quarta-feira, 13 de abril de 2011

Literatura: um fantasma visível?

As investigações acerca de uma possível essência da música brega empreendida pelo sociólogo e colega de site Vina Torto me trouxeram uma série de reflexões acerca das delimitações de tudo que está posto na realidade.


Tenho percebido que, embora a literatura seja um fenômeno que se vive, que se debate, que afeta, que lê o mundo e que até mesmo influencia ações dentro deste, se formos a fundo numa questão ontológica, no sentido de termos de forma altamente visível o que é a literatura, frustramo-nos na identificação da característica essencial imanente deste fenômeno.


Mais à frente,certamente, acharemos arranjos de poder envolvendo tal definição, não à toa temos conceitos como paraliteratura, que, segundo sugere brilhantemente o site www.dicio.com.br trata-se do "conjunto das produções textuais (foto-romances, histórias em quadrinhos etc.) excluídas pelo julgamento social da literatura propriamente dita". Ou seja, tal como o nosso caro pesquisador Vina identifica problemáticas acerca de QUEM define o Brega, podemos indagar a respeito de quem diz o que é a literatura. Mas comecemos com prévias considerações ontológicas.


Há uma série de problemas acerca da detecção de características decisivas da literatura. Os formalistas russos, no início do século XX, buscaram a essência do literário no estranhamento. Caberia, então, à literatura, deslocar um discurso cotidiano, impregnando-o de uma dimensão nova, tornando-o estranho. Os formalistas buscavam, pois, a literaturidade, os usos especiais da linguagem. Não a toa Roman Jakobson afirmava que ‘a literatura consistira numa forma de escreve que violentaorganizadamente a linguagem ordinária.
Entretanto, há de se convir que este estranhamento depende do olhar do sujeito, o que coloca em evidência a legitimidade desta pretensa característica essencial. Ora, em primeiro lugar: qual é a linguagem ordinária a se fixar como padrão, a que obedece a norma culta? Não, uma vez que esta é corrompida a todo instante em todos os meios, de forma mais ou menos grosseira. Há de se falar portanto numa pluralidade da linguagem ordinária. Pois esta varia de acordo com a classe social, com o Gênero, dentre outras variáveis.  Aliás, reforçando tal argumento, profetiza com maestria Terry Eagleton, “não há recursos “literários” -metonímia, sinédoque, (...) etc. - que não se empregue continuamente na linguagem diária”.

Outro caminho seria  o fato de se tratar a literatura de um discurso com fins pragmáticos, ou como uma verdade em si. Isto se esbarra no fato de que muito de que o que hoje é considerado literatura não pode não ter nascido com tal pretensão e vice-versa (não se esquecendo de outras formas linguísticas como a piada). A carta de Pero Vaz de Caminha pode nos parecer, hoje, deveras poética, embora provavelmente não houvesse intenção do autor num fazer poético.

As questões de ordem axiológica são mutáveis no tempo e no espaço. O que é hoje filosófico, pode ser amanhã literário, e vice-versa. Mesmo aparentemente cada vez mais desprovidos de metafísica, nós, seres da conteporaneidade, criamo-nos e baseamo-nos em nossos próprios mitos. Quem garante que a imanência de hoje não será tratada daqui a mil anos da mesma forma com que tratamos os pressupostos transcendentais dos medievais?

Aliás, Terry Eagleton, marxista, põe o seguinte questionamento: “Karl Marx se preocupava em saber  o porquê de a arte da antiguidade grega conservar seu “encanto eterno” ainda que fizesse muito tempo que houvera desaparecido já as condições que a produziram. Pensemos bem, uma vez que não tenha a história já terminado, como poderíamos afirmar que tal arte será, de fato, “eternamente” encantadora? Suponhamos que, graças a expertas investigações arqueológicas, descobrisse-se muito mais sobre o que a tragédia grega em realidade significava em seu tempo, e fosse constatado um enorme vão entre como tal arte interessava ao público contemporâneo a esta e como nós hoje nos interessamos e , então, revelássemos tais obras à luz de um conhecimento mais profundo. O que se poderia dar por resultado – entre outras coisas – seria deixarmos de apreciar estas tragédias e comédias. Quiçá chegarmos a pensar que um dia tínhamos gostado, porque, inconscientemente, costumavamos lê-las à luz de nossas próprias preocupações”.

Enfim, estas são apenas problematizações iniciais. Espero enriquecimentos...

Referência: EAGLETON, Terry. Una introducción a la teoría literaria. Buenos Aires : FONDO DE CULTURA ECONÓMICA, 1998.

*A tradução dos excertos foi minha

2 comentários:

  1. Josua,

    Primeiramente quero dar meus parabéns ao seu texto. Muito esplêndido.

    Quando eu pensei no fantasma visível ao estudar a musica brega, foi por que eu passei a perceber que o tempo todo nós vivemos um processo de ajuste, desajuste e de reajusta dos nossos discursos e do nosso olhar sobre a realidade que nos cerca.

    De um lado nós sabemos que as classificações não são definitivas, visto que elas refletem o olhar de cada um. Por exemplo: como você observou, de fato posso definir com clareza o que seria A linguagem literária? Qual a linguagem padrão? Existe um discurso literário para sempre? Um “encanto eterno”, assim como você chamou atenção? Até quando uma obra é considerada válida e quem prova que uma obra inválida não pode ser reconhecida em tempos futuros?

    Do outro lado, inevitavelmente classificamos as coisas, pois é através das classificações que nós somos capazes de compartilhar um sentido com o outro e de nortear nossas ações. Por exemplo: mesmo não tendo definições precisas, a gente procura as prateleiras de livros de literatura, de matemática, assim como as prateleiras de samba e de música brega.

    Portanto, por que um fantasma visivel? Ora, ao mesmo tempo em que sabemos que existe literatura, o que de fato é literatura? Sabemos o que é uma linguagem correta e temos consciência do discurso que é aceito pela "verdade" oficial? Mas o que é verdade? O que é oficial? O que é correto? É para quem?

    Por isso mesmo que compartilho com você, afinal, a literatura por receber a classificação de literatura, passa a ter caracteristicas que a distinguem das demais, e por isso mesmo, é visível, visto que sabemos diferenciar literatura da física.

    No entanto, quem disse que a literatura pode ser definida com precisão? Até quando se existe a literatura de forma autonoma enquanto campo do conhecimento? A literatura é também português, redação, mas é redação e português? Se for, por que é literatura? Nota-se com isso por que a literatura é invisível, e, portanto, fantasmagóica hehehe.

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  2. Caro Vina, obrigadíssimo pelas observações pré e pós-texto. Abração!

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