sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Helena e a cigana

Helena e a cigana



Esta é uma estória não muito difícil de contar, mas com certeza você nunca a esquecerá. Recordo-me de tudo, embora, fosse minha pessoa, naquela época, muito nova. Eu morava em Sobral, no Ceará. Esta estória apavorou a cidade, pelo menos, o povo a comentou por todo o ano de 1924. Em frente a nossa casa morava um português, dono de uma padaria na Rua Aurora. Ficava bem no alto do Cruzeiro, perto da praça Dr. José Tomáz. Na verdade era a única padaria que a cidade tinha. A mulher do português sempre foi muito curiosa e por esta causa se encontrava em missões, como dizia, missões secretas em nome da moral e dos bons costumes para que as famílias de Sobral vivessem a pureza de Jesus. Seu nome era Helena de Lió, o pai dela era conhecido na redondeza como Seu Lió.



Morava na mesma rua uma cigana casada com um caixeiro viajante, este por força de sua labuta, sempre estava ausente. A mulher do português não deixava a pobre cigana viver, e havia jurado ao pé do cruzeiro da igreja que um dia fragraria a maldita no adultério. Dona Helena de Lió nunca desistia de seus objetivos e a cigana nem imaginava o que a aguardava.



Uma terça-feira à tarde chovia muito em Sobral, o ano de 1924 foi de muita água no Ceará. Sobral estava debaixo de um dilúvio; as pessoas presas em casa ou na rua sem poderem voltar. A cidade parou. Alguns místicos disserem na Praça do Arco do Triunfo que era o fim do mundo, e que o Cristo voltaria em forma de mulher, porque assim os homens o respeitariam mais.



Dona Helena caminhava rumo à porta de sua residência quando ouviu a voz rústica do marido babando de raiva:



- Mulher, vais sair neste tempo?

- Sim, vou. Disse ela em tom suave.

- Estás louca, sua desnaturada? Sair debaixo desta chuva? Replicou o velho lusitano.

- Sim, vou. E preciso de teu guarda-chuva. Acrescentou a missionária de Cristo.

- Nem pensar! Como vou à padaria ver as coisas lá? Não senhora. Meu guarda-chuva não!

- Mas, homem, como vou resolver meus problemas?

- Que problemas sua bisbilhoteira, pensas que não sei de tua reputação?



Com isso dona Helena se amargurou e trancou-se no seu quarto até a chuva passar. A danada não queria ir embora. Por volta das quatro e meia da tarde, ela se aquietou tomando a forma de um chuvisco tímido. Dona Helena pensou consigo: “É agora ou nunca”. Caminhou de ponta de pé até a porta da frente, não disse nada ao marido, ouviu apenas o som desconfortável de seu ronco grave, e foi-se à rua.



A casa da cigana ficava no oitão do cemitério dos brancos. Em Sobral havia o cemitério dos pretos e dos brancos. O Ceará é uma terra não muito simpática com o preto, a prova disto está em Sobral, a terra dos separados após a morte. A casa da pobre de Nossa Senhora de Cali, tinha as janelas, duas para ser preciso, voltadas para o cemitério cuja parede baixa dava para sua casa. Dona Helena sabia disto e com certeza usaria essa informação a seu favor. Todas as terças um moço branco de feições finas, olhos claros ia à casa da cigana, entrava pela porta da frente, ficava lá até a noitinha, hora que ele se despedia com um beijo na testa da senhora ainda na saleta de entrada. Helena sabia de tudo. A observava há tempos, contudo, nada podia provar, pois tudo não passava de especulações, era preciso o fragra. Embora as duas morassem na mesma rua, Helena nutria a idéia de observá-la de uma forma nunca feita antes: A visão de dentro do cemitério, a que dá a visão do interior da casa. Esse seria o fragra. Em vez de ficar olhando a casa à distância para ver quem entra e quem sai. Helena decidiu entrar no cemitério sem ser vista. Assim o fez, e logo dentro da terra santa, escondeu-se entra as carneiras de frente à casa da pobre de Cali. Helena disse consigo mesma: “É hoje sua P..., pois todos saberão de sua fornicação!” De repente a mulher do português padeiro escuta um psiu. Olha em sua volta e nada. Uma segunda vez, ela faz o mesmo e nada. Pensou ela consigo: “Será feitiço da maldita, feitiço de cigana?” Enquanto Helena conjeturava sobre os psius, uma forma de homem negro se aproxima de sua figura branca como pó de arroz:



- Você anda muito nervosa. Disse o velho escravo.

