quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Alma negra

Alma Negra

Estávamos em um lugar bem diferente de tudo que conheci ao longo de meus quarenta e nove anos. Se era dia ou noite, não sei. O que posso dizer, com máxima certeza, era que não faltava luz, e eu não sabia de onde vinha. Por certo tempo permaneci em pé olhando para um horizonte sem fronteiras, uma imensa linha tão grande quanto a do mar, contudo, não tenho como dar referências sobre isso. Sabia que era só um sonho, nada disso podia ser verdade, eu estava em Tobias Barreto antes de me deitar. O outro ao meu lado, calado esteve a maior parte do tempo. Seu silêncio foi tão forte que me irritei com ele, e tentei tirá-lo de seu estado cataléptico.
-Oi! Disse eu com um tom falso de atenção.
-Oi! Disse ele na mesma medida.
Tentei uma outra estratégia. Tentei mostrar a beleza do lugar com frases de admiração.
-Nunca vi coisa assim! É o lugar mais lindo do mundo, cara!
-Guarde suas palavras para si. Disse o misterioso personagem.
Não liguei mais para o rapaz e fui até Fortaleza em meus pensamentos e me recordei dos velhos dias de infância. Lembrei-me da Rua Francisco Holanda na Aldeota, lugar onde morei por 11 anos. As coisas eram tão diferentes naquela época. A garotada brincava, não tinha violência, e nem drogas. Lembro-me que quando cresceu o bairro, tivemos lutas de turmas. Uma rua contra a outra, mas ninguém ficou machucado de verdade. Era tudo fantasia. Construímos certo dia, uma nave espacial, e nela a turma se esbaldava em sonhos espaciais. A lua estava ali, bem perto de nós. Também me lembrei de meu primeiro amor. Era uma menina linda. Tinha feições afiladas, bem diferentes do tipo caboclo cearense como eu. Era cândida, e cheia de afetos por mim. Foi uma curta aventura, pois pouco tempo depois, o pai dela acabou nosso romance alegando questões raciais. Tolice dele. Deus o tenha onde estiver. Por um breve momento pensei se quando eu acordasse me lembraria desse sonho, e de tudo nele. Olhei para o outro, parecia que ele sabia o que eu estava pensando. Perguntei com ignorância:
-Que foi? Por que estás me olhando dessa forma?
-Cuide de sua vida! Disse ele com olhar severo.
Retornei ao passado tão vivo em minhas lembranças. Lembrei-me da Avenida Barão de Stuart, dos amigos do condomínio. Tive uma adolescência em grande parte feliz. Fiz boas amizades e nunca me esqueci daquela época. Junior “ceguinho”, um amigo do peito. Nunca tive a chance de vê-lo novamente. Sei que está vivo, casou-se, não sei com quem, e tem filhos, não sei quantos.
O moço ao meu lado olhou-me com suspense e parou um pouco de me perscrutar os pensamentos. Subitamente, me diz: “Amigo, precisamos ir”. “Para onde?” Perguntei em seguida. Novamente, a aparência de um ser misterioso e que me provocava medo tomou forma em seu rosto. Não me importei; detive-me o resto do tempo revivendo minhas recordações. Minha mente levou-me à cidade do Recife, dias bons, dias difíceis. Parei no que fora bom, e fui direto para os braços de Risalva. Morena linda de olhos claros e cabelos ondulados do tipo cabocla. Estatura de mulher nordestina, nem alta nem baixa, no meio do caminho. Lembro-me que ela me olhou varando-me o coração com setas tão afiadas que não resisti e convidei-a para irmos ao zoológico. Foi lá que ficou um pedaço de mim. Aquele lugar era lindo, cheio de árvores frondosas e diversas espécies de animais nacionais e outros de fora. O lugar acolhia bem os namorados. Ficávamos sempre ao pé de uma árvore de tronco grosso cercada de grama. Colocávamos uma toalha e o dia parecia pequeno para nós. Foi com ela que fiz amor pela primeira vez. Não posso me esquecer jamais daquela tarde. Foi o céu mais lindo que vivi. Penetrar naquele corpo sensual depois de tanta ternura me fez muito bem, diríamos, um momento singular de felicidade. Risalva logo se foi e conheci outra pequena. Esta me fez esquecer todos os sofrimentos vividos no Recife; coisas que, no momento, prefiro esquecer. Seu nome era Marize, filha de um empresário da Bahia. Tinha olhos bem verdes, altura igual a minha 1,72 e cabelos castanhos bem claros. Sua cintura parecia de um violino apoiado sobre duas grossas colunas de mármore. Eu adorava beijar aquela boca delicada de lábios carnudos. Tempo muito bom aquele. Enquanto envolvido nestas reflexões, fui desperto pela voz pusilânime do ser que insistia em me assustar.
-Moço, está na hora, vamos!
-Para onde. Respondi com surpresa.
-Você não sabe? Ele disse em tom frio.
-Não. Eu realmente não estava entendo nada. Não sabia de que se tratava. Então, perguntei novamente, mas com cuidado:
-Moço, para onde eu deveria ir?
-Precisamos voltar. Disse o rapaz estranho.
-Voltar para onde? Retruquei.
-Para lá. O jovem apontou para uma montanha avermelhada; era a cor da luz que de lá vinha.
