Já me apareceram várias críticas reprovativas acerca de meu texto “Arte: uma tradução em pedaços”. As pessoas me questionam a falta de limites em se interpretar um trabalho artístico. Continuo insistindo em afirmar essa minha posição. Para tentar esclarecer esse argumento, acredito que a gente precisa pensar primeiramente na natureza de determinadas linguagens. A linguagem científica, por exemplo, apesar de necessitar da inspiração, assim como a arte, possui certo diferencial.
Quando eu abordo um tema dentro dos parâmetros ditos científicos, eu preciso construir um conceito que seja claro ao meu leitor, mas nem aí eu consigo evitar o “deslize” interpretativo que esse leitor fará de minha produção textual. Já na arte, eu acredito que essa condição deva ser colocada de forma extremamente liberta. Pensar em uma arte que queira informar com precisão o seu sentido, é retirar um dos poucos objetos que o sujeito ainda tem para ser livre em suas construções.
Para mim, a arte revela nossos fantasmas. Esses fantasmas que nos perturbam constantemente em nosso cotidiano. É nela que nós conseguimos através da nossa interpretação, encontrar meios para amenizar as excessivas dores existenciais que nos perseguem. Não vejo como colocar os sentidos abertos da arte como quem escultura um conceito preciso em um texto científico. A arte pede o rompimento das certezas e nos dá a garantia de criar nosso próprio mundo.
Fizeram-me a seguinte colocação: a arte é contexto, e por isso mesmo, eu tenho que contextualizar o seu sentido. Tudo bem, mas devemos convir que o fato de contextualizar algo não significa impedir que o sujeito possa transbordar o próprio sentido da arte. Que uma produção artística está ligada a um contexto político, histórico, social e estético, eu não tenho dúvidas, porém, o sujeito ao criar sua própria tradução acerca dela, também está refletindo as necessidades de um tempo.
O que me deixa indignado é a reprovação que um sujeito tem que receber por não interpretar de forma literal o sentido que um autor quis transmitir em sua obra. As colocações de determinado discurso artístico podem e devem ser deslocados do sentido dado pelo autor e é aí que se encontra a sua riqueza. Quando trabalhadores nos anos 70 quiseram reivindicar suas precárias condições de trabalho, por exemplo, usaram o trecho “Eu não sou cachorro não” do Waldick Soriano.
Por que eu tenho que reduzir a música “Eu não sou cachorro não” a uma canção que quer falar sobre o abandono de uma pessoa em relação à outra? Se esse é o sentido do autor, não significa que o sentido dado pelos trabalhadores não tenha sido coerente. Será que o sentido retirado de sua função inicial foi inválido? Será que os trabalhadores, a partir da colocação de um trecho da música em outra circunstância, não buscaram com isso afirmar seu lugar e suas identidades? Não fez sentido?
Na minha infância, quando meus pais colocavam a música “Nuvem Passageira” do compositor Hermes Aquino, eu criava uma idéia de um ambiente cheio de ventanias e cores azuladas. Ao ouvi-la enquanto adulto, minha interpretação mudou. Passei a interpretá-la como uma crítica ao contexto marcado pela pressa e pela impessoalidade principalmente quando ela diz “a lua cheia me convida para um longo beijo/ mas o relógio me cobra o dia de amanhã”. O sentido alterou completamente.
Aí eu pergunto: a minha interpretação na infância estava errada? A minha interpretação agora está correta? Nem uma, nem outra. A minha interpretação é diferente porque ela reflete uma necessidade que a minha pessoa tem de interpretar a canção em cada circunstância da minha existência. A forma como eu traduzi e traduzo essa canção se encontra diretamente ligada à minha necessidade de obter satisfações para as minhas angústias em cada momento de minha vida. A arte pede isso: criação de sentidos.
É por isso que falo dos pedaços. A cada tempo de nossa vida, ao passarmos por novas experiências, repensamos os nossos valores e ao nos depararmos com uma mesma expressão de arte, inevitavelmente mudamos nossa opinião sobre ela. Isso acontece pelo fato de que, por sermos pedaços, estamos o tempo inteiro nos emendando. Somos um tecido que nunca se encontra completo. É por isso que eu posso adorar um filme hoje e amanhã já ter outra opinião e vice e versa.
Eu fico muito triste quando vejo as pessoas quererem criar formas até para a interpretação. Eu acredito que essa nossa dificuldade de saber reivindicar e de participar politicamente, além de ser resultado de nossa história, está muito ligada a essa forma de autoritarismo que criamos para as coisas. Se estamos em casa devemos obedecer passivamente nossos pais; se estamos na escola devemos obedecer passivamente nossos professores; se estamos diante da arte devemos obedecer o autor.
Insisto em afirmar que a arte que eu acredito e que apoio é a arte que não infantiliza o seu apreciador. A arte que eu valorizo é a arte que deixa ao leitor a própria responsabilidade de sua interpretação e a criação de seus próprios sentidos. O que eu admiro na arte é essa capacidade de politizar o sujeito não por que ela tem que ensiná-lo como se politizar, mas por que ela o motiva a criar seus próprios percursos e ser o próprio agente ativo de sua história e dono de suas opiniões.
Enquanto o discurso referente à interpretação da obra de arte se reduzir a idéia de algo submetido a formas e padrões, o sujeito não encontrará formas de se emancipar diante do mundo. Sem o estímulo à criação, a reinvenção e a imaginação, o sujeito não será crítico, nem muito menos criativo. Será apenas um agente sem vida preenchendo as frias estatísticas da nossa sociedade. O sujeito precisa da arte para se humanizar e não para ser um simples reprodutor de sentidos.
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