Antônios
As margens dos rios são testemunhas de muitas coisas que o homem faz. Às vezes, elas contam estórias de amor, de ódio, ou simplesmente estórias. O presidente Figueiredo havia subido ao poder. O Brasil estava em ordem e progresso, e as águas do rio Cocó estavam muito turvas; em alguns trechos, eram águas escuras. Um caboclinho cearense costumava banhar-se nas turvas águas do Velho Cocó. A natureza fala conosco de diversas formas. Até nossos gestos corporais humanizados falam do mundo. Assim, uma cena congelada no espaço com uma paisagem ao seu redor pode nos contar muitas estórias. As margens do Cocó foram cenário de muitas delas. Um caboclinho das águas, às manhãs de sábado, ia comer siri; era um desses dias de sol quente; as águas do Cocó refrescavam a mais quente pele. Elas refrescam até a alma. O Jovem Airapanã comia siri e se refrescava na água quando um casal aparece e senta-se na areia, na margem do rio. Airapanã escutou quando Vó Inã disse: “Oia, meu fio, a ternura humana!”
- Meu amor, eu não quero ter esse filho - iniciou a conversa Ciribele.
- Mas querida, filho não é o fim de uma mulher. Um filho é a natureza da mulher se expressando naturalmente.
- Você diz isso porque não é com você, você não vai arrastar uma barriga.
- Seu corpo foi programado com dispositivos naturais de adaptação orgânica ao estado de gravidez.
- Mas, sou jovem e quero me divertir, quero estudar, não quero criar filho agora.
Airapanã viu quando Vó Inã se abaixou para pegar água para ela e para os curumins. Os pequenos correram para junto dela.
Rocha e Ciribele se amavam, contudo, uma gravidez inesperada, totalmente acidental, gerou conflito entre eles. E Ciribele queria abortar. Rocha não concordava com o aborto, mas não insistia para a moça parar seus planos. Naquele sábado, eles foram ao Cocó para analisarem os fatos e tomarem uma decisão. Rocha estava terminando uma licenciatura e pretendia o mestrado, Ciribele iniciava sua graduação em matemática.
Eu vi quando Inã veio para mim. Ela estava com o cachimbo na mão. Andava encurvada, parecia cansada. Ela veio, sentou-se numa pedra ao meu lado e deixou os pés nas águas que refletiam o dourado do sol nos meus olhos.
- Vó Inã, as mães matam seus filhos?
- Uma mulher pode ser uma ursa violenta contra suas crias. Isso ocorre quando seu ser natural fica enterrado no seu mundo de sonhos. Assim como os homens, as mulheres sonham.
- E o sonho da mulher pode matar curumim na barriga da mãe?
- As mulheres se desesperam por muitas razões. Às vezes, elas provam o sentimento de seu homem. Os homens silenciam os gritos da mulher impondo o silêncio.
- Se Zambi fez os dois para viverem juntos, como há conflito no amor?
- Meu fio, olhe a água corrente! Elas se chocam contra meus pés e por certo os meus pés contra elas, assim são as pessoas.
Airapanã coçou a cabeça e pulou no rio. Mergulhou fundo nas águas até que parou próximo a uma loca de onde saía uma raiz muito grande. O indiozinho sentou-se nela para ver os peixes. Diante de seus olhos encantados, forma-se da raiz submersa de uma árvore um rapaz muito bonito, vestido em traje de homem branco. Ele subia até Ciribele.
- Precisamos ser práticos. A criança só vai atrapalhar, e nós estamos ficando como você sempre disse: “Frios”. Argumentou a moça.
- E você nunca negou o fato de que fomos ficantes. Hoje em dia, as coisas são assim - argumentou Rocha com voz tímida.
- Isso não tem nada a ver. A criança vai atrapalhar os meus planos. Se minha mãe souber que estou grávida, ela vai barrar toda minha vida.
O tom das palavras de Ciribele foi muito convincente. Rocha, no fundo, já tinha aceitado o fato de ser pai. Estava até gostando da ideia, pensando em como seria um menino ou menina correndo dentro de casa. Sua mãe um dia lhe dissera: “Meu filho, filho é uma benção, sempre traz alegria”. No entanto, ele não se esforçava para tirar da cabeça da moça a ideia de aborto. Ela comprou o remédio e o carregava em sua bolsa. A conversa entre os dois ganha um tom de monólogo.
- Depois do aborto, volta tudo ao normal - disse Ciribele.
- É - disse Rocha concordando com a moça.
- Aborto nessa idade tem seus riscos, mas sou jovem, sou forte.
- É, e depois não vai ocorrer nada.
- Você acha, amor? Acha?
- Acho.
A areia do fundo do rio em alguns lugares era bem branquinha. Airapanã gostava de brincar com ela. Ele passou a mão nela e arrastou uma pedra dourada, lavada pela correnteza. A pedra irradiava um clarão quando o sol incidia sobre ela.
- Num vê, meu filho, que até a dura pedra do rio reflete a luz? E escute!
Um borbulhar se espalhava em forma de ondas, e o rio se agitou por um instante. Uma sereia vestida de dourado e joias muitas por todo o corpo surgiu como por encanto. Vó Inã canta um ponto. E Oxum se senta ao seu lado. Ciribele abraça Rocha e chora por um instante. Havia um clima de profunda tristeza. Ciribele toma a garrafa de água mineral e engole os comprimidos letais, e em sua mente, estava a dúvida do amor de seu homem. Os dois se levantam, caminham para a calçada e pegam um ônibus para casa. O resto do dia para moça foi como sempre fora- tudo em seu lugar. Estudou, comeu, assistiu TV, e aguardou ansiosa sentir alguma coisa. Ciribele foi se deitar cedo, depois de ler algumas páginas de O pequeno Príncipe. Ela sonhou que estava no rio Cocó, naquele lugar que tem uma pedra muito grande, e a calha do rio se alarga. Uma moça muito bonita estava na pedra. Ao seu lado, havia flores diversas espalhadas. Ciribele chegou e sentou-se com ela.
