Ratificando as ideias do texto intitulado “De ler Kant a ter nádegas a declarar” que postei neste blog em 2010, ainda penso que a música deva ser apreciada à base do “tempo pra tudo”.
O motivo desta postagem, confesso, é levantar possíveis questões contrárias ao meu posicionamento, para que eu possa me situar, talvez, mais coerentemente em relação a minhas opiniões acerca de algo tão presente em minha vida - a música.
Em primeiro lugar, não nego que em minha cabeça não haja classificações entre o bom e o ruim. No entanto, além de tal classificação estar em um feliz processo de mitigação, consigo me emocionar sinceramente com músicas de vários estilos, dos mais aos menos prestigiados socialmente. A coisa tem se deslocado, portanto, do plano do gênero musical, para o de cada música tomada em particular.
Mas voltando à ponte com o texto supracitado, um argumento que não esteve presente neste é o de que a arte deve necessariamente ter uma função revolucionária. Isto é muito difundido por alguns higienistas partidários. A minha resposta a priori a esta ideia é simples: se Fernando Pessoa a levasse a sério, sua obra provavelmente não existiria, e centenas de milhares de pessoas não teriam a sensibilidade contemplada e se obstaria até mesmo inúmeros processos de sublimação.
Lógico que se formos considerar a revolução como um deslocamento profundo em relação a um determinado sistema. Pois se, ao contrário, tomarmos tal termo de forma geral, temos que qualquer música pode instigar uma revolução ou outra. Ao ouvir uma letra da banda Harmonia do Samba, deixando, por exemplo, de enxergar a sexualidade para os que são mais afetados pela obra de tal banda com os meus olhos e passando a encarar tal realidade com os daqueles, aconteceu uma revolução no meu olhar. Talvez exemplos a mais, neste sentido, não se façam por ora necessários.
Atendo-me ainda à questão da função social da arte como libertária, revolucionária etc., encontramos mais outro problema que diz respeito a quando o artista se utiliza de sua imagem pública para interferir na realidade social. Afinal, é bem verdade que nas letras de Xanddy, vocalista da já citada Harmonia do Samba, não encontramos nenhuma crítica ao capitalismo. Contudo, seu envolvimento efetivo com o Grupo de Apoio às Crianças com Câncer já salvou a dignidade de muitos infelizes. Aqui é bem fácil para qualquer cretino dizer “é só fachada”, sobretudo quando não se esteve esperando por cirurgias urgentes ou economicamente inviáveis que só se fizeram possível porque alguém ouve Harmonia do Samba, dando a Xanddy o prestígio necessário para que este capte os recursos e devolva a dignidade a muitas crianças acometidas. Estas, aliás, talvez não viverão até que o “sistema mude”.
Enquanto isto muitos representantes da “alta cultura” estão produzindo do alto de seus gabinetes para uma audiência voraz em determinar o que é válido ou não culturalmente.
Um país que gosto muito de tomar por exemplo é a França, por motivos de ligações já diretamente efetivas com este. O país em que vi uma criança de mais ou menos cinco ou seis anos identificar elementos como perspectiva num quadro de Van Gogh é grande consumidor de músicas carentes de alto teor de politização. Deixo como exemplo o gigantesco sucesso há algumas décadas de Mirelle Mathieu. Nem por isto a nação deixa de apresentar um alto grau de politização, um IDH elevado, casas de óperas de séculos atrás sempre cheias, patrimônio cultural valorizado etc.
Porém, gostaria de ratificar mais uma vez o que propus no final do texto citado no primeiro parágrafo deste. Quando falo em tolerância, estou direcionando aos vários extremos da realidade. Dos que estão só preocupados com o molejo aos que estão só preocupados em discutir o sistema. Afinal, eu arriscaria afirmar que se abrisse o porta-malas do meu carro e jogasse Rage Against the Machine num bar em que há semanalmente um arrocha ao vivo, certamente seria hostilizado.
Josua,
ResponderExcluirAntes de tudo eu gostaria de dizer que música é circunstância. Obviamente que em se tratando de contextos privados, temos mais interesses em ouvir tal música a tal música.
No que se trata de teor revolucionário, eu não entendo o porquê de nós associarmos a revolucionário apenas aquilo que refute uma macro conjuntura política e econômica. Escandalizar os valores morais é profundamente importante para o requestionamento das "verdades" culturais, e por isso mesmo, é revolucionário. Essas musicas de roda o rabo gostoso pra lá e pra cá, a partir do momento em que estão sendo criticadas por algumas pessoas, é sinal de que elas estão rompendo e desestabilizando um sistema que até então se encontrava preguiçoso em suas conveniências. Revolucionar não é falar de revolução. Revolucionar é provocar uma desestabilização e uma alteração nos valores politicos, econômicos, morais, sem necessariamente precisar expor que está preocupado em mudar o mundo ou ter um projeto para tal.
