sábado, 6 de fevereiro de 2010

O Entremeio, por Lucas Maia (participação)

Ele escutava a versão da Ave Maria, por Franz Schubert, que possuía a maleabilidade necessária para a satisfação do seu gosto musical. Descobriu desde moço que essa era a esposa dos seus ouvidos, que nela havia elementos matematicamente calculados e forjados para sua introspecção, águas que irrompiam como revelação de acalento, uma freqüência determinada. Herdou, talvez, o gosto da mãe, que sempre às seis horas da noite ligava o som, não para escutar as versões das rádios, mas para ouvir as obras de Schubert. Foi como um desfribilador aplicando impulsos em sua alma, gravou a música por completo, desde a primeira vez.

Logo após sua terapia matinal foi à cozinha, correu a mão sobre a superfície do azulejo pregado à parede há alguns anos, poucos anos, muitos anos, indeterminados anos, na verdade. Terminou a procura do interruptor e exerceu uma força, pouca força, muita força, indeterminada força, na verdade. A luz acendeu com um lampejo imediato e determinado. Ele abriu a geladeira e lembrou da sua namorada, de nome determinado, cobrindo seus olhos, fazendo surpresa, no dia que ofereceu a viagem que fizeram à Europa, lembrou do avião partindo, pairando no ar, com sua velocidade determinada. Lembrou da temperatura, da precipitação de partículas que diminuiu tanto, a ponto de transformar água líquida em gelo, era um ponto determinado. Foi um período de muito frio, tanto frio que ele acabou ficando doente, ficou de cama em plena viagem turística, sua companheira foi à farmácia, comprou um medicamento, pegou a bula, deslizou os dedos sobre as linhas, leu atentamente, informou-se com propriedade sobre a quantidade exata da dose, entornou o líquido sobre um copinho cônico cortado ao meio, permitiu a queda das moléculas até a demarcação necessária de cinco mililitros. Ela foi informada, pelo farmacêutico, que de nada adiantaria dar menos que a dose determinada e que se fosse mais, o conteúdo se tornaria tóxico.

A viagem teve um espaço de tempo precioso entre os dois, mesmo com imprevistos, os dois conseguiam perceber o equilíbrio do amor que ali jazia, não era muito pouco, nem tampouco demasiado, era essencial e necessário.

Houve, em meio a todos os acontecimentos, uma explosão na cozinha de um restaurante requintado, eles haviam desistido de visitar tal recinto, mas souberam da notícia. O susto foi maior que o acidente causado, os cozinheiros não estavam perto do bujão. Tudo ocorreu no início do expediente noturno, o restaurante só abria durante o dia e durante a noite, o primeiro cozinheiro a entrar na cozinha repetiu o exercício do autor dessas lembranças e no instante em que o lampejo de luz foi instigado o gás do bujão explodiu, o oxigênio se misturou com o propano dentro dos limites superior e inferior de inflamabilidade.

Ele fechou a porta da geladeira com alguns utensílios na mão, os colocou sobre a mesa e começou a preparar seu café da manhã. Ele continuava a sua vida e permitia, junto a ela, a contínua necessidade “clarioculta” do entremeio.


(Participe também! movimentotorto@gmail.com)

15 comentários:

  1. Busquemos, como tortos, os entremeios!

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  2. Caramba muito bom, mesmo! Concordo com o Josué, sim os entremeios, como um balão preso a uma corda...livre porem determinado. Maravilhoso o texto e cheio de imagens.

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  3. Meu querido Lucas,

    Você não sabe o quanto foi proveitoso esse seu texto ao movimento.

    O mais interessante foi a forma como a trama foi construida. Mesmo diante de tantos limites e de tantas determinações, o que percebemos paralelo a isso, é uma vulnerabilidade inerente a qualquer cotidiano.

    Esse texto possibilitou uma perspectiva fantástica entre a possivel logicidade das coisas e sua possivel natureza deslizante, enfim, uma certeza cambaliante em um pátio ensaboado.

    Nem um lado apenas e nem o outro, e sim um entremeio, ou seja: um olhar torto.

    Parabéns

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  4. Novo texto mundo fluído, comentem:
    Constituição Dirigente II

    "Quando o homem pensa ou faz algo sempre cogita, mesmo que inconscientemente, alguma finalidade. Mesmo assim, nesses termos, sua vontade não depende de qualquer arbítrio.

    Na grande maioria das vezes, quiça sempre, o homem reage e age sobre a influência de seu ambiente. Ele é perpassado por forças imanentes, ele é somente um vetor de energias.

    Por isso, nunca existe ou existirá qualquer finalidade única das afecções. Quando o homem deposita fé em alguma finalidade absoluta é com a intenção de por ordem nos movimentos desordenados das coisas.

