quinta-feira, 21 de junho de 2012
POSSESSÃO
SÉRIE CONTOS URBANOS
- Eu nunca faria uma coisa dessas! Isso não faz o meu estilo. Entendeu?
- Você pode estar certo, mas, também pode estar errado. Você tem certeza do que diz?
- Meu caro doutor. Eu estava na Praça da Matriz próximo ao trem quando eu vi Lucia com Gerinaldo. Não suportei e fiz o que fiz...
“Eu fui trabalhar aquele dia normalmente. Fiz as minhas obrigações cotidianas até que tudo desabou com um telefonema estranho. “Sua mulher está na praça com Gerinaldo”. Eu saí do trabalho e fui até a praça. Andei uns quatro quarteirões. De longe eu os avistei encostados no trem. Os dois estavam conversando. Aproximei-me. Eles nem perceberam minha presença. Continuaram a conversar. Lucia contava para Gerinaldo que deseja minha morte e que se soubesse de alguém ela pagaria para me matar. Gerinaldo a aconselhava que não, que entregasse tudo nas mãos de Deus.
- Ah, se eu soubesse de alguém. Eu mandava matar o Anderson. Anderson é um cara muito egoísta. Eu não suporto mais esse cara mandando em mim.
- Lucia, tenha fé em Deus. Existem outros caminhos.
- Eu sei, mas, dói muito amigo!”
Lucia era uma moça muito tímida e inibida. A menina tinha muito medo e insegurança sobre a sinceridade das pessoas para com ela. Desde nova que ela era assim: “Menina!” Deixa de ser complexada!” Era assim que Etelvina, sua finada mãe, dizia baixinho, perto de seu ouvido. Lucia amava muito seus pais. Primeiro foi Etelvina, o diabetes não perdoou. Depois foi Henry Clay, seu pai. O homem fumava muito, a doença braba nos pulmões o levou alguns anos após a morte de sua mulher. Lucia casou com Anderson aos dezessete anos. O casal foi morar na Rua Santa Catarina quase esquina com a Rua Acre.
- Aqui é tão bom meu amor!
- Sim, a gente tem acesso a todas as comodidades que o Siqueira oferece. Só precisamos ir ao centro em casos muito urgentes, pois, aqui, temos tudo por perto.
Por um bom tempo, o casal viveu as bênçãos de Deus. Anderson parecia ser um marido muito honesto. Um homem íntegro, cumpridor de seu dever.
- Mãe! Tenho que agradecer muito a Deus por Anderson, minha mãe!
- Sim, minha filha! Viva Deus! Seu marido é um homem bom.
O povo comenta que nos dias atuais, um casamento feliz é muito raro. As varas de família atestam a veracidade dessa suposição. As famílias estão em crise, mas, segundo Frederico, o filósofo do Siqueira: “O casamento é uma tortura necessária. Ruim com ele, pior sem ele”. Frederico tinha o costume de tomar umas, todas as noites, em um barzinho na esquina da praça mais famosa do Siqueira.
- Sim, minha mãe, Anderson é um anjo de marido!
- Vá por mim! Trate bem o rapaz, pois, esse rapaz é de ouro!
O eco da voz de sua finada mãe a acompanhava nos momentos de crise. Uma noite, Anderson chegou tarde. O moço cheirava a álcool.
- Anderson, meu amor, o que aconteceu?
- Você não sabe? Os ônibus estão em greve. Tive que vir a pé do trabalho. Tudo bem, vir a pé explica o horário, mas, o cheiro de cerveja dizia que houve mais coisa. No entanto, a menina Lucia, agora com vinte e cinco, preferia por uma pedra sobre o assunto.
- Vá tomar banho querido! Tem comida quente. Quer que eu ponha para você?
A moça era prendada como são a maioria das fêmeas nordestinas – Lucia fora criada para o lar definitivamente. Quando ela terminou o curso de Assistente Social ela dedicou tempo integral ao lar. Embora sem filhos, Lúcia se comportava como se fosse uma mãe cheia de crianças ao redor.
