, a conduziu a um casarão na Avenida Beira Mar. Era a casa do finado Barão de Maruim, um político muito importante de Sergipe. Ela desceu do carro, entrou na propriedade velha e mal cuidada, e sumiu. Felipe despertou de sua crise: “O que faço aqui?” Felipe Nogueira acordou cedo no outro dia, tomou café e foi trabalhar. Nada disse; nada pensou. “Foi só uma crise”. Ele estava em sua clínica quando uma enfermeira do Hospital Cirurgia telefona.
- Dr. Felipe, por favor, você poderia vir à minha casa na Atalaia?
- Como senhora? Atalaia? Estou sem entender. Não faço consultas a domicílio.
- Não senhor, não falo sobre isso. Minha mãe está muito perturbada. Não dorme, sente presenças...
Felipe a interrompeu e disse:
- Não sou macumbeiro, nem sou espírita, sou um médico, um homem da Ciência. Por favor, me deixe em paz!
A mulher continuou dando-lhe um golpe fatal.
- Doutor, a casa do Barão, você viu o estado? Quando não cuidamos do nosso patrimônio, as coisas tendem a desabar. O nosso endereço é ...
O psicólogo tremeu as pernas. Estava confuso; seu mundo de segurança acabara de desabar. “Afinal, o que é isso tudo?” Pensou o moço, filho de Aracaju. Ele nunca mais havia tido crises. Como psicólogo sabia que estes distúrbios são geralmente acompanhados de mudanças de comportamento e humor. As dissociações mentais não provocavam nenhuma alteração no seu quadro geral após o término do fenômeno. Ele era, então, uma pessoa normal. Contudo Felipe não pensava assim. “Barão de maruim, Mulher na Rua Siriri, telefonema louco, mundo louco. Será que estou louco?” Pensou o rapaz do São José.
Realmente, o mundo é louco. O que é normal? Quem tem a régua para delimitar o limite entre a loucura e razão sana? Esfaquear alguém e esquartejar o corpo seria um ato somente moral? Arrastar uma criança presa a um carro até desmembrá-la arrancando-lhe a epiderme é somente um ato putável? Atirar nas ruas cheias de gente sendo um policial ou não é racional? Portanto normal? O velho Joaquim sempre nos falou assim: “O mundo cria seus bichos, seus fantasmas, seus loucos; é uma expiação a vida na terra”. Felipe resistiu por dias, finalmente, contou tudo a Márcia.
- Márcia, quando eu era criança eu tinha surtos autistas. As coisas e as pessoas ficavam em outro plano para mim. Eu estava em meu mundo. E o mundo lá fora era como que não existisse. Então meus amigos apareciam. Lembro-me muito bem dos três homens que me visitavam todas as noites e das pessoas que me pediam para cantar pela manhã até elas se acalmarem. Todas elas falavam comigo pelo pensamento. Elas não tinham boca.
- Sempre achei você estranho, mas quem não é estranho no olhar do outro?
Felipe insistiu em sua tese de loucura. “Eu via objetos se movendo dentro de casa, fiquei tão preso a essas fantasias e delírios que quase me tornei incapaz de aprender. Eu não conseguia voltar ao mundo real”.
- Felipe, você conhece a obra de Bachelard?
- Não!
- A realidade é sígnica. As coisas e as pessoas são sentidos. Dormimos acordados o tempo inteiro. Vamos lá, você é que o médico!
- Mas isso não é Freud? Perguntou o rapaz.
- Não apenas ele. A Grécia antiga trabalhou a nossa relação semiológica com o mundo. O mundo dos sentidos, o mundo da linguagem.
- O que isso tem a ver comigo?
- Jung, em sua teoria da sincronização tenta explicar as coincidências. Aqueles fatos que nos ocorrem e não damos a menor importância. Freud os chamava de atos falhos e Jung chamou atos falhos oriundos do inconsciente de complexos, e as coincidências, ele as batizou de atos sincronísticos. Você pensa em alguém e depois a pessoa aparece sem nenhuma relação causal. Isto está registrado na História da Humanidade e, em particular, na História das religiões. Acho que você tem acesso a outros sentidos não muito comum a maioria das pessoas. O que deve ocorrer com você são sentidos oriundos de um outro plano.
- Márcia, fala sério, deixei de ler Jung quando vi que o cara se envolveu com espiritismo e mandalas. O cara pirou. A psicologia verdadeira pauta-se na relação estimulo/resposta, e nas teorias histórico-sociais de construção da subjetividade. As pessoas são construídas de fora para dentro. A mente social é um reflexo do mundo externo.
- Então porque os remédios não fazem efeito? Questionou Márcia.
- Não sei.
- Sabe o que eu penso. Acho que deves ir a casa desta mulher e ver com os seus olhos o que acontece. Eu irei com você, meu bem.