Enfim, sei que isso é pano pra manga, mas eu recomendo que quando você puder, leia dois artigos meus publicados no Cinform: " Tecnobrega: o underground convencional" (acho que é esse o título) e " Besteirol e engajamento musical" (inclusive eu publiquei esse texto aqui no torto também se não me engano).
Agora fiz um comentário pro autor certo né? hehehe
abraços
Obrigado pelas ótimas observações, caro amigo!
ResponderExcluirVina,
ResponderExcluirÉ por isso que eu não sou revolucionário, e nem faço apologia. Eu gosto de ordem e de progresso.
Vejam essa sequência como exemplo:
Estrutura (1): 1 1 1 0
Revolução (0) da Estrutura: 0 0 0 0
Reforma da Estrutura: 1 1 1 1
O que é mais fácil? Por isso concordo com Caio Amado e já pensava assim: uma revolução só é possível (e necessária) quando se está num caso crítico:
Estrutura (1): 1 0 0 0
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Josué,
Eu discordaria da questão do câncer: com um Estado eficiente, não precisaríamos ouvir música leprosa para curar leprosos; mas como vivemos numa estrutura em que o Estado é representativo, isto é, tão ineficaz que beira a inutilidade (se tomarmos por critério uma comparação com os wellfare states do norte europeu), acabo tendo de concordar que os paliativos reformistas de segunda categoria são mais úteis que nada.
Se o Estado fosse eficiente você não precisaria ouvir música leprosa pra curar leproso?
ResponderExcluirNão entendi nada, querido. Explique melhor...
"acabo tendo de concordar que os paliativos reformistas de segunda categoria são mais úteis que nada."
Se você se referiu às ações de Xanddy, de fato, é muito fácil considerá-las paliativos de segunda. Sobretudo se não se está esperando um transplante de globo ocular...aehehahehueaahuehu
Mas enfim, o que deve valer são as músicas sadias, estas sim mudarão todo o sistema e farão o Estado funcionar (ou não existir)...aehueahueahuehuehu
Em tempo: o wellfare state é também uma espécie de paliativo. Sua ideia inicial seria a de um "marxismo enquanto a revolução não vem"...hehehehe
ResponderExcluir"Se o Estado fosse eficiente você não precisaria ouvir música leprosa pra curar leproso?"
ResponderExcluirOuviríamos por diversão ou prazer. Claro, concordando que suas letras só são ouvidas pela maioria por não dizerem muito, obrigando-o a realizar ações práticas compensatórias, talvez como tentativa de justificação moral.
"é muito fácil considerá-las paliativos de segunda. Sobretudo se não se está esperando um transplante de globo ocular"
Ótimo, você fala pelos que recebem a bendita ajuda, eu falo pelos que não. Quer apostar como, ao menos estatisticamente, possuo algum parâmetro para dizer que é uma ajuda irrisória-ainda-que-melhor-do-que-nada?
"o wellfare state é também uma espécie de paliativo."
Para um marxista, sim.
Josué,
ResponderExcluirParabéns pela mensagem e me permito utilizar o terreno que você preparou:
Tomando como base o seu último parágrafo, onde cita a atitude hostil em relação à sua preferência musical, gostaria de ir um pouco mais além e conduzir o debate para um cenário mais amplo. Então, a partir de agora não falemos mais apenas de gêneros musicais, e sim de tudo o que pode funcionar como um instrumento separatista entre os seres humanos: nações, línguas, ciclos sociais, gêneros musicais, religiões, etnia...
Seria o ser humano capaz de conviver com a diversidade? Embora não seja o usual, eu acredito que sim. Pois, por que deveríamos estar o tempo inteiro nos preocupando com o outro? Não poderíamos apenas observar, e nos tornar meros observadores do fato sem tentar de alguma forma analisar o fato observado? Não seria essa forma uma maneira mais simples de estar em qualquer situação, inclusive aquela na qual coexiste outro ser numa outra situação?
Meu grande questionamento é: por que julgar se todo julgamento é formulado pelo nosso Ego, haja vista que o mesmo não é perfeito? Logo, estaríamos julgando algo de acordo com base no que “acreditamos” ser o correto...
Não acredito então que caiba, assim como em qualquer outra, nesta situação a possibilidade de julgamento de gêneros musicais. Assim como acho inviável e irracional a atitude hostil para com esses.