- Anderson você gosta de cortina rosa com babados brancos? Eu achei que a gente podia ir preparando o quarto de Alice.
- Que Alice?
- A nossa Alice!
- Lúcia, nós não temos filhos. E eu não quero ter filhos ainda. Tenho tanta coisa para fazer primeiro. Todas as vezes que seu marido dizia: “Tanta coisa para fazer primeiro”. Lúcia entrava em crise de ansiedade e depressão. A coisa começava com uma dor nas têmperas que com o tempo subia para o chacra coronário. Quando no chacra, a dor se transformava em um peso forte, uma enxaqueca quase insuportável.
- Mãe, graças a Deus que você veio, eu estou tão deprimida. Discuti com Anderson. Mãe, por que os homens não querem ter filhos?
- Filha, os homens não gostam de compromissos domésticos. Eles preferem a liberdade. Eles não têm o instinto de maternidade.
Lúcia tinha as crises constantemente. A casa estava acostumada com o quadro da moça. À vezes, ela se trancava no quarto e passava o dia inteiro sem fazer nada. À noite, quando seu marido voltava, a discussão explodia. Lúcia chorava e ia se deitar. O casal tinha a vida sexual reprimida em virtude dos problemas de temperamento. O tempo passou. Os pais da menina bateram as botas. Lúcia agora estava sozinha no mundo. Anderson começou a chegar cada vez mais tarde. A situação em casa piorava:
- Meu amor, eu não sirvo para você não, é?
-Não é nada disso Lucia! Estou fazendo hora extra no serviço! As horas extras demoraram meses para terminarem. Lúcia estava muito estranha.
Certo dia, Lúcia arrumava as coisas em casa. A calça bege de Anderson estava caída, quase escondida atrás do guarda-roupas. Ela encontrou um bilhete no bolso esquerdo, o bilhete dizia assim: “Anderson, preciso falar com você em particular, pois, não suporto mais a situação”.
A leitura do pequeno texto foi como uma bomba atômica para Lúcia: “Meu marido está me traindo”. Esse passou a ser o pensamento dominante na mente da jovem Lúcia. Um pensamento triste, por vezes, de agonia e muita ansiedade. O quadro da moça piorou. Agora, quando seu marido saía para o trabalho, a moça do Siqueira ia ao cemitério da Leste, e lá passava boa parte da tarde. Era assim que a moça aliviava as tensões de seu coração ferido. Lúcia passou a gostar da morte. Viu muitos enterros; viu muitas famílias chorando a perca de seus entes. Um dia, ela encontrou um rapaz amigo de Anderson no sepultamento de um moço que morrera de dengue. Seu nome era Gerinaldo. Este estivera na casa de Lúcia muitos sábados para assistir os jogos do Campeonato Brasileiro. Gerinaldo gostava muito de Anderson, era um amigo leal e sempre presente. Anderson, por vezes, mencionou seu nome para sua esposa. “Amor, eu estava com Gerinaldo”. “Querida, vou passar na casa de Gerinaldo”.
- Gerinaldo! Que bom que te encontrei!
- Oi, Lúcia, que satisfação, embora no cemitério! Que fazes aqui?
- Vim para o sepultamento dos ossos de papai e mamãe.
- Ah, meus sentimentos!
- Você não foi trabalhar hoje não? Já viu Anderson?
- Ele está lá trabalhando. Quanto a mim, eu pedi para dar uma saidinha rápida.
- Sei. Vocês gostam muito de umas saidinhas rápidas não é? Gerinaldo riu e continuou a conversa com a amiga de seu melhor amigo.
- Hoje em dia, para se resolver as coisas, precisamos muito dessas saidinhas no horário de trabalho.
- Preciso de uma saidinha sua. Disse Lúcia com um tom de tristeza. O rapaz percebeu de imediato que havia problema. Anderson, por vezes, comentara com seu colega sobre a depressão de sua mulher.
- Sim amiga Lúcia conte sua história.
- É que preciso muito, muito mesmo conversar com alguém sobre Anderson. Gerinaldo preferiu não contar ao seu colega que estava se encontrando com Lúcia para falar dele. Os encontros se repetiram. Lúcia abriu o coração para Geri. Gerinaldo se tornara Geri – uma pessoa de casa.