Eles fizeram amor muitas vezes àquela noite. A moça se pôs como refrigério a angustia de seu namorado. O passado dele havia voltado, e desta vez com muita força. No dia seguinte, um dia de sábado, Felipe dirige seu carro um pouco tenso e Márcia está ao seu lado. A Atalaia é um bairro distante do São José. A casa da senhora enfermada parecia casa de novela. Havia um portão enorme todo de madeira talhada como antigamente faziam os barões de Sergipe. Ao entrarem viram a imensidão, e o luxo da propriedade. Havia um jardim muito lindo antes da garagem que ficava na extremidade final do terreno. A entrada da casa tinha batentes, todos cheios de vasos com flores bem cuidadas, os batentes eram do mais puro e caro mármore. Dona Juçara era uma senhora que perdera seu marido muito cedo. Parece que o filho de Deus não gerava filho. Dona Juçara gozava da mais estimada reputação entre os seus. Ela estudava a doutrina de Kardec e fazia reuniões de orações pelos vivos e pelos mortos antes de adoecer. Hoje já faz dois meses que ela sofre. O casal foi recebido por uma moça fumando um cigarro com muito gosto.
- Bom dia, podem entrar. Sintam-se a vontade.
Felipe e Márcia entraram na sala da casa. Sentaram-se e aguardaram a moça voltar com dona Juçara.
Esta é dona Juçara! Disse Leiliane. Leiliane sabia de tudo de dona Juçara. Ela como se fosse uma filha. Felipe e Márcia olham com piedade para dona juçara. A mulher estava em estado mórbido sobre uma cadeira de rodas. Ha três semanas ela teve uma recaída e não voltou mais a andar. Felipe pergunta:
- Em que posso te ajudar. Sou médico, posso levá-la a um especialista.
- Acho que o problema dela é outro, ou os dois; não sei. Ela dizia que sentia presenças, ouvia vozes e sentia-se muito cansada. Então sonhei que eu estava na Rua Siriri e passava por mim um jovem; não conseguia ver seu rosto, mas sabia que iria comigo até em casa. Outro dia sonhei que eu trabalhava no hospital Cirurgia e me pediram para telefonar para a sala de cirurgia. Liguei várias vezes; ninguém respondia, mas eu sentia que havia alguém lá.
Bem, não sei então o que eu posso fazer por vocês. Não trabalho com hipnose. Trabalho com medicamentos e dinâmicas. O estado mórbido da dona Juçara pode ter causas neurológicas. Aconselho fazer uma série de exames.
Moço, tudo que eu quero que é o senhor tire os sapatos e ande pela nossa casa. Felipe tirou os sapatos, tirou as meias, levantou a borda da calça e foi-se pela casa. Todos os quartos, todos os lugares e tocou em seus objetos. Os minutos passavam. O semblante do rapaz tornava-se cada vez mais cansado. Havia muita tristeza transfigurada em pele e músculos, era a silhueta de um passado enterrado, contudo muito vivo.
- Bem, não sinto nada, sinto apenas um cansaço muito grande. Felipe olha para o piso de madeira polida e esmaltada com sinteco e vê marcas de arranhões, como se alguém houvesse tentando cravar as unhas ali. As rosas do jardim em frente à garagem eram muito viçosas. O perfume dessas rosas encheu a sala onde eles estavam e Márcia disse para Felipe.
- Meu amor, vamos ao Jardim! Vamos Leiliane! Dona juçara chorou. Não sei o que houve naquele momento, mas nunca entendi qual a origem daquelas gotas. Pode ter sido algum reflexo fisiológico. Pode ter sido um cisco. Márcia depois me falou que...
- Bem, eu não sou Felipe. Continuemos a estória. Felipe foi até o jardim e com ele sua namorada e Leiliane, a menina que sabia de tudo sobre dona juçara. Felipe caminha com muitas lágrimas em seus olhos voltados para as rosas, parecia aquele menino de outrora na Rua Siriri, aquele menino que cantava para os mortos. “Talvez uma canção possa acalmá-la, irmã! Não foi assim que Davi acalmava o opressor de Saul?” Felipe chorava e depois parou. Ele ouvia um choro fino de menina. Saia de dentro da terra preta no pé das rosas de dona Juçara. O choro aumentava de intensidade, o volume não fazia diferença. Subitamente do meio do nada o rapaz ouve nitidamente uma voz de criança: “Diga a ela que eu a perdou!” Felipe foi para a sala e encontra dona Juçara chorando alto. Felipe a pergunta:
- Você abortou sua filha?
- Sim, mas faz muito tempo. Já está enterrado. E eu a enterrei entre as rosas. Ela era para mim como as rosas. Meu marido não podia saber dessa gravidez, ele era infértil. Ele viajava muito, me deixava só. Até que um dia conheci um jovem, muito bonito o rapaz. Apaixonamos-nos e vivemos aqui dentro dessas paredes um romance muito lindo. Depois ele foi embora, a ditadura o levou para o 18 do Forte.
- Tua filha diz que te perdoa. Dona Joana derrame-se em lágrimas. Levanta-se da cadeira e vai até o jardim. Agora, ela, de verdade, recomeçaria sua vida. Um novo sentido havia surgido dentre rosas e espinhos plantados na terra preta de Sergipe Del Rei. As duas, Leiliane e Juçara viveram até onde puderam. Não deveria ser assim com todos? Márcia e Felipe foram para o Centro Espírita Irmão Fêgo no Siqueira Campos; casaram-se, tiveram filhos, e sempre moraram no São José, perto do hospital Cirurgia, na Rua Siriri.
E eu? Quanto mim?
A estória não é sua.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Pensando com Berkeley I

