"Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências"
Um dos fenômenos da pós-modernidade é a observação das pessoas a respeito dos objetos culturais que compõem a sociedade. Reduzidas ao fato de pensar que tudo é adequado somente a pequenos grupos compostos por pessoas que possuem interesses afins – elas se encontram a partir do momento que se distinguem umas das outras –, procuram, dessa forma, suspender a sobrecarga de signos que possa haver numa determinada criação, motivadas pela vontade de que, a partir de cada individualidade, tudo seja tangente a compreensão geral, esquecendo-se, entretanto, de que não podemos relevar o poder modificatório – em termos de pensamento – e de criação sígnica que possuem as obras artísticas.
Para que fique mais claro o que está sendo dito, evitaremos a prolixidade nesse pequeno excerto, por isso, por assim dizer, faltarão, nessa nota, termos polidos que alongam o que pode ser dito de imediato e sem muita complicação.
Suponhamos uma obra literária, por exemplo, como um objeto travestido numa tecnologia criada pela ciência – um carro. Quando pensamos nesse carro, nós que somos da academia, diretamente somos levados a falar não só sobre a complexidade que se dá no processo de criação desse carro, mas também pensamos como um artífice tecnológico pode criar, no social, modificações estruturais positivamente visíveis. Ou seja, sabemos que há todo um trabalho de engenharia imbuído dentro dessa máquina de quatro rodas, na qual várias pessoas atribuídas de funções diversas laboraram muito para que essa tecnologia pudesse sair do grafite em papel de quem a projetou para se tornar algo concreto. Mas, por outro lado, não obstando ao fato de se haver a complexidade descrita, pressupomos acertadamente que um carro intervém de diversas formas no que fora até então as nossas vidas, pois ele, além de complexo em quesitos estéticos, recrudesce a sua complexidade ao criar problemáticas quando já em uso. Um carro define parâmetros, estabelece convenções disciplinares e transparece, nas pessoas que tem um, aquilo a que chamamos de poder. Para que seja vendido, como todo objeto, precisa oferecer vantagens, demonstrar ‘comodibilidade’ aos consumidores e estar, é claro, um passo a frente do modelo que o precedera e dos carros lançados por outras marcas. Quando mal projetado, o seu uso, além dos riscos comuns do transito, oferece aos pedestres, principalmente, mais perigos que, com a desatenção devido à confiança que depositamos nessas tecnologias, estão para além dos riscos convencionais oferecido por ele, o carro. Ao observarmos as pessoas falarem sobre o carro hoje, se bem atentos, podemos especular que se deve a essa abordagem muitos dos problemas que persignam a ordem pública, como o desligamento crítico dos agentes, a despeito das melhorias do próprio transporte público, pois se busca a redenção por tantos algozes dentro dos ônibus, nas várias viagens que ao longo das nossas vidas fazemos, se comprando um carro e, logo, deixando de lado o transporte coletivo.
Pois bem, tendo observado todos os encalços que um simples carro pode criar, elucubremos sobre a correlação que há entre um carro e um livro. Tratemos, aqui, a arte pelo termo livro – que não deixa de ser uma obra artística. Quando compramos um livro, e o lemos, algo de novo é acrescido ao nosso pensamento, alguns pontos negros que turvavam a nossa forma de conceber um determinado assunto se tornam claros, e, assim, quando trabalhamos a nossa faculdade reflexiva e acumulamos certo número de leituras, estas se somam e podem criar um quociente cognoscível de relevo ante o conhecimento que obtínhamos antes do hábito de ler. Os pontos negros são esclarecidos não da forma que muitos estejam pensando, onde tudo o que era obscuro, com a leitura, deixa de ser fosco e, de súbito claro, se passa a viver sem os arremedos da dúvida sobre as questões que, antes de lermos, nos embaraçavam. Não, muito pelo contrário, é um esclarecimento que tende a nos sobrecarregar, com diversas outras questões criadas em cima das que já possuíamos, o espírito; em outras palavras, pequenas dúvidas são apagadas para que, sobre elas, sejam postas, com freqüência ascendente, interrogações ainda maiores e mais difíceis de serem elucidadas. É indubitável que por mais raquítica em recursos estilísticos que seja uma obra, por exigir a elaboração de várias sintaxes que se interliguem com coerência dentro de um parágrafo ou estrofe, ela exigiu do seu criador um trabalho considerável. Alguém se propôs a descrever algo, projetando, com a geometria das suas percepções, um tratado sobre um fato, um acontecimento que lhe foi digno de interjeições e, por isso, acha-se que merece chegar ao conhecimento alheio, para que se possa então com isso, sob a vista de mais cúmplices, pôr em atividade um objeto que não dispensa contemplação e depreende alguma idéia.