- Quem, eu? Você está falando comigo? Continuou Helena.

- Sim, sim senhora, falo com vosmercê.

- Você é real? Não estou sonhando? Disse a pobre Helena tonta com o que estava acontecendo.

- Tome um chá de folha de maracujá, é bom para teus nervos. Disse o velho Joaquim.

- O que fazes aqui minha filha? Continuou o velho com muita seriedade.



Helena estava com medo e não entendia o que estava acontecendo. Mesmo com resistência respondeu ao velho Babalaô.



- Estou a fragrar uma mulher sem fé, sem Deus. Disse ela resumidamente.

- E é filha. Parece que a filha tá muito ocupada com isso, né?

- É.

- Que lugar é esse minha filha? Perguntou Joaquim.

- O moço não está vendo, não! Disse Helena com muita ignorância.

- A filha não vê que os mortos estão descansando? Retornou o velho.

- Sim, é verdade, eles dormem, eu não!

- A filha acha que vai ver algo naquela casa? Perguntou Joaquim.

- Tenho certeza. Falou Helena com muita fé.



Joaquim olhou para a mulher da casa e para Helena e riu baixinho. Quando Helena virou-se para o velho, ele havia desaparecido. “Puxa, que velho rápido. Parece alma de outro mundo”. Falou Helena consigo mesma.



A tarde se amiudava e a noite ganhava forma no horizonte. O jovem havia chegado, com isso Helena dobrou a atenção nas duas janelas. Ali esteve imóvel quase sem piscar os olhos e por isso perdera a noção do tempo. A jovem senhora cigana conversava despreocupadamente com o jovem estranho, enquanto isso Helena roia suas unhas na esperança de um fragrante. Seus olhos estavam atentos às janelas quando ela ouviu um barulho de garrafa de champanhe quando a rolha explode do frasco. Ela virou-se para olhar ao redor e nada viu. Quando retorna sua atenção à janela é surpreendida com um som de chorinho, era “Jurity” de Benedito Lacerda. Helena perguntou-se: “De onde vem este som?” Saiu a jovem senhora de sua posição estratégica seguindo o toque de chorinhos vários como o de “Tocando para você” de Luis Americano. Sua curiosidade aumenta a cada passo. A pobre Helena está agora defronte a um grande Mausoléu que pertenceu à família Lepprevi de Sobral, gente muito grande. Sentada sobre uma lápide estava uma senhora de meia idade, cabelos loiros, pele de seda, e olhos azuis que doíam de se olhar. Sua boca pintada de batom vermelho escuro combinava com sua saia preta e vermelha e com a maquiagem de suas maçãs faciais. As listras eram pretas no todo vermelho do tecido de alto valor comercial. No busto havia uma peça de roupa, era uma blusa que seguia o mesmo estilo da saia. Seus sapatos eram pretos com salto alto. Suas meias eram pretas. Sua mão direita segurava uma taça do melhor champanhe francês e a outra um cigarro preso a uma cigarrilha. Agora quem cantava chorinho era Araci de Almeida, “flauta, cavaquinho e violão” e as duas mulheres se encontraram no cemitério São João Batista de Sobral.



- Oi, moça? Aonde vais? Estás perdida?

- Não, estou aqui, bem, não sei mais. Disse Helena confusa.

- Quer uma taça de champanhe?

- Não, não se meu marido sentir o cheiro me mata.

- Rá, rá, rá, rá. Riu-se a estranha e depois continuou:

- Esses homens são todos iguais. Não achas?

- Sim, bem, não sei, são.

- Tenho uma pessoa que quero que você conheça. Disse novamente a estranha.



Helena estava totalmente atônita e não entendia mais nada. Procurava olhar na direção da casa e não havia mais casa. O cemitério estava iluminado e com um som de chorinho incessante. Agora era a vez de Ernesto Nazareth com “Apanhei-te, cavaquinho”.



- Sabe moça, nós somos mulheres livres, nós duas fazemos o que queremos. Você não acha? Disse calmamente a estranha com a taça de champanhe dando uma tragada no cigarro.

- É não sei, não entendo, o que é isso? Não sei mais de nada, onde estou?

- Está onde sempre estivestes. Este é seu lugar e de todas as outras.

