segunda-feira, 20 de junho de 2011

Com Clarisse

Com Clarisse eu tinha fôlego para gritar palavras de paz. A casa onde nós morávamos ficava longe de tudo e se encontrava em meio a uma colina. No fim de tarde nós dormíamos deitados em nossa rede. Eu sentia o cheiro de seus cabelos castanhos e o calor de sua face adormecida em meu peito. Ficava olhando as montanhas e rios que nos cercavam. Com Clarisse as coisas pareciam ser mais simples e tudo não passava de um momento singelo de espera tranqüila por um outro dia. Enquanto Clarisse dormia, eu andava em volta da vida pensando coisas que só faziam alimentar os meus sonhos. Sentia-me vivo ao deixar me perder com suspiros internos e intensos de paz e ao me acolher no silêncio brando das árvores e da brisa que passava de leve por mim.

Não pensava em buscar desejos desmesurados, pois eu tinha os olhos de Clarisse, eu a tinha todos os dias a dar voltas em torno do espelho a me mostrar seu vestido. Ela era um constante renascer, era uma beleza simples, era um descanso velando minha vontade de viver. Com Clarisse eu não me colocava em dilemas e desgastes, pois não tinha pretensões de voar além de nada do que eu podia sentir como vida, mas por ela eu também voava além dos limites de meus olhos. Quando eu a deitava na cama ao anoitecer, eu me calava diante de seus gestos, de sua preguiça provocativa, de sua timidez ousada de felicidade. Sentia os seus sussurros e cantava o gozo de quem sentia reencontrar o ímpeto que há muito parecia ter desaparecido.

Com Clarisse eu acreditava em meus sonhos e vivia intensamente a minha alegria e minha disponibilidade para amar. Adorava ouvir o seu cantarolar enquanto varria as folhas secas que caiam em nossa varanda, adorava sentir aquele seu jeito de quem não queria perder sequer um segundo da vida, de quem queria se saciar de um amor e que fazia de tudo para nunca deixar morrer a chama que consumia e que alimentava esse amor. Adorava ver Clarisse de cabelos molhados e soltos com seu corpo moreno em volta da toalha enquanto ela se posicionava em frente ao espelho passando a escova para pentear seus fios encaracolados. Clarisse sorria para mim ao me ver faminto pela paz que ela trazia para o nosso lar e me jogava na cama com todo o ardor que nunca se acabava com a sua serena tempestade de todos os dias.

Quando eu saía para colher sonhos do mundo para preencher a nossa casa, eu não parava de pensar em cada detalhe escondido que se fazia revelado em meu dia a dia com Clarisse, mas certa vez ao voltar do mundo, ela não se encontrava de braços abertos para mim. Olhei para o chão e vi um amontoado de folhas secas em nossa varanda e a nossa rede vazia. Não ouvi o seu canto e o espelho não refletia Clarisse com seus cabelos encaracolados. Desci a colina, olhei para todos os lados do rio, subi serras e comecei a chorar. Voltei para a casa, deitei na cama, esperei Clarisse voltar. O tempo foi passando, o céu escureceu, as sombras não passavam de silêncios atormentados. Estirei-me na cama e dormi.

Ao me acordar, encontrei Clarisse sentada na cadeira olhando para o mundo. Ela sorriu e me pediu para colocar sua face em meu peito. Deitamos na rede, sentimos a brisa da noite passar por nossos rostos, juramos palavras de amor e sorrimos. Clarisse dormiu. Fiquei a olhar para os seus seios vacilantes fora da blusa iluminados pelo clarão da lua e para os seus olhos meigos. De tanto velar seu sono, eu dormi também. Depois daquele dia, vários outros se passaram, mas teve um momento em que foi necessário aprofundarmos nosso sono, pois estávamos muito cansados de tanto sonhar. Desse dia em diante, apenas nos acordamos. Clarisse passou a enfrentar sozinha as batalhas e as conquistas de seus próprios sonhos e eu também. Da rede, da casa, do espelho, das folhas, das sombras, das árvores, só nos restaram as lembranças e esse sentimento gerador de forças e de saudades que se chama amor.

5 comentários:

  1. Se eu fosse Vina não escreveria mais textos teóricos. Além de eles todos, quase sem exceção, serem mais do mesmo, chatos e permeados daquela parcialidade muito evidente, certamente não influem no modo de pensar de ninguém que os lê.

    O mesmo não posso dizer desse belíssimo texto, tão extravagante nas suas figuras quanto o é a personalidade do autor que o escreveu. Sendo Clarisse naturalmente o objeto a que o narrador se direciona, a sensibilidade através da qual isso é feito, a mesma que nos faz supor demasiado desgaste para ser exposta com tanta compenetração, pode ser encarada como o único sujeito dessas linhas. Certamente nenhum outro texto seu, sobremaneira os teóricos, chegam os dedos desse. Muito bom, mesmo!

    João Paulo dos Santos

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  2. Só para registar, caso seja necessário. Os textos "teóricos" de Vina revolucionaram meu olhar em relação à música, por exemplo.

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  3. João

    "não influem no modo de pensar de ninguém que os lê."

    Devagar com a sua desgastante prepotência meu lindo. Não é por que não influem em seu modo de pensar que necessariamente você possa se achar no direito de dizer que meus textos não influenciam NINGUEM. De muitos revolucionários, o mundo anda coberto de tiranos hehe. Outra coisa: não poderia deixar de ser parcial, afinal, não escrevo textos teóricos. Nem teóricos eu utilizo em meus textos. Minha escrita aqui no torto eu chamo de ensaios críticos e livres

    No mais, muito obrigado pelos seus elogios. Valeu mesmo

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  4. Josua,

    Que bom saber que pelo menos para os mais livres, mais abertos e menos classistas as avessas como você, meus textos possam ao menos provocar algumas reflexões a sua pessoa

    abraços

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  5. Perdão, Vina. Acho que exagerei mesmo. Mas, enfim, seu texto ficou muito bom e poético.

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