Assim como o carro, o livro irá necessitar de um meio pelo qual possa se tornar conhecido ao público. Chamará atenção não pelo seu designer – se bem que a arte da capa acaba contando muito –, mas pela descrição dos temas que nele são abordados. Os temas constituem a engenharia interna do carro, são as suas peças que devem garantir a segurança tanto dos pedestres como de quem dirige; quando estes temas vêm a calhar e a maestria da obra esbarra na descrição desta, temos um carro ruim andando pelas ruas, pondo em risco a vida de várias pessoas que dele, quer direta ou indiretamente, dependem. Como o carro, também o livro cria problemáticas sociais, o seu mau uso protela a gênese de uma crítica deteriorada, intimando a aparente coerência de nossas instituições estabelecidas ao júri cáustico do conhecimento que se faz por irresponsabilidade. Ao pensarmos as coisas, podemos achar pontos que, malgrado a visão de moral de muitos, independem de qualquer tour introspectivo para se conceber e são, em efeito, concernentes à ética dos povos mais variados. Caso me perguntem por um exemplo disso, respondo conscienciosamente que um deles se trata da agressão sem motivos. Ou seja, não se concebe em nenhum lugar que se dê um murro em alguém por dar. Isso é furtivo e, em quem não participa do ato, cria-se o sentimento da indiferença. Portanto, é coerente que pensemos que há alguns pontos éticos em comum. Por mais que se diga que a nossa acepção sobre tudo se pauta em preceitos unicamente cristãos, convém dizer que, infelizmente, vivemos sobre a estrutura de um chão moral já cimentado, onde se há regras e pessoas que vivem por elas e, por isso, não podem ser tidas como descartáveis, embora não devam ser tomadas por impassíveis às nossas críticas.
O livro não é um objeto destituído de conteúdo, assim como a música ou qualquer tipo de arte nele estão contidos maquinismos que, em detrimento com fatores que nos estabelecem, podem gerar ou uma pandemia ou algo totalmente frutífero na sociedade. A tecnologia tem como principal objetivo tornar fácil a convivência do ser no seu meio, tirando-o cada vez mais da posição vulnerável na qual, por natureza, se encontra, e suborna-o às vicissitudes dos apanágios do mundo hiper-modernizado. Vive- se sempre em expectativa e se morre com elas. Nada mais que isso. O livro tem como principal função o mapeamento da realidade na qual estamos inseridos, cabendo a ele ou escandalizá-la ou, contrapondo, prodigalizá-la. No entanto, por ser criação de um humano defectível, pode incorrer no erro, jogando o piche verbal sobre a veracidade dos fatos, ou reduzi-los a tal ponto, com a pouca proficiência lírico-literária, e em arranjo com alguma mídia que a enleve, cabendo a nossa repreensão, que as suas palavras acabam sendo tidas como dignas de apreciação.
Portanto, para finalizarmos, se é válido dizer que tudo podemos mas nem tudo nos convirá, pois há coisas que são melhores quando deixadas dentro da gaveta, e o que criamos não se repercute no asseio de nossas interpretações individuais somente, mas se dispõe a uma universalidade de pessoas com intenções e níveis de conhecimento muito distintos. O livro pode ser tão proveitoso quanto um carro, mas a sua existência não pode ser tida com menos importância, afinal, se pararmos para pensar, muitas loucuras já foram cometidas na humanidade por homens de leitura vasta, que teorizaram com sangue o resultado de suas reflexões sobre tudo o que aprenderam – até mesmo fora dos livros.
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