- Como assim? Ainda estou perdida.

- Espere um pouco e verás.

- Espere o que?

- Espere acabar o chorinho.



Agora estava tocando “Brejeiro” de Custódia Mesquita. Helena o ouviu até o lugar ser tomado por um silêncio sepulcral. A noite densa cobria todo o local não se podia mais ver nada, a casa da cigana desaparecera, e nada restava de seu antigo intento. Helena não sabia mais se ela era ela mesma. O silêncio foi quebrado bruscamente por uma risada irreverente. Rá, rá, rá, rá, rá, é mojubá! Helena vira-se em todas as direções, tenta gritar, seu grito não sai, lembra-se de Maria Santíssima, mas a reza não flui. Do meio do nada, das sombras entre as catacumbas aparece uma figura masculina cuja beleza encanta qualquer mulher.



- Oi moça, você me chamou?

- Não, acho que não. Helena sentia uma profunda vontade de tocar naquele rosto.

- Então, o que fazes aqui, esta é minha morada.

- Eu vim olhar... Bem, eu estou numa missão para desmascarar uma vagabunda.

- Que vagabunda? Todas as mulheres de minha casa são dignas. O rapaz aproximou-se de Helena e esta se abraçou com ele trocando beijos até pegar no sono.



A chuva era intensa na antiga Sobral. Suas gotas grossas acordaram a mulher do padeiro português que havia vindo ganhar a vida nessas caatingas e nunca se arrependera de ter feito isso. Helena de Lió acordara pela força da chuva. As janelas da casa da cigana estavam abertas e dentro da casa saía perfume de sândalo. Helena levantou-se da sepultura onde estava e percebeu que sua roupa estava toda amassada e aberta. Seus seios estavam de fora. Havia uma sensação de ter feito amor. Podia sentir ainda a paixão impregnada em seu corpo. Compôs-se, segue rumo ao portão passando por entre covas e sepulturas de luxo. Sentado embaixo do cruzeiro principal do cemitério estava o velho escravo cortando um pedaço de fumo de rolo.



- Lembra da música, senhora?

- Que música, moço?

- Aquela de chorinho o “Flamengo” de Jacob do Bandolim? Diga, num dá para dançar?

- Não entendo o que o senhor fala!

- Nunca pensei que seria tão bem tratado por uma ilustre dama da sociedade.

- Como? Nunca tratei ninguém mal, e o que vi, foi só um sonho.

- Os sonhos falam grandes verdades. Disse Joaquim.

- Mas são somente sonhos! Não seja impertinente.

- Bem, viva com eles, pois sem eles é difícil viver.

- Onde está a vagabunda? Continuou Joaquim.

- Que vagabunda? Todas as mulheres são dignas, cada uma tem sua razão.

- A filha não pensava isso há uns minutos atrás.

- Bem, boa tarde, moço!



Helena sumiu molhando-se na chuva que retornara subtamente. Parecia não ligar. Nunca mais a vi. Soube que ela passou a freqüentar as rodas de choro da lira da cidade. Mudou-se de rua e seu marido nunca mais teve crises de ronco. Os dois tinham um segredo. O velho do cemitério um dia me encontrou aqui em Aracaju e me falou sobre o beiço das águas e que Oxalá falaria com o povo dessa terra de Tupinambá. Mas essa é uma outra estória.

2 comentários:

  1. O que condenamos no outro, é reflexo do que queremos mas não temos coragem de admitir.

    Infelizmente, em um mundo que insiste em brincar nesse carnaval com sua máscara de reto, os erros são apenas dos outros. Sempre o outro é capaz de ser vil. Nós? Nunca! hum...

    A nossa hipocrisia é tão gigantesca, que sequer nos damos tempo em percebemos que, mesmo que aparentemente nós queiramos ser Super-Heróis, não passamos de Reis Bostas com sorrisos intensos e controlados pelo nosso próprio medo de aceitarmos o que somos.

    Enquanto isso, vão andando e conversando de bar em bar, nosso querido Rei Bosta com o seu inseparável inimigo amistoso Metacômico.

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  2. Meu caro Vina,
    O seu texto comentando helena e a cigana, embora não o cite,foi muito oportuno porque reforça a tese que a literatura e arte de uma forma ou de outra faz o papel da filosofia: confrontar nossas verdades. e essa também é a proposta do movimento torto, um abraço torto.

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