quinta-feira, 14 de março de 2013

Arte: uma tradução em pedaços

Temos uma tendência em não aceitar aquilo que se encontra fora da lógica das coisas. Não sabemos lidar com o solto, com o fugidio, com o acidente, com o desencontro, com as colisões. Constantemente queremos a coerência, a simetria, a linearidade, o esperado. Essa busca pelo previsível afeta também a idéia que fazemos acerca da arte. Ao nos depararmos com uma obra que rompa com os sentidos antecipadamente traduzíveis, tendemos a negá-la enquanto arte.

Essa concepção de encarar a obra de arte como uma forma que tem que ser igualmente traduzível a todos é comum no discurso das pessoas. Existe uma necessidade em se ter um sentido preciso para tudo. Quando um leitor analisa uma dada manifestação artística e diz que ela não quer dizer nada e por isso mesmo não é arte, já mostra claramente a redução que o indivíduo faz da arte. Infelizmente temos a necessidade de esperar o sentido universal, o explicativo, o óbvio para que a gente legitime algo como arte.

Mas vejamos: a sociedade vive passando por profundas transformações. Viver nela significa se encontrar em meio a inúmeros discursos. Estes discursos se colidem uns com os outros, provocando assim, as contradições. Não podemos pensar nas experiências cotidianas, se não pensarmos nas intermináveis alterações de concepções de mundo que vão se modificando ao longo da história. Os valores existentes na sociedade são produções de constantes sentidos reelaborados por nós dia após dia.

Com isso, eu quero dizer que os indivíduos são produtores de sentidos, visto que, devido aos contatos estabelecidos socialmente, eles vão agregando novas informações e repensando novas perspectivas sobre eles e sobre as coisas que se encontram a sua volta. Se pensarmos nessa individuação no que diz respeito aos juízos estéticos, logo percebemos que a forma como indivíduo estabelece uma opinião acerca de uma obra de arte, por exemplo, vai se diferenciar do outro.

Entretanto, a sociedade faz com que esse julgamento de apreciação e de juízo estético particular a cada indivíduo tenda a ser esmagado por uma necessidade de imposições de regras fixas e formas de sentidos prontos às obras de arte. A arte, antes de provocar a liberdade e a produção de sentido de cada olhar, passa a ser vista como se fosse uma forma definitiva e universal, como se a tradução de uma arte tivesse obrigatoriamente que ser compartilhada da mesma maneira por todos.

Por que temos a necessidade de definir uma tradução comum a todos para legitimarmos um dado objeto como algo artístico? Na verdade, qual o sentido da arte? Seria gerar previamente o sentido compreendido por todos, reproduzir uma realidade fidedignamente ou seria a capacidade de provocar uma ruína naquele prédio bem consolidado na alma do apreciador para que ele possa reelaborá-lo e repensar suas certezas? Eu fico com a segunda hipótese, mas antes preciso tecer um comentário.

Infelizmente a nossa cultura ainda se encontra fortemente marcada por uma alta dose de autoritarismo. Somos educados a esperar que o outro responda por nós. Devido a essa imposição, encontramo-nos inibidos em produzir nossos próprios sentidos. A opressão chega a tal nível que temos dificuldades em criar nossas próprias opiniões. É devido a essa repressão que necessitamos de respostas prontas na arte, uma vez que temos dificuldades em construir nossas próprias interpretações.

Além disso, vivemos em uma sociedade marcada pela rapidez. Com essa constante pressa, temos a necessidade de excluirmos as contradições e aceitarmos a ordem das coisas. É por isso que buscamos o sentido acabado da arte. Toda a arte que não reduza seu discurso a algo já passível de ser traduzido passa a não ser arte. A praticidade faz com que a gente busque o sentido pronto. Se a arte não comungar com o esperado, mas provocar a desarrumação do que é dito como certo, logo é tirada de campo.

Porém, para mim, a arte significa toda a forma de provocar uma expressão que pode ser revelada através do riso, da tristeza, da reflexão, etc. No momento em que nos deparamos com a arte, inevitavelmente nos colocamos diante do nosso próprio espelho. Como cada indivíduo significa sua própria lacuna e sua própria falta é óbvio que toda a leitura que ele faz da arte imediatamente provoca nele um repensar sobre si mesmo, produzindo sempre um novo sentido.

Como cada indivíduo é uma constante construção e recriação de si justamente devido à sua incompletude, a tradução que ele fará de determinado objeto artístico não se reduz a algo que pode ser totalmente igual para todos os outros. A arte é uma espécie de tradução em pedaços que o indivíduo vai re-elaborar de acordo com a sua necessidade existencial do momento. Ela é uma interminável construção, pois o indivíduo também vive a se construir e se reformular o tempo inteiro.

Devemos acabar com essa idéia comodista de esperar uma forma externa para a arte, além de esperarmos sentidos prontos e previamente traduzíveis por todos. Viver em sociedade implica em estabelecermos formas de comunicação com signos reconhecidos, mas a “desordem” também faz parte do nosso cotidiano, afinal, precisamos navegar no caos todos os dias para que possamos cada vez mais tentar encontrar sentidos em meio a esse infinito mistério que somos todos nós.

Eu quero mais é que o leitor ao se deparar com a minha arte busque construir seu próprio sentido. Que ele re-elabore sua própria afirmação e opinião sobre algo que eu exponho, até mesmo por que inevitavelmente eu sei que as decisões que esse indivíduo tomar em sua vida vão ser resultantes da forma como ele vai buscar re-solucionar seus próprios obstáculos, afinal, o sentido que ele vai conceber as cosias vai ser fruto da forma como ele encara e traduz a sua própria vida.

Eu quero mesmo é que ele se desencontre de si mesmo, perca-se por um instante e que faça sua própria realidade. O que eu quero é um leitor responsável por sua própria trama e que seja livre em transitar nesse imenso oceano chamado linguagem. Que ele se afogue, que construa sua jangada e que veleje com seus próprios métodos a partir de seu próprio mapa e de acordo com as suas próprias convicções. Que ele faça o seu tempo, o seu percurso, sua finalidade e seja capaz de realizar seus próprios sonhos e desejos.

Enquanto autor de uma obra de arte, eu só posso dizer que eu me encontro tão atormentado e perdido devido à força das ondas do mar que se batem nos rochedos do meu peito como qualquer leitor. É mais que urgente fazer com que o meu leitor seja capaz de criar suas próprias estratégias, pois são as suas escolhas que darão significados e soluções às suas contradições. Quero a tradução da minha obra de arte em seu processo, em sua interminável necessidade de gerar sentidos.

Eu quero que o leitor de minha arte seja capaz de amar alguma forma de expressão que eu exponha, mas que também se sinta no direito e na liberdade de odiar essa mesma expressão que por um instante amou. Digo isso porque eu necessito que meu leitor se construa e se destrua diante da minha arte, até por que eu sei que meu leitor é um humano sedento por novos sentidos, e por isso mesmo, um incansável aprendiz de si mesmo, variando conflitivamente em suas certezas e em suas subjetividades.

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