Olá, caros colegas de leitura! Gostaria de compartilhar aqui um texto sobre o trabalho de um filósofo do século XVII/XVIII que tenho lido nos últimos dias, George Berkeley era o nome dele.

Trouxe este texto por ter achado interessante sua necessidade de se entortar naquela época, pois uma vez cristão e vivendo um momento em que o materialismo ganhava espaço, o filósofo reuniu argumentos anti-materialistas no mínimo apreciáveis...

Locke, em seu Ensaio Sobre o Entendimento Humano, afirma ser a mais eminente distinção entre homem e demais animais a faculdade da abstração, ou, do uso de “ideias gerais”. Aponta, então, como evidência de sua asserção, a restrição ao uso de ideias particulares por parte dos animais, sendo então inexistente, no caso desses, a utilização de palavras ou de quaisquer sinais genéricos.

O filósofo britânico afirmará, ainda, que apesar de todas as coisas existentes serem particulares, as palavras partem de ideias gerais. Eis, pois, uma clara defesa da doutrina das ideias abstratas.

Por sua vez, George Berkeley, em seu Tratado Sobre o Conhecimento Humano, fará uma crítica a tal conclusão, argumentando que as ideias gerais originam-se de várias ideias particulares. A esta assertiva anexa alguns exemplos. Num deles alerta para o fato de que quando afirmamos “tudo que é extenso é divisível”, apesar de estarmos falando da extensão em geral, não conseguimos conceber tal ideia de extensão “sem ser linha, superfície ou volume, nem grande, nem pequena, nem branca, preta, vermelha ou de qualquer cor determinada”. A ideia de universalidade é então deslocada de uma “ideia geral abstrata” e reconhece-se como a relação entre particulares.

Berkeley lança também uma crítica à linguagem. Primeiro, corrigindo um equívoco que parece ser generalizado que é a crença em que cada nome tem um só significado definido e preciso, o que levaria o homem a pensar que só a partir de uma ideia abstrata poderia um nome geral significar uma coisa em particular. O filósofo então objeta esta assertiva, chamando a atenção para o fato de que quando se pensa em triângulo, por exemplo, apesar de sua definição constante “superfície limitada por três linhas”, não há uma especificação acerca da cor ou do tamanhod esta superfície, o que o leva a concluir que “uma coisa é manter constante definição de um nome, outra fazer que ele representesempre a mesma ideia; uma é necessária, outra inútil e impraticável”.

O filósofo segue sua crítica alertando que , tal como na álgebra, em que as letras não precisam sugerir ao pensamento uma quantidade particular representada para que se proceda corretamente, não necessariamente os nomes significativos de ideias despertam no espírito as ideias que deveriam representar. A isto soma-se o fato de que a comunicação de ideias por palavras não é o único fim da linguagem, como o pretende a opinião geral. Para combater esta afirmação o pensador nos alerta para os outros fins da linguagem; “exaltar uma paixão, excitar ou combater uma ação, dar ao espírito uma disposição particular”. Pois mesmo com a omissão de ideias num discurso é possível despertar paixões. Sugere-nos Berkeley; “Não podemos, por exemplo, ser afetados pela promessa de uma coisa boa, embora sem fazer ideia do que é?”. Não pode a ameaça de um perigo bastar para causar pavor, embora ignoremos o ma que nos ameace nem formemos ideia de perigo em abstrato?”.

