Vivemos em meio a uma cultura autoritária. Submetidos a ela, nós não aprendemos a confrontar o poder. É por isso que, apesar de falarmos que estamos inseridos em um sistema democrático, nós ainda estamos longe de alcançarmos essa democracia enquanto prática. Como posso dizer que vivo em uma democracia se eu temo reivindicar na frente daquele a quem é conferida a autoridade?
Por nos encontrarmos diante dessa estrutura marcada pelo autoritarismo, nós nos educamos a esperar que o outro responda por nós. Em meio a esse contexto autoritário, somos uns infantilizados dependentes da vontade do outro. Temos um medo horrível de pensarmos por nós mesmos. Para quê nós vamos criticar se temos medo da chibata ideológica de um sistema intolerante?
Existe um sintoma muito claro em nossa sociedade autoritária que é a covardia que os indivíduos que se vêem oprimidos têm em questionar aquele ou aquela que determinada estrutura social incube o papel da autoridade. As pessoas têm medo de se comprometer com suas próprias opiniões. Elas têm um medo terrível de se responsabilizar pelos seus próprios posicionamentos.
Quando nos desprendemos mais dessa questão autoritária, não só aprendemos a defender com unhas e dentes os nossos pontos de vista, como deixamos de temer reivindicar nossos direitos, pois passamos a reconhecer a importância das nossas opiniões. Enquanto estivermos em um modelo autoritário, ficaremos à espera do outro e sempre jogando as responsabilidades para esse outro.
Como eu posso aceitar que é a partir da lógica opressor x oprimido que os resultados serão politicamente interessantes para o social? Infelizmente o que eu vejo no ambiente educacional, por exemplo, é a insistência desse paternalismo, seja na logística da coisa, ou seja, o professor ensina e o aluno aprende, seja na forma como o docente apresenta uma obra de arte ao seu aluno.
Ao invés de apenas apresentar uma canção musical, por exemplo, mostrando a relação dela com o contexto em que foi produzida, o docente tem a necessidade de determinar a interpretação da obra, tornando-a limitada ao sentido dado pelo autor. O que eu acho é que deve se apresentar a arte enquanto contexto, mas deixar os alunos livres para construir suas próprias interpretações.
A necessidade de um único sentido interpretativo de uma arte se mostra de forma clara nas avaliações mensais. Ao invés de propor o aluno a construir o sentido conferido por ele mesmo acerca de uma produção artística articulando conceitos que foram trabalhados em sala de aula, os docentes insistem em pôr uma interpretação do texto da arte avaliando se a resposta foi certa ou errada.
Antes de se preocupar com a trajetória do próprio aluno sobre o sentido que deu a arte, motivando-o a alimentar seu senso crítico, sua capacidade criativa e imaginativa, estimulando assim, o reconhecimento de sua própria subjetividade; o docente simplesmente reduz a infinidade interpretativa da arte submetendo o discente a respostas mecânicas, isto é, o artista quis dizer isso ou aquilo.
Se o aluno rompe e extrapola o sentido da arte dando a sua própria interpretação, rapidamente é reprovado pela correção docente. Insistir nessa forma de pensar a arte é estimular a perpetuação da figura do mestre a qual tem causado tanto estrago em nossa sociedade. Além disso, torna os humanos dependentes de uma resposta “verdadeira” como se a interpretação da obra fosse única.
Além de produzir efeitos negativos como dependência de uma autoridade, fragilização da subjetividade, da autonomia, da liberdade, do senso crítico, da criatividade, expressividade, imaginação, esse modelo de se pensar a obra reproduz o discurso da superioridade. É isso: termina que nos tornamos incapazes de reconhecer o nosso potencial criativo, de enxergar nossa potencialidade de recriar sentidos.
Apesar de sonharmos com uma sociedade coerente e perfeita, sabemos que no plano real das coisas estamos em meio a uma sociedade que se transborda de novos sentidos a cada instante. Somos seres em construção, e que a realidade, apesar de ter seus códigos que faz com que a gente conviva de forma compreensiva com os outros, é antes de tudo construções de representações.
É por essa realidade ser feita de representações que não nos dá a certeza de objetividade em nada. E é por encontrarmos carência de definições precisas que nós sempre mudamos nossa forma de nos compreender e de compreender o mundo. Por isso que a arte, antes de se reduzir a um modelo fechado, deve provocar o reconhecimento do sujeito de sua necessidade de construção de si mesmo.
A arte, portanto, deve motivar a tradução em pedaços. Não falo de uma tradução mecânica reduzida a compreensão do sentido dado pelo autor, mas a tradução da recriação capaz de fazer com que o sujeito seja capaz de se repensar. Uma arte que provoque a necessidade de formulações de novos sentidos, enfim, que possibilite o reencontro do sujeito através da desconstrução dele próprio.
Aceitando a tradução feita em pedaços, o leitor vai passar a se reconhecer como construtor da história, pois perceberá que por ser pedaços ele passa por uma constante construção de si e do mundo. Compreendendo a necessidade de refazer seus próprios pontos de vista, deixará o paternalismo que tem rondado o discurso dos defensores da arte enquanto interpretação única e válida da autoridade.
Além do mais, com a desmistificação da arte enquanto modelo fechado de sentidos e limitado ao autor, o leitor passará a renunciar essa visão covarde, amedrontada em questionar a autoridade, pois ele reconhecerá que é dono de suas próprias opiniões e capaz de construir seus próprios discursos. Perceberá que a realidade é ele quem cria, que ele é responsável pela forma como interpreta o mundo.
Aceitando a tradução em pedaços, o leitor não só ganhará a sua autonomia, como também passará a afirmar o seu lugar no mundo. Acreditará que suas opiniões não são desnecessárias por se enxergar enquanto subjetividade. Quem sabe se com essa perspectiva de arte, os humanos passarão a ter menos medo em se comprometer com suas escolhas e com sua forma de lidar com a autoridade?
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