sexta-feira, 1 de julho de 2011

Epitáfio

Derrotado pelas circunstâncias naturais impostas por um destino trágico, delirou e foi mau para si mesmo enquanto pôde. Imbuído, como os seus, de pretensões humanas, também arquitetou sobre as misérias do corpo bosques e castelos. Jamais atentou contra a integridade física de quem quer que fosse, a não ser contra a sua mesmo, quando ansioso não sucumbiu ao receio de afundar as unhas na pele dos braços e da barriga, nem nunca desejou tirar a paz de quem estivesse sossegado. Muito mais do que um capricho do estilo, se falou com o vigor áspero subjacente à prosa dos moralistas ascéticos, o fizera opondo-se àqueles que tentaram tornar os desvarios pessoais um dispositivo generalizante, a fim de impedir a ascensão do sono e da preguiça de quem nasceu impossibilitado para o ânimo. Não tivera em vida sentimentos elevados nem família - abjeto como os cães que são chutados enquanto repousam indefesos nos beirais encardidos e mijados das ruas, mantivera-se à mira dos pés da racionalidade durante anos insossos, gozando o prazer dos safanões constantemente recebidos. Orou, vislumbrando o espetáculo do sol tórrido nascendo a um lado previsível do globo terrestre, a todos os infortúnios da natureza, pedindo explicações à amplidão disposta frente aos seus olhos imberbes sobre o porquê dessa trapaça cósmica toda. Esteve senão aos cantos, intercalado entre a incógnita e o desespero, procurando sempre repousar à sua própria sombra. Como qualquer homem, comeu, bebeu, excretou e, no amor, fora poucas vezes correspondido. Na falta do que fazer, como se não quisesse padecer ao tédio, praticou diariamente a dúvida.

5 comentários:

  1. Um retrato nítido de nossa miserabilidade. Afinal, o que é ser humano, senão isso que bem colocou o nosso maldito. Quem ousa negar essa dimensão triste de nossa historicidade. um texto para muitas questões. Seja benvindo Maldito!

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  2. Brilhante! Bem-vindo, gêniozinho da literatura. =D

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  3. João,

    Pois é cara, esse é o grande mal de quem se inquieta com os olhos, com a mente e com o cosmos. Esse humano que você expôs, só o que fazia era sofrer para ele mesmo por captar em suas indagações o porquê dessa trapaça cosmica toda. Como em geral esse tipo de humano não encontra outros dos seus para compartilhar tamanha grandeza e complexidade desse jogo, isola-se e se põe a encontrar sentidos, mas quando os encontra são óbvios e por desconfiar do óbvio, volta-se para sua busca e para sair desse tédio de buscar e se perder, alimenta-se novamente de suas duvidas.

    Seja bem vindo.

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  4. Valeu, pessoal.

    Sua resposta é bem existencialista, Vina, e penso da mesma maneira que você.

    Abs

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  5. Sina de um filósofo. Ótimo texto.

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