Alerta-nos Berkeley, ainda na crítica ao fato de uma palavra não necessariamente comunicar a ideia original,ao perigo que surge quando, por exemplo, são empregados os argumentos de autoridade. ”Aristóteles disse isto” pode ser uma forma de afastar o interlocutor de uma discussão através da autoridade que o nome do filósofo antigo impõe, e não necessariamente por que se pensa na ideia da sua pessoa ou em sua obra.
Conclui então o filósofo que se deve afastar do pensamento os nomes ligados às ideias por uso longo e constante. Disto se tiraria vantagens como evitar controvérsias puramente verbais, aperceber-se do acordo ou desacordo entre as ideias etc.
Para o pensador há ideias tanto impressas “atualmente no espírito” quanto “percebidas considerando as paixões e operações do espírito” e ainda “formadas com o auxílio da memória e da imaginação”. O que efetua tais operações, como querer, imaginar etc, é algo distinto das ideias ou objetos do conhecimento (estes que são, por sua vez, coleções de ideias), e chama-se mente, espírito, alma ou eu.

O filósofo seguirá então com o que parece ser a conclusão central de sua teoria do conhecimento, qual seja, ser é ser percebido (esse est percipi). Ora, é apreciável chegar-se a tal conclusão, uma vez que os objetos do conhecimento são nada mais que junções de ideias impressas no sentido, e estas só se podem dar no espírito percipiente. Berkeley se convencerá, desta forma, de que não existe uma realidade fora da perceptibilidade do espírito. A única substância possível é o espírito, portanto.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Superorgânico

Parede inteligível
Uma cor
Tão real como o amor dos deuses
O que existe
Existe sem escalas
Manifesta-se e prolifera-se.

A minha angústia
Parte da espera do outro
Como ser preciso ás necessidades alheias
Sendo um universo em si?
Transcendendo esta complexidade
Falo do alheio sendo extensão desse em si.

Nessa busca inefável
Vão os vários corações transeuntes
Percorrendo o vale do mistério
Do amor, da paz e da guerra
Eis a fobia da linguagem.

Reuel Astronauta.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O PT e as emissoras públicas

Neste texto eu gostaria de falar acerca da postura do PT no que diz respeito à divulgação de projetos culturais e sociais em âmbito estadual nas emissoras públicas de televisão; e a forma como o público, principalmente o público mais popular, se usufrui, se relaciona e se atualiza com as noticias referentes aos projetos culturais e sociais expostos por esses meios.

Para mim, as emissoras públicas ainda mantêm de certa forma um diferencial em relação às emissoras comerciais, e um desses diferenciais está em trazer ao telespectador uma atualização acerca dos novos projetos culturais, assim como entrevistas com profissionais encarregados da produção artística e científica da nossa sociedade, dentre outras coisas.

Porém, qual a freqüência de acesso que a população mais popular estabelece com a programação das emissoras públicas? Eu acredito que quase nenhuma. Primeiro: os cenários de seus programas são claramente inferiores à das emissoras privadas e comerciais, e, infelizmente, no caso da televisão, qualidade visual é de profunda importância para gerar estímulos ao telespectador.

O cenário dos programas televisivos de nível local é horrível. Realmente não há como se ter estímulos em assistir a um programa no qual o apresentador parece que está falando com uma cartolina de fundo como estrutura de cenário. Posso estar enganado, mas se fizerem uma pesquisa, verão que uma qualidade técnica e estética no mundo televisivo é o atrativo mais importante para o telespectador.

O segundo ponto diz respeito à qualidade do sinal. Se nós entrarmos em algumas residências que ainda mantêm a televisão tradicional, veremos que as emissoras públicas praticamente inexistem. Porém, se buscarmos emissoras privadas, veremos que o sinal é quase sempre perfeito. Obviamente que com isso, tendemos a não fazer da programação das emissoras públicas um hábito recorrente em nosso dia a dia.

O outro ponto se refere à programação. Não adianta buscarmos programas que o dito setor “politizado” diz ser bom, se por outro lado continuamos excluindo um público que já se encontra por demais excluído, impondo programas alheios a sua rotina cultural televisiva. Acredito que seja importante buscarmos programas que também estejam vinculados às expectativas culturais dos setores populares.

Acredito que a forma mais inteligente de estabelecer diálogos com o público popular, é dando a ele a possibilidade de escolher a sua programação, ao mesmo tempo colocando outras alternativas de programas com o intuito de fazer com que esse público perceba que existem também outras formas de discursos além daqueles transmitidos muitas vezes de forma rasa pelas emissoras privadas de televisão.

