terça-feira, 26 de junho de 2012

Tia Mainha e o cinzeiro

Andando pela Osvaldo Aranha, reencontrei tia mainha, uma grande figura que sempre deixa marcas em minha vida. Tia mainha andava pela Osvaldo com o intuito de sentir de forma mais real o conto trazido por Roosevelt Leite intitulado “Baratas” que foi postado no torto. Ao me ver, resolveu me fazer uma relação de um cinzeiro quadrado de vidro que ela tinha em mãos com a vida e com a idéia que ela fazia acerca do torto.
Com seu velho pente verde-cana preso aos seus cabelos assanhados, tia mainha disse:- Querido Vina, a vida quer ser quadrada igual a este cinzeiro que trago em minhas mãos.

De um momento para o outro, ela joga enfurecidamente o cinzeiro no chão e me diz: - Na verdade, a vida quer ser apenas aquele cinzeiro inteiro. Ela apenas quer, mas a vida é também esse cinzeiro despedaçado que você enxerga aí no chão.

Sentando no chão vagarosamente, tia mainha me pediu para eu sentar com ela. Sentei.

- Menino idiota, eu gostaria que você me entendesse.

- Tia, se um dia eu deixar de ser idiota, talvez eu a entenda, ou talvez seja através da minha idiotice que eu consiga entendê-la.

- Seu estúpido, veja bem: essa vidinha de merda do caralho cria a todo instante seus mecanismos de controle com o intuito de manter a ordem das coisas, e você com sua cara eqüina, sofre quando o outro se desvia daquilo que você criou como expectativa.
Depois de breves segundos de silencio, ela olha para mim e diz: -você é um panaca que se sentou no chão só para se autoafirmar.

- Tia, desculpe-me, mas foi a senhora quem me pediu para eu sentar.

- Coisinha ridícula, você sentou por que eu pedi? Você queria sentar?

- Ah, sei lá! O que eu gostaria mesmo é que a sua pessoa me explicasse sobre aquilo que antes era cinzeiro, antes da senhora espatifar tudo no chão.

- Menino quadrúpede, por que ele não é mais cinzeiro? As coisas só podem existir quando elas existem da forma como você aprendeu como elas devem existir? E se eu disser que você tá vivo? Será que to enganada?

- Não.

- Você sabe de fato o que é estar vivo?

- Nem sempre.

- Meu filho, veja o seguinte: a afirmação que você está vivo é como o cinzeiro antes de ser espatifado, no entanto, a falta de certeza acerca do que é de fato estar vivo, torna você igual a esse cinzeiro estraçalhado no chão. Mesmo admitindo não ser a completude do real que você acha que é, você deixou de ser você? Ao se ver no espelho, você sabe diferenciar eu de você não é? Então perceba que você é como um cinzeiro que mesmo sendo despedaçado não deixou de ser e de se enxergar como um cinzeiro.

- Ah, a senhora está dizendo que a verdade pode ser verdade sem necessariamente precisar provar que é seguramente uma verdade plena em si mesma, não é isso?

- Porra, claro né!

- Certo, mas qual a ligação entre o cinzeiro, a vida e o torto?

- Ei, compre uma pinga ali pra sua tia mainha.

- Explique-me primeiro e depois eu compro. Estou curioso.

- Depois um caralho! Você acha que eu vivo de futuro é seu viadinho?

Levantei e fui comprar a pinga pra tia mainha.

- Pronto tia, pode continuar.

- Veja: o seu torto pelo que eu entendo, por admitir que é resultado de um determinado tempo histórico e resultado de toda uma construção de valores ensinadas socialmente, busca caminhar de acordo com aquilo que a sociedade estabeleceu como legitimo. Portanto, o torto admira o cinzeiro e quer o cinzeiro em sua integridade.

