Há um homem que, ritualmente, irrompe-se em minha frente, pára, deita a cabeça para o lado e me observa como que pedindo comiseração. Ele é branco, curto, sua barba e seu bigode lhe ultrapassam a boca e a face, o que me faz associá-lo fisicamente a minha pequena cadela. Não que as semelhanças por aí sobrestivessem, pois o que vislumbro em meu pequeno e dócil animal, que empreende o mesmo ritual, é a mesma clemência por compaixão.
O que acaba de fugir ao ordinário é que hoje me tomaram de assalto pensamentos sistemáticos acerca de tal ritual. De qual dos dois devo eu mais compadecer-me? Comecemos pela regra mais geral aos que têm vida – a dor. A capacidade cognitiva superior que dá àquele homem, enquanto indivíduo da espécie, a capacidade de prolongar o seu prazer, e, por conseguinte, sua necessidade, é a mesma que multiplica infinitamente sua dor em relação à cadelinha.
Ora, aquele homem está tanto em desvantagem com relação a ter um inconsciente depositário, quanto em pensar o futuro. Não lhe é dada, como o é ao animal, a possibilidade de desfrutar plenamente do presente, pois o homem encontra até mesmo gozo em ter preocupações, em ver o barco do futuro afastar-se, bem como ver a sombra deste aproximar-se, tal horror gera penoso gozo. E o pior, quando se sobe ao barco, nada foi como sua preocupação fazia imaginar ser, e ainda, não se aproveita de todo a estada no barco e sim se planeja e se preocupa com a chegada ao porto. Sem contar que o futuro vive a nos pedir escolhas, e estas não vêm senão em detrimento de algo.
Como se isto não bastasse, ainda temos as feridas do passado que tanto nos geram sintomas, a cuja verdadeira fonte na maioria das vezes certamente nunca chegaremos. Qual impedimento nos são nossos rancores, nossos arrependimentos etc. O animal é, tal qual disse o sábio Schopenhauer, a corporificação do presente. Seu gozo é pleno. Pois a vontade se esbarra no conhecimento. Tanto é que, mais bruto o homem, mais acha que é feliz.
Apesar de tais conclusões, a ficha acaba de cair-me. Tanto o homem, quanto o meu animal me olham contemplativamente. É isto! No final, eles que se sentem compassivos em relação a mim, que não posso simplesmente parar e observar, e sim enjaular-me cada vez mais nestas elucubrações incessantes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário