Apesar de eu reconhecer a dificuldade de se delimitar com clareza o que venha a ser brega, eu não nego algumas características que de certa forma geram uma definição, mesmo que não consensual, do que seja esse estilo de ser. Falo isso, pois é muito comum ouvirmos as pessoas dizerem que o cantor cearense Falcão é brega, mas para mim ele não é. Para isso eu vou trazer algumas diferenças que eu noto entre o brega e o que se classifica como kitsch.
O kitsch surge em meio a sociedade de consumo na Europa. Porém, essa sociedade, apesar das distinções de classe, possuía um público com melhor poder aquisitivo. Já o brega surge também na sociedade de consumo mas em uma conjuntura subdesenvolvida onde não haviam consumidores com poderes aquisitivos suficientes para a compra. Enquanto o kitsch é a tentativa dos setores médios copiar a elite; o brega é a tentativa dos setores periféricos copiar a elite.
Pelo fato do kitsch ser a cópia produzida pelos setores médios, esses setores por terem mais prestígio social pelo seu capital cultural e escolar, tendem a fazer da cópia uma forma de criticar a própria elite. É por causa dessa necessidade de ironizar que eu acredito que o riso no kitsch vem de forma proposital.
Já o brega é o risível sem intenção, visto que a sua conduta provoca risos pela própria condição social de seu público, não por que ele procura provocar esse riso. Por não ter capital escolar devido à própria precariedade de vida e a falta de uma educação de qualidade, muitas vezes esse público não possui o interesse da crítica como o kitsch, e sim, simplesmente o sonho de atingir o prestigio da elite.
O kitsch, apesar de repercutir no sonho do consumo, por ter sido apropriado por indivíduos com acesso à educação de qualidade, terminou por se tornar uma expressão estética marcada projetos e por elaborações filosóficas. O kitsch assumiu uma postura tão crítica que ao expor uma estética marcada por excessos de objetos, quis representar o excesso das futilidades dos objetos na sociedade do consumo, por exemplo. Já o brega se apropriou do excesso em suas vestimentas e comportamentos por mero reflexo de grandeza estimulada pelo consumo.
É por isso que eu acho que Falcão não pode ser classificado como um representante do brega. Em se tratando da vestimenta, é notório que o interesse de Falcão é querer criar uma marca. Ele está muito ciente de que aquele tipo de roupa não é uma roupa comumente usada nas ruas. A forma como ele se veste representa uma brincadeira com o excesso, com a grandeza, com os objetos colocados arbitrariamente em um lugar, com a quantidade, com o excesso de imagens tão adorados pela sociedade de consumo.
Se observarmos a vestimenta dos artistas classificados como bregas, por exemplo, veremos que muitas vezes suas roupas condizem com o seu estilo de ser. É um tipo de roupa que não beira uma fantasia. Se essas roupas provocam o riso, é devido a uma combinação que nós podemos achar de péssimo gosto, não por que houve um interesse de provocar o riso nas pessoas. Diferente das combinações nas vestimentas de Falcão, essas roupas muitas vezes não buscam provocar o riso proposital.
Outro ponto que eu percebo claramente o lado não-brega de Falcão é a sua relação com o seu discurso. Quem já assistiu a uma entrevista sua, nota claramente o seu excesso de conhecimento. Diferente da maioria dos artistas bregas, ele possui um capital escolar e cultural. Nota-se que os argumentos de Falcão possuem uma linguagem nem sempre convencional. Sua forma de ver as coisas se apresenta de forma mais teórica assim como a forma de ver o mundo do kitsch.
Se observarmos as entrevistas de outros artistas classificados como bregas, veremos que os seus discursos possuem claramente uma linguagem simples, muitas vezes carentes de grandes elaborações, sem palavras incomuns ao nosso repertório vocabular, etc. Isso se deve ao fato do brega ser espontaneamente proveniente dos setores periféricos, setores carentes de maiores acessos à educação de qualidade, de um maior acesso a informação mais formativa.
É nítido que o interesse de Falcão está em trazer temas que consideramos bregas, no entanto, ele tem o intuito de ironizar o próprio brega, buscando achar palavras que pareçam soar ridículas e não apresentar aos nossos olhos um discurso naturalmente brega. Para mim, apesar de ser polêmico qualquer tipo de classificação, ser brega é se postar de forma que não implica em mostrar que é brega; ser kitsch é uma forma de brincar com o ser brega, e é isso que para mim Falcão faz.
Exato! Concordo com tudo e sempre tive visão similar: ele não era brega de fato, mas alguém tirando onda com o brega através do hiperbólico, como notou. Parabéns.
ResponderExcluirIsso equivale a dizer que Nietzsche não foi um ateu ou que Dostoiévski não foi um cristão. É tirar da boca do autor o rótulo que ele deu a si mesmo. E, se levamos em consideração o teor da argumentação de Falcão para reconhecermo-lo enquanto um artista Kistsch e não brega, o ponto que você levanta sobre a convergência temática de músicas bregas e de músicas elitizadas se invalida, uma vez que o "ser brega" requer do diletante certa ignorância ao passo que os autores de músicas elitizadas, mas que abordam questões do cotidiano de maneira mais polida, sempre demonstram trabalhar mais o seu discurso. Ou seja, o uso da linguagem cria hierarquias.
ResponderExcluirJoão
ResponderExcluirEnfim, eu bem que sabia que a coisa iria chegar a essa especulação. Veja: em nenhum momento eu disse que o brega possui discursos parecidos com as músicas geralmente mais consumidas pela intelectualidade. Quero que alguém me mostre se alguma vez eu falei sobre isso. No entanto, e isso eu sempre fiz questão de mostrar, é que a música brega é geralmente proveniente dos setores populares e é nesse setor que ela encontra com maior frequência o seu público-consumidor. A partir daí, não é preciso ser muito inteligente para se saber que o setor popular sofre com diversas formas de exclusão e uma dessa exclusão se refere à falta de acesso a uma melhor educação e a um conhecimento mais formativo.
Acredito que a hierarquia do discurso decorre da desigualdade do acesso que cada setor tem diante em relação à informação. Eu mesmo sempre disse que uma das caracterisiticas que definem o que pra mim é ser brega, é a simplicidade do arranjo e do discurso. Óbvio que para o meu cotidiano o discurso de Barto Galeno soa muito mais simples e muitas vezes bobo, uma vez que em meu ciclo social e nas informações a que tenho acesso, o vocabulário extrapola a linguagem cotidiana. A minha critica se faz quando o ouvinte não adepto do brega trata esse musica como inutil, como um lixo só por que não atende as suas expectativas elitistas e prepotentes.
"Isso equivale a dizer que Nietzsche não foi um ateu ou que Dostoiévski não foi um cristão."
ResponderExcluirEquivaleria, também, a dizer que um ateu vestindo uma bata é um cristão?
Caro Vina,
ResponderExcluirAlém de concordar com os argumentos, gostaria de parabenizá-lo antes tudo pela prazerosa aula tanto sobre o Kitsch quanto sobre o Brega.
Parabéns, caro amigo!
Não equivaleria. Dostoiévski nunca se vestiu de ateu e Nietzsche nunca se vestiu de cristão. Se eu estiver errado, cite-me algum comentador ou trecho da obra de ambos os autores que me contradiga e esclareça. No mais, não pude apreender exatamente a relação feita por você, Lou.
ResponderExcluirTalvez tenham sido pontuais os pontos que você levantou, Vina.
O que eu quis dizer foi que a relação de Falcão com o brega NÃO É SIMILAR às relações que estes escritores possuíam com suas opções de crença. Se não há contradições em ambos que nos faça questionar suas respectivas opções de crença, há em Falcão diversos detalhes, como elencado pelo autor, que nos fazem questionar a classificação de sua representação estética tal como brega.
ResponderExcluirSerá que ele bebe da guarda?
ResponderExcluirOra, Dostoiévski, embora cristão, fez com que um de seus mais consagrados personagens tecesse um libelo ao crime. Está lá, em Crime e Castigo, mais ou menos na metade do livro. Elegendo esse aspecto, eu poderia defender as teses mais estapafúrdias sobre o russo, ainda que ele tenha morrido se dizendo cristão e tenha direcionado as suas obras pelo mesmo caminho, mostrando-se constantemente um cético em relação a sociedade, de tal forma que sempre lhe pareceu mais elegante crer em Deus do que na ciência ou no homem. Ou seja, uma leitura tendenciosa das Dostoiévski pode sim ser feita, embora haja em todas elas algo de claro e convergente. É o mesmo que dizer que dizer do marxismo uma filosofia cristã, como se Marx tivesse dito para nos vertermos ao pés da virgem ou como se Jesus nos tivesse dito que a religião é o ópio do povo. O que quero dizer é: deixem o cara ser o que ele diz que é. Eu ficaria muito triste se dissessem que sou um "objetivista" pelas costas.
ResponderExcluirEstamos falando de enquadramento estético, não de opção religiosa. Embora Dostoiévski seja cristão, ele muito provavelmente não se enquadre no padrão estético de um cristão. Se, secretamente, o autor acima fosse um ateu inveterado e tivesse criado uma literatura que o afirmasse cristão tão só por contravenção, por sarcasmo, não teríamos como identificá-lo. Eu coaduno com a afirmação do Vina apenas pelo que vejo, não pelo que suponho intimamente acerca da subjetividade do humorista Falcão.
ResponderExcluirNão me ative a esse detalhe. Concordo, então, que Falcão é Kitsch.
ResponderExcluirMas entendi o que disse e acho, também, pertinente.
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