-Onde é aquilo? Perguntei novamente.
-Só vendo que você saberá. Disse ele de boa vontade.
Não sei o que houve comigo. Uma vontade de chorar terrível me abateu a alma quando soube que teria de sair daquele lugar. Quando terminei o pensamento, já me encontrava no lugar. Lembrei-me que tudo não passava de um sonho. Isso me tranqüilizou. Abri os olhos e acordei, eu acho. Todos estavam em casa; minha mulher trabalhava na cozinha, e as meninas Denise e Isabel estavam tomando café. Tentei me levantar, mas algo me colava à cama. “O que é isso?” Perguntei ao rapaz avermelhado. “É que você acha que acordou de seu sonho”. “Como?” Disse assustado. “Quer dizer que eu ainda estou dormindo?” “Positivo”. Concluíra o diálogo o ser horripilante. “Mas vejo todos tão nitidamente”, pensei por reflexo. O movimento da casa estava normal todas as três fazendo sua tarefa, contudo um silêncio sepulcral imperava no ambiente. Ninguém falava sobre mim, nada diziam nem de bem nem de mal. O carteiro entregou a correspondência e sussurrou alguma coisa para minha mulher; fiquei intrigado, isto nunca acontecera antes. Não conseguia mover o corpo, parecia que meus olhos apenas se moviam. Com grande esforço procurei o rapaz. Não o vi em lugar nenhum. “E agora?” Pensei com meus botões novamente. “Acho que está na hora de acordar”. O rapaz apareceu dizendo-me: “É verdade”. Fechei os olhos logo em seguida e comecei a cair no sono. Ouvi passos agitados, vozes distantes, por várias vezes ouvi alguém perguntando sobre mim. E havia uma luz prateada logo acima de mim que caía direta em meus olhos. Ela me cegava e fazia tudo em volta girar com se eu tivesse levado uma pancada na cabeça. “Souza!” Ouvi meu nome pela primeira vez. “Souza!” a voz insistiu uma segunda vez. Tentei falar algo, mas nada saía de minha boca. “Souza, sua mulher e suas filhas acabam de chegar.” “Você está na UTI do Hospital Geral de Sirilândia.” Me tranqüilizei, afinal agora sabia mais ou menos o que havia acontecido. Ouvi a voz chorosa de minha esposa dizendo-me: “Perdoe-me Souza, não morra, por favor!” As duas meninas choravam baixinho “painho”. Isso me dilacerou a alma. Meu sócio na empresa se aproximou e disse em tom sério: “Amigo, melhor é a glória eterna de que os tesouros desta terra”. Bem, meus amigos. A coisa foi engrossando até que chamaram o Pastor de nossa paróquia, Rev. Douglas. Ele discursou a mesma baboseira de sempre: “Do pó viestes, ao pó tornarás”. Confesso que tive vontade de mandá-lo para aquele lugar, porém a situação não me era favorável. “Será que estou morrendo?” “Por que não sinto dor?” O moço estranho reapareceu e logo quando o vi entrei em sono profundo. Estávamos num jardim, haviam flores lindas, espalhadas por todos os lados. A grama era tão verde que doía a vista. O rapaz começa um diálogo comigo:
-Qual o sentido da vida?
-Rapaz, sei lá! Tomar cerveja?
-Não estou brincando. Você precisa entender o que tens em jogo.
-Você pode ser mais claro!
-Certo.
-Tudo que você viu hoje nada te tocou?
-Para ser honesto, não.
-Então seu caso não tem cura.
-Como assim?
-Deixa para lá.
-Deixa para lá o que rapaz, abra o jogo!
-Vê lá como fala comigo, moço!
-Como assim?
-Vai me bater?
-Você merece umas palmadas.
-Pois pode vir seu p...
Quando o soquei, vi que nada atingi e que estava só em frente a uma cruz de madeira. Nela estava escrito o meu nome Souza Rodrigues Santos. Pensei que era coisa do sonho. Sentei-me sobre uma lápide ao lado e fiquei pensando e observando por um instante. Chegaram dois rapazes fedorentos e mal-encarados e sentaram-se bem próximo a minha cova. “Corno!” Disse o negrinho magro. O outro meteu a mão no bolso e acendeu um baseado e ambos fumaram jogando a maresia na minha cara. Davam risadas o tempo inteiro e eu nada pude fazer. O tempo passou, meu corpo se estragou completamente naquele sepulcro barato de um cemitério da periferia de Aracaju.

2 comentários:

  1. Enfim, de que valem de fato, todas as nossas dúvidas? Porém, conseguimos viver sem elas? E se não as tivéssemos, qual o sentido de qualquer coisa? Se as coisas passarem a não tocar mais a gente, realmente eu posso dizer que já não temos mais cura para nada.
    A vida não tem sentido, mais muito mais sem sentido, é quando negamos o sentido que damos a ela. Somos turistas de nossa própria história. Somos os confrontos de nós mesmos ao longo dos tempos. Somos a sensação de estarmos vivos no amanhã, no ontem e no agora. Somos a história cronológica atemporal. Somos tudo e nada, frente e trás. Somos meninos cambaliantes tentando manter a todo o custo, as máscaras de nossas coerências. Somos erros e acertos. Somos tortos.

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  2. É isso meu mestre, é isso que alma negra tenta passar.

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