Arte é arte independente da sua finalidade, se revolucionária ou não. Música é música. Por exemplo: você pode não gostar dos quadros de Monet, mas pode amar os quadros de Picasso. Mas existe uma justificativa, que não irracional (se deixar tomar pelos reflexos do instinto), para hostilizar os quadros de Van Gogh ou os riscos incertos de um desconhecido, e dessa forma os negar como arte?
"Mas existe uma justificativa, que não irracional (se deixar tomar pelos reflexos do instinto), para hostilizar os quadros de Van Gogh ou os riscos incertos de um desconhecido, e dessa forma os negar como arte?"
ResponderExcluirPenso que pode, também, haver parâmetros altamente racionais para a hostilidade, ainda que porventura tendenciosos. De toda maneira, o que é inegável é que há critério e classificação: isto é arte, aquilo é ciência, aquilo outro é religião; mesmo que tão somente como forma de organização do pensamento. Dentro dessas e entre estas classificações (ou subclassificações), findamos a escorregar quando imputamos um julgamento: decai na hierarquia, no maniqueísmo...
Vinícius sempre diz: ainda que pensemos ser o certo nos abster de hierarquizações e classificações, inevitavelmente as faremos, por sermos humanos e transferirmos, reféns da cultura apreendida ao longo da vida, valores às coisas.
"sermos humanos e transferirmos, reféns da cultura apreendida ao longo da vida, valores às coisas."
ResponderExcluirE é aqui que valido o meu argumento, Lou: seria realmente necessário o ser humano julgar, atribuir valores, à tudo? Não poderia apenas observar o fato e aceitá-lo como tal, haja vista que, como você mesmo disse, esses julgamentos e esses valores são "reféns" duma cultura apreendida?
É, velho. Eu tenho a ideia de que há um abismo entre teoria e prática. Mas há sujeitos sublimes que conseguem pôr em prática (ao menos externamente). Geralmente, o que percebo é contradição: mesmo Jesus, num ímpeto anarco-punk, saiu bagunçando os estabelecimentos comerciais instalados em frente ao templo.
ResponderExcluir“Ótimo, você fala pelos que recebem a bendita ajuda, eu falo pelos que não. Quer apostar como, ao menos estatisticamente, possuo algum parâmetro para dizer que é uma ajuda irrisória-ainda-que-melhor-do-que-nada?”
ResponderExcluirClaro. Seu discurso é igual ao de um antigo colega meu que considerou a redução no número de mortes por arma de fogo insignificante desde que foi adotada a lei do desarmamento na Jamaica. Daí, dado que só tinha havido uma redução de 0, alguma coisa, a indústria deveria continuar funcionando a todo gás. Só que, para mim, vidas não são quantificáveis à medida de coisas. Portanto, um já é demais. Mas são questões de valores, e isto é muito cansativo de se debater.
“"o wellfare state é também uma espécie de paliativo."
Para um marxista, sim.”
Não é simplesmente esta a resposta. O wellfare state foi PENSADO como um paliativo (Depois peça explicações a Caio, que ele lhe te ilustrará brilhantemente isto). Aliás, é um estado que já passou por uma grande crise nos anos 90 e que apresenta problemas até mesmo em nações mais homogêneas e extremamente pequenas (que é onde ele ainda continua de fato funcionando), embora ricas, como é o caso dos países que você citou.
Caro Israel,
ResponderExcluirAgradeço muitíssimo pela instigante participação,mas são colocações sem respostas muito sintéticas. Concordo com muitas destas ideias, mas prefiro instigá-las no campo da tormenta pessoal mesmo, sobre o travesseiro...kkkk
Abraço!
Ah, Lou!
ResponderExcluirE eu concordo que o Estado deveria dar conta de tudo isto. Sim, concordo.
Só que, enquanto o massivo Justin Timberlake tá doando uma fortuna à caridade, o Rage Against the Machine não mudou porra nenhuma na conjuntura de seu país (apesar de ser uma banda com inúmeros seguidores) e ainda fica com hipocrisia de querer tirar a parte VIP da plateia, porém, andando na classe executiva nos aviões! eahuaehaehuahuahuaeu!
Abração!
É Josué, você retificou depois com o que eu argumentaria.
ResponderExcluirQuanto à questão do wellfare ser um paliativo ou não, conhevenhamos que não poderia ter sido tomado assim por um neoliberal, mas por quem percebesse no Estado um valor maior do que, em última instância, percebia Keynes, por exemplo, qual seja, um marxista ou do que daí derivasse.
Ok. Brigado pela participação!
ResponderExcluirIsrael,
ResponderExcluirAceitar o fato como tal não é uma forma de se dar valor a algo? Pelo menos para mim a aceitação já é um valor.
É. Na realidade, é isto mesmo, caro Vina. Só se age elencando valores...
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