sexta-feira, 15 de julho de 2011
Poema reflexivo a Alberto Caeiro
As nuvens e o sol, que legam ao poeta inspiração para centenas de estrofes sem sentido, acumularam nas alturas a verdade mais diversa e intrínseca aos mesmos, silenciando para as coisas situadas abaixo deles a menor palavra que pudesse revelar fiapos que sejam da sua importância; assim, além da cor e das propriedades que lhes são externas, além da distância e das sensações que causam, foram subtraídos do meu poema estes dois objetos do alto, porque o mistério que lhes envolve a matéria os tornara fecundos demais para serem traduzidos em palavras. Subtraí também deles, naturalmente, as estrelas, e a inexpressão do brilho por que as chamam belas, e ainda a lua em razão da qual os nostálgicos admiram a noite. Excisei dos meus poemas, portanto, as coisas que não compreendo, cujas substâncias não as posso distinguir pelo tato e pelo cheiro, e cujas verdades serão a mim sempre indistinguíveis. Arranquei dele a tessitura da rosa mencionada ao descrever a pele lânguida da mulher por quem eu me apaixonara, remoendo nos nervos horas puramente satânicas, ansioso pelo logro estético – uma por uma, a exemplo de um jovem que brincasse de malmequer, cortei-lhe todas as pétalas coloradas, o perfume doce por vezes citado, a humanidade em si inexistente, e conservei-a unicamente flor, sobrando na página dos versos apenas mãos, sêmen, suor, cabelos, corpo,... os cebídeos atavios. Não expus meus sentimentos acerca do lírico que me impressionara afirmando serem as palavras dele possuidoras de sabor distinto e acurado; elogiei-lhe o estilo valorizando a perfeita musicalidade de suas frases sem alma, arranjadas sem exceção num corpo métrico desordenado, lembrando o que falam os homens obsessos a respeito da liberdade. Olhei sensivelmente as ruas duras e movimentadas da cidade, gozei do asco impregnado nos cantos de suas paredes maltratadas e sombrias; compreendendo as cores diversificadas dos carros, o número variável de pessoas a trafegar pelas calçadas, escusei o atrevimento de meditar o conteúdo subjetivo de seus donos e o espírito incólume dos passantes, respectivamente. Semelhantes empresas das quais, segundo dizem, podem-se extrair grandes virtudes, não cabem mais no meu poema, nas avaliações francas do meu verso, pois são, estando situadas à mesma distância dos astros, realizadas em si mesmas, indiferentes às razões... – objetos de que não se pode apreender nenhum sentido prático. Interessa-me somente, então, o adágio pavoroso dos ruídos manifestados de todos os lados nos horários de ida e volta, os lábios blasfêmicos que confluem as forças nos instantes soturnos, as retinas trêmulas dos velhos observando o presente em paralaxe com o passado, o corpo nu e branco da mulher vitimada pelos sonhos.
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