    Uma ilusão de domínio perpassa essa questão da finalidade. Dentro dessa perspectiva , o homem sempre pensa em unificar e ordenar aquilo que é desordenado por si, a cultura e a natureza."

    Continua lá no mundo fluído

    http://mundodeespuma-coutocircuito.blogspot.com/

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  5. Anderson,

    Concordo com suas palavras. A necessidade de apregoar uma verdade absoluta não passa de uma tentativa de ordenarmos nossa realidade acidental e imprevisível.

    É pelo fato do homem agir e reagir diante de seu meio, ou seja, ser produtor e produto, que ele vive cambaliante e ao mesmo tempo moldado entre essas duas realidades.

    Isso é que faz o homem modificar a natureza, criar novos instrumentos para lidar com ela e modificar a sua cultura, afinal ele é fluxo.

    Isso lembrou o que eu interpretei nesse texto do Lucas, o entremeio, ou seja, a determinação e a vulnerabilidade, apesar de suas aparentes oposições entre si, ordenam-se deslizantemente em nosso dia a dia.

    Só fico triste por ver que esse discurso infelizmente tende a ser considerado congelado por muitos que entendem que fazer dialética, é apenas gritar palavras de ódio ao mundo

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  6. Nesse teoria de Nietszche, que bebeu em heráclito, o marxismo também é niilismo. A dialética é uma tentativa, vazada nos moldes cristãos, de esquecimento do presente em vista do futuro, e é uma tentativa de moldar o movimento através de uma ontologia dialética da matéria. Existem alguns "marxismos" que tentam fugir dessas dificuldades. A própria perspectiva de Negri e Adorno, que propõem um abertura da dialeticidade, saindo da síntese, e fortalecendo a antítese, é uma aposta para obstar a arrogância dos próprios marxistas militantes. Nem Lenin foi tão ortodoxo, somente os juvenis barbudos são assim. Embora não possamos esquecer que toda sociedade possui representações - influenciada pelos entrementes das possibilidades que possui pra falar - e se apega a elas, forçando todos nos seus mecanismos, nunca conseguindo porque o social é múltiplo por natureza e não unificado. A sociedade é um conflito turbulento entre o id e superego.

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  7. Anderson,

    Concordo com suas palavras quando diz que existem outras formas de marxismos que tentam se ajustar ao aspecto ambiguo e contingencial do nosso contexto, mesmo admitindo que, pelo menos o que eu percebo, o marxismo ainda se sustenta em um discurso niilista de divisões muito simplistas entre dominantes x dominados.

    E foi bem interessante você ter ressaltado essa pluralidade ideológica que permeia as sociedades. Porém, como um ser que se acha no direito de requestionar todas as naturalizações de "verdades", eu sinceramente, sem desrespeitar a forma como cada um crê em sua ideologia, digo com toda a tranquilidade que eu considero esses tipos de partidarismos muito partidos mesmo.

    É por isso que eu não acredito no discurso deles, pois para mim, existem aqueles que, ou estão na militância como marionetes sem requestionar as bases partidárias que eles acreditam, e portanto, incapazes de governar a adminstração política de forma mais crítica; ou existem aqueles que sabem que o que eles apregoam em seus discursos, não passam de máscaras que, se externam a preocupação com o social por um lado, por outro, não deixam de ter suas vontades de instituir seus poderes, e que estão só esperando o momento exato para mostrarem suas garras. Não acredito também nesse segundo perfil pois não se diferem nada dos partidos que se dizem "opositores"

    abraços

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  8. Vina,

    De certa forma você está subjetivando o marxismo. O marxismo não está esteado nessa simples divisão entre dominantes e dominados. Ele está vazado em algo muito mais material. Marx procura alicerçar todas as outras categorias na divisão do trabalho morto e trabalho vivo, no valor de troca e no valor de uso. O capital, da forma estrutural como está alicerçado, se reapropia das energias sociais para o crescimento do trabalho morto, do objeto material, crescimento fetichizado, e esquece a vida, ou sua utilização para o presente e benefício social. É niilismo em termos, digamos, econômicos. Quando Marx subjetiva as categorias de valor de troca e valor de uso, é somente uma forma de indicar quem na sociedade representa essas categorias objetivas, nunca se podendo falar de subjetivismo tanto da burguesia quanto do operário. Um burguês que procura respeitar o meio ambiente, provalmente, pelas leis de concorrência, falirá, portanto existe um coerção para continua exploração predatória, isso que uma lei infalível. O próprio Marx se reapropia das questões de Feubarch para esclarecer que quanto mais adoramos nossos objetos somos menos. E isso é um pouco o que Nietszche quis dizer. O que o marx fez foi colocar esse niilismo estrutural do capital dentro de uma concepção dialética (as possibilidades que possuia na época). Nesse ponto começa os niilismos de Marx.