- A menina está triste, não é? - disse a moça estranha. - Foi você que soube da morte de Antônio? - continuou a estranha.
- Não, eu não soube não -respondeu Ciribele.
- Antônio morreu sem ter a menor chance. Era um rapaz bom, estudioso, teria um futuro brilhante, um orgulho para seus pais.
- Como ele morreu moça? – perguntou, curiosa, Ciribele.
- Ele foi envenenado. Ele confiava muito em sua mãe e o que colocavam na mesa para comer, ele comia sem perguntar. Não se sabe como, mas sua comida foi envenenada, e ele a comeu e morreu sem motivo algum. O pobre comeu a comida com tanto gosto. - contou a estranha.
- Ele sofreu muito para morrer? - perguntou Ciribele.
A estranha jogou-se nas águas do rio. E Ciribele gritava para ela voltar. A estranha sumiu no rio onde suas águas eram bem escuras. Ciribele, então, via em seu sonho que a natureza se deformava ao seu redor como se as plantas e pedras fossem feitas de papel.
- Ciribele?
- Você de volta?
- Sim.
- Onde estão as coisas que estavam aqui? As pedras, as árvores, o rio? Você ouve alguma coisa?
- Não.
- Mãe natureza está de luto. Quando isso ocorre, nada faz sentido. As coisas se tornam caos. Não há sentido sem a natureza.
- Mas estávamos conversando sobre o Antônio, cuja existência eu não conheci.
- O rapaz era apenas um pequeno pedaço da natureza, e por causa dele, tudo se encolheu, você não vê?
- Não. Isso, minha amiga estranha, é apenas um sonho; logo, eu acordarei.
- Você não está dormindo. Esta é você por dentro. O que você faria com a pessoa que envenenou o moço? - perguntou a cabocla do rio.
- Se eu tivesse provas, chamaria a policia.
- É você a pessoa - terminou a conversa a Rainha das águas.
Ciribele acordou muito tensa e havia sangue em seus lençóis. A moça foi levada para o José Frota, com hemorragia grave. Passou dois dias internada. Seus pais foram visitá-la e ficaram sabendo de tudo. Rocha, com muito remorso, esfriou seu amor para com a moça Ciribele.
- Está melhor?
- Estou.
- Quando vai poder sair da cama?
- No final de semana.
- Ciribele, me perdoe, mas vim te avisar que estou indo para Orlando. Minha mãe acha melhor eu passar uns tempos lá. Quem sabe eu consiga um mestrado nos Estados Unidos.
Os dois nunca mais se viram. Ciribele teve o útero perfurado pelo remédio abortivo. Alguns anos depois, a moça se casou com um ex-seminarista católico chamado Honorato Gomes de Melo. Moraram uns dias em Fortaleza e depois foram para Recife. A vida do casal era comum. Trabalho, vida de casa, amigos, festas e contas. Um dia, Honorato sentiu que faltava algo na união tão bonita dos dois.
- Ciribele, quero que você faça um exame, pois você não engravida nunca. Estamos sem nos prevenir há meses e nada de menino.
- Meu bem, acho que deve ser a tensão na escola. Ser professora é muito estressante, e a gente nunca está disposta nos dias férteis. - argumentou a moça.
- Eu acho muito importante um filho para coroar um amor. Além do mais, nossa casa está ficando vazia.
- Eu sei, meu bem. Vamos pedir a Deus uma criança.
Airapanã voltou de longa viajem ao além. O Rio Cocó estava sendo roubado de sua beleza. Suas águas estavam mais poluídas. E ao seu redor não havia mais a mata. Os prédios e o shopping tomaram o lugar da beleza natural. Ele encontrou a velha Inã sentada na mesma pedra.
- Meu filho, o mundo tem tantos Antônios, mas nenhum é igual ao outro. Não é uma questão de sobrenome. Os homens são como este rio. Ele é único no mundo de Zambi. O fio rodou, o que o fio viu? - perguntou a encantada.
- Eu vi que os homens são iguais em uma coisa: “Eles se precipitam correndo para aqui e para ali como se a vida fosse toda aqui na beira desse rio”.
- Num é, meu fio?
- É.
Ciribele finalmente engravidou. Toda a sua gravidez foi em paz. O casal estava com tanta felicidade que preparam tudo para receber a criança. Pelo Ultrassom, eles souberam que era um menino. Honorato queria muito homenagear seu avô com o nome de seu primeiro filho. O menino seria chamado de Antonio Vieira de Melo Neto. A criança nasceu. Parecia que a estrela da sorte havia surgido no céu daquele casal. Antônio cresceu, foi à escola, terminou os estudos, prestou vestibular para medicina e passou em boa colocação. Recife é uma cidade linda. Mas como toda cidade grande, ela abriga seus monstros. Antônio foi assaltado e levou um tiro na cabeça. O rapaz nunca mais se levantou da cadeira de rodas. Suas pernas e braços não podiam sustentar seu corpo, seus sonhos e os de seus pais.
- Ciribele!
- Sim!
- Onde está o pequeno Antônio?
- Qual?
- Não importa. Cuide desse!
Ciribele deixou o emprego de professora e dedicou sua vida a cuidar de Antônio. Agora, sua sina era o rapaz brilhante que teve sua vida quase interrompida por alguém que passava na calçada.
- Vó, e nós?
- Estamos sem rio...
Nenhum comentário:
Postar um comentário