- Sabe meu amor, em seu aniversário vou chamar seu melhor amigo.
- Quem?
- Gerinaldo, ora, será que você não sabe que ele é seu amigo de verdade?
- Amigo somente Deus. Tenho conhecidos apenas.
- E eu? Não sou sua amiga não?
- Claro, meu amor, você é muito mais que isso!
Lúcia e Gerinaldo se encontraram algumas vezes no centro da cidade. A Praça da Matriz sempre foi linda e um ótimo lugar para se conversar mais a vontade. Anderson soube de tudo por meio de um telefonema anônimo, mas, não contou nada a sua esposa. O rapaz, muito desconfiado decidiu vigiar a menina.
- Rapaz, bem que meu pai dizia: “Amigo é Deus!”
- Procure ajuda especializada, Anderson. Você sabe que você nunca superou a cena que você viu no passado. Anderson viu sua amada genitora fazendo amor com um homem de etnia africana, que respondia pelo nome Djamal. Ele nunca esquecera os gemidos de prazer de sua santa mãe nem a situação em que ela se encontrava no momento da visão. Isso foi um trauma muito forte.
- Sim, acho que preciso. Anderson sentia cala frios por todo o corpo. Suava muito e tinha dores nos ombros. De manhã ele acordava com os dentes serrados. Estava sob tensão. Não mais dialogava com Lúcia. E esta pensava que tudo era por que seu marido tinha outra mulher.
- Gerinaldo! Preciso falar com você.
- O que foi Lucia?
- É Anderson. Ele está mais estranho! Gerinaldo atende a voz nervosa de Lúcia e marca um encontro na Praça da Igreja Matriz.
Lúcia estava tensa o tempo inteiro. Ela confessou que sua revolta era grande. Implorou que seu amigo Gerinaldo lhe contasse sobre o caso de Anderson. Gerinaldo nada disse e nada sabia na verdade. Tudo não passava de um mal entendido.
- Eu vou perder a cabeça Gerinaldo! Primeiro foi a falta de sexo, depois, hora extra, agora, bilhetes nos bolsos. Tá tudo muito estranho! Gerinaldo procurava amenizar as coisas. Mas, não obtinha sucesso. Foi nesse instante que Anderson chega e escuta a conversa de sua amada esposa. Ela confessa para seu amigo que desejava matar seu esposo. Ela pedia forças e apoio. Gerinaldo a abraçou para confortá-la. Seu marido, com os olhos esbugalhados via e ouvia tudo. Anderson vai para casa e espera sua mulher chegar.
O relógio da cozinha bate nove horas da noite. Lúcia chega à sua casa. A moça usava uma calça jeans azul desbotado, uma tomara que caia preta e sandálias pretas de couro. Seu rosto estava sujo de areia preta, seus cabelos desarrumados. Havia em sua aparência um ar de desespero. Quando o casal se encontra na penumbra da cozinha, Anderson pergunta ironicamente:
- Como vai o seu namorado Gerinaldo? Eu ouvi alguém dizer que me mataria! A voz do homem sobe muito a ponto de chamar a atenção da vizinhança. Contudo ninguém aparece. Lúcia responde a seu marido; os dois discutem por alguns segundos. Anderson empurra sua mulher contra a parede. Bate a cabeça dela na parede algumas vezes. Lúcia desfalece nos braços de seu amor. “E agora?” “Será que morreu?” “Eu ... eu ... não queria fazer isso!” “Meu Deus!” Anderson deita sua mulher no piso da cozinha e se senta ao lado de seu “corpo”. Por alguns segundos, o homem realmente pensa que Lúcia está morta. Ela respira e tosse. Isso foi um alívio para seu marido. Lúcia recobra os sentidos e passa novamente a agredir com socos a seu esposo. “Eu vou matar você!” Anderson se lembra da cena dela com Gerinaldo e de suas palavras ameaçadoras: “Eu devia matá-lo, tenho vontade de mata-lo”. Os dois iniciam uma luta corporal onde não se sabia quem seria o vencedor. Ela segura o pescoço de seu amor com as duas mãos tentando enforcá-lo. O mesmo ele faz com ela. O silêncio da casa foi quebrado com pancadas na porta. Anderson continua apertando o pescoço de sua amada. Seu rosto estava tão transfigurado quanto o dela, no entanto, Lúcia rendeu os braços esticando-os ao lado de seu corpo. Anderson deixa Lúcia no chão da cozinha e vai até a porta da frente. O vizinho ouviu a briga e veio perguntar se tudo estava bem.