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  9. Colocarei uma parte de uma texto meu que esclarecerá o que quero dizer:

    "Influenciado por Feubarch, crítico ferrenho de Hegel, Marx identificou o intento de Hegel a uma teodicéia. O mundo, nesse método, seria o reflexo da vontade absoluta divina contra o pecado da matéria. Se Feubarch esteve correto, quando disse que Deus é alienação dos predicados humanos e um rebaixamento de sua essência, percebe Marx, o método dialético idealista de Hegel é uma alienação, do mesmo modo, da capacidade de pensamento do homem. É um rebaixamento de sua possibilidade material de mudar sua realidade através da crítica. Então, para Marx, o que era o sujeito universal em Hegel, o pensamento puro e objetivo, incorporado a uma concepção total do espírito, na verdade, sempre foi um reflexo daquilo que sempre ele tentou negar através de seus malabarismos intelectuais, a matéria - incorporada, unificada, pacificada e identificada na noção ontológica da lógica, o conceito. Em Marx a matéria não mais se subordina ao conceitual da lógica, ela reflete uma auto-atividade humana concreta e prática, é sempre a partir da matéria, não em uma realidade acima das coisas sensíveis, que o homem pode conhecer suas propriedades enquanto homem. Na concepção de Marx, ao contrário de Hegel, o conceito é reflexo das mediações conflitantes da matéria. A matéria sempre teria, se acaso não tivesse ainda superado os conflitos necessários em seu devir, precedência, e colocaria em descrédito qualquer concepção que tentasse descrever a totalidade das coisas, mediante os artifícios da filosofia lógica, como fez Hegel, através de uma dialética que girava em torno do conceito, e não da realidade material sensível. Por isso, Hegel, pensando em corrigir o formalismo conceitual Kantiano, incorporando o conteúdo dos objetos, só fez melhorar e aperfeiçoar o dualismo, porque o mundo no método de Hegel foi violentado pelo espírito absoluto quando o próprio Hegel decretou o fim da história e das contradições. Desse modo, em primeiro momento, o método de Marx tentou abrir a concepção de mundo da pacificação operada por Hegel, através de uma dialética materialista. Para Marx, na dialética de Hegel o pensamento era movido pelas mediações contraditórias do devir, porque o próprio real era contraditório, e como o real ainda passava por contradições, a pacificação entre forma e matéria no idealismo Hegeliano era fruto de uma ideologia. Ela era a transformação de uma concepção particular de um determinado estado de coisas em uma teoria da universalidade e fim da história. Portanto, um dos primeiros intentos de Max foi ativar novas contradições na concepção instrumental da dialética de Hegel, cuja tendência era decretar uma suposta universalidade daquilo que existia naquela época nas relações sociais, jurídicas, econômicas, políticas e culturais. Contra os efeitos positivos da subordinação da matéria ao conceito em Hegel, Marx faria explicitar a negatividade do objeto sensível. Em Marx, toda a contradição que parecia abolida no espírito absoluto de Hegel, é retomada na matéria, descrita em termos econômicos. Para Marx, na medida em que Hegel percebeu a relação positiva do conceito no devir, como sendo a única mediação verdadeiramente positiva, ele tentou provar que tudo que existia era somente um auto-relacionamento do “ser” lógico do espírito absoluto consigo mesmo, operado sob a mediação do homem na forma de abstração, lógica e especulação, de forma que através desse artifício ideológico Hegel tentava negar a história efetiva da matéria e por fim às contradições. Tudo em Hegel gira em torno da concepção lógica do pensamento objetivo e positivo. O retorno do objeto ao si da consciência humana finita nada mais é do que a reapropriação e absorção reflexiva do espírito absoluto, o próprio objeto descrito logicamente."

