segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Olhar torto sobre a realidade e a ficção

Encontramo-nos diante de um momento histórico que se caracteriza pela sua vulnerabilidade e por suas incessantes mudanças. Em um contexto no qual a verdade passa a ser constantemente refutada, e o absurdo passa a ser concretizado em um mundo permeado de imprevisibilidades, é simplista demais conceber de forma dicotômica a relação entre a realidade e a ficção, como se esses universos se posicionassem apenas de forma opositiva.

O que eu percebo, é que grande parte das pessoas a quem eu já tive a oportunidade de conversar a respeito dessa relação entre a realidade e a ficção, tende a encarar a realidade como algo voltado à ciência, ao concreto, à verdade e ao visível; enquanto a ficção tende a ser concebida como algo referente à arte, ao abstrato, à mentira e ao que não pode ser verificado.

Pensar a realidade como algo meramente voltado à verdade e ao concreto, e a ficção como um universo ligado unicamente à mentira e ao abstrato, ou seja, ao que não pode ser verificável, incorre a uma série de problemas. Devemos compreender que a realidade perpassa o mundo do abstrato, assim como a ficção se encontra diretamente relacionada ao concreto. Portanto, realidade e ficção são universos entrelaçados.

Por exemplo: apesar de sua precariedade, quem é que nega a existência do Estado? Se não enxergássemos o Estado, sequer questionaríamos sobre ele. Porém, mesmo concebendo a existência do Estado, quem consegue de fato, visualizar de forma personificada o Estado? O Estado, mesmo sendo real aos nossos olhos, se faz concretizado de forma fictícia em nosso dia a dia. Ou seja: a realidade pode ser ao mesmo tempo fictícia.

Mesmo sabendo que o Estado não é algo palpável, como poderíamos buscar exigir os nossos direitos, se não tivéssemos o invisível chamado Estado? O termo Estado é uma criação. Se fôssemos educados a concebermos o que concebemos como Estado, de Pirulito, procuraríamos o Pirulito para resolver os nossos problemas, e não o Estado. Como se vê, mesmo sendo de certa forma fictício, o Estado é real.

Um escritor de literatura consegue dar vida a sua obra quando ele traz elementos oriundos da realidade que justificam a sua postura fictícia, até por que, toda obra é reflexo de um contexto. Para que o receptor consiga fazer uma leitura sobre o panorama fictício, esse autor utiliza-se de inúmeros meios que dão realidade a sua trama, sem necessariamente precisar deixar de construir uma narrativa que fuja de sua natureza fictícia.

Já um cientista não conseguiria comprovar seus dados, se ele não tivesse se utilizado de sua imaginação para criar encadeamentos capazes de dar lógica a sua perspectiva. Nenhuma verdade existiria, se antes não houvesse imaginações oriundas das fantasias de cada um. Mesmo mesclando sua imaginação com sua argumentação lógica, o cientista não deixa de construir uma teoria concebida como científica.

A realidade e a ficção implicam ao mesmo tempo, interpretações lógicas e fantasísticas. A realidade é feita de imaginações construídas por lógicas que aparentemente se concretizam, assim como a ficção é oriunda das lógicas construídas de acordo com a imaginação de cada um, imaginação essa que, só aparentemente, parece fugir da realidade. Portanto, a realidade também é ficção e a ficção também é realidade.

5 comentários:

  1. Gostei de sua capacidade de exemplificar sem forçar a barra. O argumento foi belamente justificado.

    Abração!

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  2. Caro, Vinna Torto
    O teu texto me chamou atenção para algumas questões que ultimamente estão me ocupando bastante. Talvez eu esteja falando o óbvio se considerar-mos que essa experiência "dicotômica" da realidade e da ficção é constante e permanente em qualquer um em maior ou menor grau.
    Eu estou lendo um livro no qual o narrador faz descrições de fatos reais, a narração é de relato. Uma das personagens diz que sonhar é real quando a gente consegue focalizar tudo. Então não há diferença entre o que você faz quando dorme e o que você faz quando não está dormindo.
    Essa personagem excêntrica é considera biruta em seu meio. Mas ela tem um perfeito domínio entre o que é real e o que é ficção; tanto, ao ponto de conseguir materializar seus sonhos ou viver "realidades" em separado. Ela submete outra personagem às técnicas que fazem subverter a nossa lógica. Essa outra personagem, dizem, também começa a enlouquecer, mas não perde o controle de sua loucura.
    Realidade e ficção são a mesma coisa quando sua diferença se faz apenas no grau de engendramento de cada experiência. O mais engraçado é o imbricamento: leio um relato (um texto sobre a realidade, não necessariamente "em fatos reais"), onde a persoanagem fala da indiferença entre ficção e realidade. Eu me sinto completamente convencido do texto.

    Abraços.

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  3. Caro Vina, minhas indagações não falam diretamente do texto, mas creio que perpassa pela discussão do torto e gostaria de nesse momento discutir uma pouco sobre o movimento com algumas reflexões. O movimento torto se apresenta como critico do externo e de suas próprias posições. A desnaturalização do olhar e dos sentidos se confunde com o arcabouço instrumental do racional como ponto de partida para o encontro com esse mundo de sensações, que se apresenta como impulsionador dessa reflexão. Com isso, vem o questionamento o movimento torto segue uma tendência de reflexividade assim como Ulrich Beck e Giddens colocam ou são relativistas? Ao que me parece a única coisa que o torto se opõe de verdade é a acomodação e a aceitação absoluta do que é convenção. O torto não pretende chegar a algum lugar? A sua única pretensão é incomodar as mentes inertes e seguras na altura de suas vidas mortas quase vivas? a principal carta de apresentação do torto é a critica pela critica? Não tem pretensões de ser diferente ou um novo movimento, mas sim o de estranhar o que está a sua volta e no que está em si? bjo

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. O involucro que envolve a questão do concreto e do abstrato, ou do real ou fictcio, consiste numa questao conceitual, a mente e as vias dialogicas e filosoficas pelas quais decretamos ser algo real ou imaginario agem como muito mais clareza que a mera convenção. Um complexo, por exemplo, é algo bem real. Eu tenho um sério problema urinario, não consigo mijar em banheiro de onibus em movimento, ou com alguem do meu lado. ja fui examinado e, claro, ta tudo ok com minha uretra e bexiga, no entanto há algo que é real, que eu não posso ver e que bloqueia as minhas praticas urinarias em tais circusntancias.
    O conceito de real depende estritamente a possiblidade de visualização da concepção que traduz tão realidade. Assim, o Estado às vezes existe e as vezes não, as vezes temos governo e as vezes não. A arte, em seus diversos segmentos, muitas vezes traduz como maior precisão a existencia ou não de algo. E não é à toa que em varios momentos da historia, a arte foi a desmistificadora de grandes mentiras e embustes e falou muito mais sério do que os proprios orgão e entidades ditas oficiais pra codificar e convencionar o mundo.

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