Para mim, apesar de todas as lacunas que o PT ainda possui, acredito que a sua proposta política de certa forma tem possibilitado alguma melhora em muitas questões que até então não haviam sido aperfeiçoadas nos programas políticos anteriores, porém, acredito que ainda existe um divórcio muito grande das emissoras públicas principalmente com os setores mais populares da sociedade.

Se insistirem na falta de qualidade visual, na precariedade dos sinais das emissoras e na programação de uma cultura praticamente exógena ao cotidiano popular, e, portanto, nada estimulante até mesmo para um público dito não-popular, mesmo que as emissoras públicas tenham interesses em divulgar nossas produções para a sociedade, tudo que for divulgado não fará parte do conhecimento e do interesse de boa parte da nossa população.

Do olhar do Voyeur à apropriação do Desejo

Antes de ser apenas uma alternativa para o entretenimento, o cinema é um meio instigador de uma das nossas atitudes mais peculiares: o prazer que temos em observar. Ver o que se estar nas telas parece incitar o olhar sobre o Outro (personagem) como objeto de desejo, onde o espectador encontra-se imerso no espaço propício para observar, como se estivesse espiando pelo buraco da fechadura, oculto na sala de exibição.
Logo, o Outro é tomado pela erotização do olhar do mero espectador que se torna um voyeur por constituir a percepção visual como principal via para aquisição do prazer, do desejo desse Outro que está sendo observado. Assim, como argumenta Machado (Pré- cinemas & pós- cinemas, Campinas, SP: Papirus, 1997), o “pecado original” do voyeurismo está na base do próprio dispositivo técnico do cinema, está nas máquinas de espiar através de buracos, fendas ou visores, está nas salas escuras, onde se pode refugiar para ver sem ser visto.
Desse modo, podemos perceber que aproximação da câmera como dispositivo de aumento se torna essencial para a ampliação visual na tela cinematográfica, atribuindo ao espectador um olhar refinado do detalhe no seu processo de observação. A partir dessa estratégia de esmiuçar o detalhe, pelas lentes de aumento da câmera, o espectador não se dá conta de que seu olhar está sendo conduzido pelo Outro (câmera) e sendo despertado pelo constante interesse em espiar devido às sensações de desejo que lhe é provocado por esse Outro que está sob foco.
Em termos psicanalíticos, o olhar tem uma significação sexual, pois o desejo do Outro é o desejo do corpo do Outro, do olho do Outro; é o olhar que o sujeito teria, um dia encontrado e, logo, perdido: o olhar da mãe. Como argumenta Bichara (O olho e o conto: as pulsões fazendo histórias, Barbacena, 2006), a ausência do olhar da mãe é a denúncia da falta do desejo. O bebê, antes mesmo de se ver no espelho, já é olhado pela mãe. Assim, o olhar é, então, apelo ao Outro, um apoio do desejo do Outro e, por estar perdido, será sempre procurado, o que o torna um veículo para o estabelecimento de laços entre os sujeitos. Mas, para atender sua função de objeto erótico, o olhar surge no olho. O Outro, o objeto, aquele que ele agarra, que não pode somente ver: é preciso que se olhe com uma conotação do desejo.
Diante dessa necessidade que o olhar apresenta, o voyeurismo se expande além das telas cinemáticas, sendo cada vez mais incentivado pela cultura contemplativa do visual. Como define Stam (Introdução à teoria do cinema, Campinas, SP: Papirus, 2003), a cultura visual centraliza a visão e o visual na produção de sentidos, na estruturação das relações de poder e na configuração da fantasia em um mundo contemporâneo na qual a cultura visual “não é apenas parte de seu cotidiano, ela é o seu cotidiano”- termo empregado por Mirzoeff (1998).
Logo, a cultura de massa explora essa condição do olhar erotizado, não apenas sobre um Outro, mas em objetos que são voltados para o consumo. Desse modo, o ato de consumir torna-se um principal sintoma da contemporaneidade, causado pelos excessos de estímulos visuais. A partir dessa concepção, Baudrillard (Sociedade de consumo, Lisboa : Edições 70, 1995) afirma que novos lugares se multiplicam e se fragmentam, anunciando que todas as formas de gozo estão permitidas, ao mesmo tempo em que oferecem e determinam em seus objetos descartáveis a promessa de uma felicidade contínua, embora fugaz e passageira.
Com o incentivo tecnológico, os objetos são produzidos para oferecer novas significações de prazer para o homem moderno de modo que esse possa ir além do campo de observação: apropriando-se do desejo no qual ao voyeur cinemático não foi concedido.