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  10. "Bem ao contrário, Marx deu destaque a atividade negadora do trabalho, que nega a natureza e desvela o poder do homem. No materialismo histórico é no objeto sensível, na mediação entre atividade concreta do homem na natureza e a reflexão, que o homem toma consciência de si nas coisas e através das coisas. Desse modo, Marx abriu a concepção positiva do espírito absoluto de Hegel. Criou uma concepção negativa da matéria repondo as contradições que Hegel tentou mistificar. Portanto, nesse primeiro período, Marx abriu as possibilidades de pensamento, na dialética, pois o mundo na economia, o objeto sensível, onde o homem deveria tomar consciência de si, era fraturado e contraditório, não era a teodicéia pacífica de Hegel, a famosa coruja de minerva. Marx mostra que a suposta universalidade e fim das contradições no idealismo hegeliano é falso, é somente uma abstração do conceito, já que a economia onde o homem faz sua história e reflete em pensamento ainda passa por contradições. A partir desse pressuposto, a nova tarefa da filosofia seria estudar as leis históricas da matéria sensível e suas contradições, e reflexos no pensamento, encontrando a forma genérica do homem que sempre é a criação de sua auto-atividade negadora, mediada dialeticamente pelo estranhamento e pela tomada da conciência-de-si na natureza. A reflexão em Marx não é manifestação da consciência universal acima da matéria, é a mediação do homem com seu trabalho objetificado nas coisas. Entretanto, mesmo estando claro que Marx propugnou a abertura do processo histórico contra o fechamento positivo operado pelo idealismo Hegeliano, ele deixou várias passagens em seus livros que parecem transparecer o desejo de uma solução final para o estranhamento do homem nas contradições e conflitos sociais, onde surgiria o comunismo, o fim da exploração do homem pelo homem e o homem genérico universal que usufruiria de todas as benesses e todas as mediações materiais e teria consciência plena, sem qualquer interposta ideologia, de seus poderes. Nessas passagens, Marx expressa o desejo de realização de todas as contradições da matéria, o que possivelmente seria o retorno de um novo fechamento dialético da história. Expressando esse desejo em termos dialéticos, de negação e negação, surgiria a aufhebung final, a positividade, e uma correlata forma de consciência da potência da atividade humana, sem qualquer tipo de estorvo da alienação, em outras palavras, o fim da história. Muitos autores questionaram esse intento de Marx. Se o alemão tinha dito que Hegel tinha feito uma teologia, ele recaiu nos mesmos erros de seu adversário, produziu uma escatologia e destacou a necessária redenção da humanidade como pregava o cristianismo."

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  11. Anderson,

    Veja bem: eu acho que devemos fazer primeiramente uma diferenciação entre Marx político e Marx econômico. De antemão, gostaria de dizer que, não é por que eu proponho ver primeiro a divisão, que necessariamente eu preze pela classificação bipolar das coisas. Acontece que eu acho que o Marx econômico, ele tende a trazer uma relação como você disse, bastante estrutural, e portanto, determinista e niilista da realidade. Já o Marx político, eu vejo como um cara mais esponja de ser, mais aberto.

    No entanto, não sei se estou me fazendo entender, mas a minha crítica não se refere a Marx; minha critica está direcionada àqueles que dizem pôr em prática as idéias de Marx, ou seja: os marxistas.

    Não que eu queira dizer que TODOS os Marxistas atuem de forma acritica e muitas vezes ignorante com os instrumentos teóricos pensados e reformulados por Marx. Porém, o que eu percebo é que muitos dos marxistas, são os primeiros responsáveis por sujar um quadro de pensamento construido por Marx, que diga-se de passagem, é muitissimo rico.

    O que sinto é que muitas vezes uma parte da militância tem uma tendência em assumir posturas excludentes com aqueles que não compartilham de seus ideiais em prol de um discurso que se diz preocupado com o bem estar social. Quando eu digo posturas excludentes, entenda posturas que mesmo não segregando diretamente você, muitos dos marxistas assumem as idéas de Marx como dogmas e terminam sendo ncapazes de admitir ouvir outras opiniões que se confrontem com a deles.

    Minha crítica não é com Marx, até por que, eu mesmo acredito que muita da forma como eu penso a realidade, é muito marcada por traços influenciados por nosso querido Marx, apesar de reconhecer que me dou melhor com o Marxismo interpretivo sócio-cultural do Gramsci,no entanto, faço questão de reafirmar: minhas criticas dizem respeito ao contraste que eu encontro entre o que eu entendo das idéas do Marx, e as práticas desenvolvidas por muitos que tem Marx como a grande innfluência em suas idéias políticas e econômicas

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  12. Concordo com as palavras que disse. E existe mesmo essa diferença entre o marx teórico e o marx político.

    Anderson
    abs

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  13. Os entremeios é uma alegoria fluídica de um ente demasiadamente fluídico chamado movimento torto. Nossa crítca a determinados marxistas se pauta nun fundamentalismo que se compara a religião. Alguns supostos marxistas de nossa academia não conseguem entrevê outra lógica exceto aquelas que eles dizem que Marx disse. Não somos marxistas até porque não somos nada, somo um gás lacrimejante de idéias - tentativas de se poder disser algo por si. Até que cheira um pouco de fenomenologia ou existêncialismo, ou ambos. O em si e o para si. A rebelião em face do nada move este movimento em nosso inconsciente coletivo. Abraços

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