- Seu Anderson tudo bem?
- Oh, Florivaldo, satisfação, rapaz! Como tudo bem?
- Minha mulher escutou uns gritos aqui. E...
- Ah, é a televisão do quarto que estava alta. Florivaldo tomou a direção do sofá e se senta. O mesmo faz Anderson. A conversa de vizinhos dura uns quinze minutos. Quando Anderson retorna a cozinha para ver sua mulher ela estava pálida e com manchas de sangramento interno no pescoço. Anderson sufocara sua mulher sem sentir. Ele entra em pânico. Pensa em chamar os vizinhos. Mas via que não podia confiar em ninguém. “Foi só um acidente”. Pensava ele. Ao mesmo tempo ele via que nunca mais teria sua mulher com ele. Lágrimas de saudade, tristeza e arrependimento caíam de seus olhos. “E agora meu Deus!” “Vou ligar para Gerinaldo!” “Não!” Ele se senta ao lado do corpo toma sua mão e a beija. Ao lado do cadáver, Anderson se lembra dos momentos juntos, no tempo em que eles eram felizes. Ele decide fazer amor com o corpo de sua mulher. Anderson tira-lhe as roupas e se serve do corpo de sua esposa morta. Com o corpo suado, Anderson se deita ao lado dela como se ela estivesse viva. Anderson pega no sono.
O barulho dos carros acordou a Anderson quase oito horas da manhã. O sol estava um pouco quente. Anderson se levanta e decide o destino do corpo. Ele decidiu cortar sua mulher em pedaços e guardá-la no freezer. De noite ele levaria os pedaços para algum lugar. Ele retalhou o corpo em pedaços pequenos. Os pedaços foram colocados em sacos plásticos pretos. A cabeça foi colocada numa caixa de papelão e enterrada no quintal.
A noite chegou e Anderson não levou os sacos. Mais um dia foi embora, e os sacos continuavam guardados. Anderson não saia de casa. Alguns vizinhos bateram na porta e não sentiram, ou viram nada. Anderson continuou em casa com o corpo congelado da mulher.
Numa manhã de terça feira, dia de Nosso Senhor, Anderson joga os sacos de lixo no container da rua. Eram sacos pretos pequenos. Os cães latiam muito. Então, me aproximei do local após sua saída e vi um pedaço de língua humana, eu acho. Um gato cinza lambia o dedo pequeno de uma mulher. Senti uma dor no peito forte. Lembrei-me da vizinha. Ela não mais apareceu pela rua ou pela casa. A polícia fez investigações sobre o paradeiro dela. Nada encontrou que incriminasse o rapaz ou elucidasse o caso. Depois do acontecido, Gerinaldo foi embora para Belém: “Tá louco, jamais voltarei para perto daquele canibal”. Anderson foi para a academia para ver se emagrecia um pouco. Seu psiquiatra, Doutor Belenildo, tem tentado descobrir alguma coisa, mas, nada sai da cabeça de Anderson.
- Doutor Belenildo!
- Sim, investigador Freitas.
- Anderson é louco?
- Não! Na psiquiatria ele não é doido, mesmo, que as pessoas no senso comum digam que ele é.
- E ele é o que então?
- Ele é um homem possuído pelas suas próprias fantasias.
- Então ele é um possesso?
- Sim, muito provavelmente!
Anderson chegou à sua casa às oito horas da noite. Comeu um pedaço de coxinha, assistiu um pouco tevê e foi para o quarto. Limpou a boneca que agora lhe fazia companhia e se deitou abraçado com ela.
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