- Isso

- Mas por outro lado, o seu torto admite que a integridade das coisas, ou seja, a verdade em sua essência, não passa de fantasias construídas por nós, e por isso mesmo, apesar de concreto, ele se dissolve diante de uma infinidade de interpretações geradas pelo olhar de cada um. Nesse sentido, o torto admira e também quer o cinzeiro estraçalhado em várias partes.

- Isso. Mesmo que eu acredite nos valores impostos socialmente, na forma “real” que a sociedade quer que eu acredite, ou seja, no cinzeiro inteiro; por eu acreditar que esses valores, por mais que sejam recorrentes para boa parte das pessoas, são compreendidos de forma diferente por cada um de nós, eles são iguais a esse cinzeiro estraçalhado aí no chão.

- Isso minha coisinha acéfala. Portanto o que eu entendo é que o seu torto acredita na verdade, mas acredita também nas armadilhas da verdade. Talvez seja por isso que ele constrói seu discurso sempre tendo como base a contradição, e por isso mesmo, ele admite que seus caminhos, antes de serem retos, entortam-se o tempo inteiro. Estou certa?

- Concordo com a sua certeza sem jogar fora a indagação que você colocou em sua afirmação.

- Não entendi.

- Caralho, deixe de ser eqüina, babaca, panaca, vadia, acéfala e ridícula sua velha escrota e filha da puta!

- Olhe, você me respeite, pois sou mais velha que você viu!

- É mesmo? E se eu disser que a hierarquia é de fundamental importância para que a gente estabeleça de forma clara a organização da sociedade, mas nem por isso significa dizer que ela seja de fato verdadeira? Afinal, o cinzeiro não deixou de ser um cinzeiro por que foi quebrado né!

- Por que ser tão grosseiro comigo Vina!

- Ah, aproveite e limpe os caquinhos do cinzeiro que ficaram espalhados pelo chão para que ninguém venha a se ferir.

- Eu limpo, mas antes arrume mais uma pinga pra sua tia mainha meu menino...

- Antes um caralho! Você acha que eu vivo de passado é sua viadinha?

2 comentários:

  1. Estava com saudades das histórias do mestre Vina. Sim realmente essa conversa persiste e existe dentro da mais fertil mente. Afinal o que é o que, no entanto eu seio o que é, ou penso que sei. O importante é estar sempre aberto para APREENDER daqui ou dali o que nos é possível aqui e agora do real. Muito bom texto. Abraços!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Roosevelt

      Acredito que as pessoas deveriam exercitar um olhar-trânsito para os objetos que são dados na realidade. Questionarmos acerca da relação parte/ todo é de fundamental importÂncia para que a gente evite em cair em velhas posturas autoritárias e submetidas a discursos-padrões do politicamente correto.

      Acredito que sabendo verificar a oscilação entre as partes e o todo, passaremos a enxergar a verdade das coisas como algo resultante de meros interesses históricos e circunstanciais. Um valor que eu concebo a determinado objeto, por exemplo, pode variar de função.

      Não necessariamente a função que concebo a determinado objeto em sua totalidade, significa afirmar que esse valor é total e completo para determinado objeto. Bastam haver novas circunstâncias para que esse objeto mude de função, e consequentemente, de valor. As funções primárias não são estagnadas.

      Outra coisa: a realidade, mesmo se encontrando aparentemente completa aos nossos olhos, é feita de partes, ou seja, de recortes que se articulam em uma rede de infinitos sentidos,e a função original passa a não ter mais a originalidade.

      Por outro lado, é por isso que o todo, mesmo sendo recortado em partes que se articulam em variáveis incessantes com outras partes, não significa dizer que ele não pode ter a mesma função. Eu sou eu, mas nem por isso me entendo por completo, porém, quem vai me dizer que é por isso que eu não sou eu? Eu sou o todo em partes e partes que completam esse todo.

      Concluindo: o todo por ser fragmentado, não necessariamente é o todo no sentido que vejo; mas por outro lado, como o torto é feito de partes, quem me prova que essas partes não representam o todo?

      Excluir