segunda-feira, 27 de junho de 2016

Mulheres Tortas

Texto dedicado à Rebeca Machado, Dany Anahi, Bárbara Lobo, Flávia Lins, Iasmin


Geralmente todo o grupo social que recebe privilégios na cultura em que está inserido, tende a pensar e argumentar as coisas de forma reta. Digo isso, pois o justificar os comportamentos de forma reta implica em aceitar e muitas vezes impor uma postura totalizante, carregada de verdades supostamente absolutas e nem um pouco dada às relativizações. Isso acontece por que o agir reto adora a ordem, a coesão, a harmonia, a ausência de conflitos.

O grupo socialmente favorecido que me refiro é o universo masculino. Em meio a uma sociedade patriarcalista, machista, a lógica de dominação desse grupo tende a ser a palavra de ordem. Contudo, o fato de todos, gostando ou não, se encontrarem em meio a essa lógica do macho, até mesmo o universo feminino dito oprimido, muitas vezes tende a reproduzir e até mesmo aceitar os valores machistas.

Em uma sociedade machista como a nossa, comportamentos são impostos às mulheres; estas devem ser domesticáveis, moralmente pudicas, submissas em suas opiniões, recatadas, etc. Porém, mesmo diante dessas reproduções do discurso dito opressor, existem mulheres que terminam por transgredir essa lógica. Essas mulheres que desmontam a ordenação submissa de gêneros eu chamo de mulheres tortas.

Como eu sempre venho trazendo em meus textos, a postura torta, se por um lado aceita algumas das exigências impostas pela sociedade, por outro, questiona essas exigências. Essas mulheres tortas agem dessa forma, ou seja, transitam entre a moral e a transgressão dessa moral. Eu noto que essas mulheres, ao mesmo tempo em que sabem lidar com os compromissos exigidos pela cultura, questionam essa cultura.

Entretanto, o machismo, assim como qualquer posicionamento que visa o controle, tende a não suportar as posturas dessas mulheres, afinal, elas vão de encontro a todas as expectativas almejadas por aqueles que necessitam garantir o poder. Essas mulheres questionam, posicionam-se de forma livre, independente, são autônomas em suas opiniões. Obviamente que isso desestabiliza a tentativa da opressão tão sonhada pelo macho.

Como os representantes desse lado opressor não conseguem obter o controle dessas mulheres que se entortam, que provocam turbulências em suas certezas, eles terminam por criar um infindável número de adjetivações para elas. Estas tendem a ser taxadas muitas vezes de características das mais penosas possíveis. Porém, como tortas, sabem transitar entre a expectativa social e a negação desses comportamentos impostos.

O macho que sonha com sua dominação, tende a buscar interesses muitas vezes maliciosos em relação a essas mulheres. Infelizmente a inversão de valores se mostra bastante notória. Mulheres escolhidas por eles são aquelas que atendem às exigências impostas por esse patriarcalismo covarde. Esses machos recorrem às fêmeas, ou seja, às mulheres que se calam, que demonstram submissão e dependência em relação a eles.

Eles não percebem que as mulheres tortas, justamente por serem independentes, e por isso mesmo receberem as mais diversas denominações pejorativas, são as mulheres mais dispostas a assumir posturas sinceras. Não quero dizer que as mulheres que se ajustam aos comportamentos da “boa fêmea” necessariamente estão aptas a qualquer tipo de postura que venha a comprometer as expectativas criadas culturalmente.

Quero dizer que essas mulheres tão desejadas e sonhadas por esses machos que se querem dominantes e repressores, por saberem lidar com as regras morais do bom comportamento exigidas socialmente, conseguem se ajustar melhor à dissimulação. já as mulheres tortas recebem adjetivações reprovativas justamente por desestabilizarem a normatividade imposta por essa cultura patriarcalista e machista por não se ajustarem à hipocrisia das convenções.

Se essas mulheres transgridem, e por isso mesmo são condenadas, é por que em geral elas agem espontaneamente. Por agirem espontaneamente, elas tendem a ser muito transparentes em suas escolhas. Fazem as coisas porque querem; não consegue se adequar as dissimulações. É por isso que acredito que essas mulheres possuem uma maior capacidade de sinceridade em suas demonstrações de afetos com seus parceiros, afinal, elas querem as coisas de acordo com o que elas desejam.

Ou seja, se elas desejam se encontrar em um relacionamento monogâmico, por exemplo, elas tendem a viver intensamente nesse relacionamento. Quando não querem, simplesmente não querem. Contudo, apesar da sinceridade de suas ações, por elas desestabilizarem o poder, elas sofrem com intenções escusas do macho, afinal, mesmo se este reconhecer a ética dessas mulheres, por pensar que o social condena suas ações, essas mulheres tendem a não ser escolhidas para uma relação mais séria.

Porém, como um cara que ao menos tenta exercitar a perspectiva torta, admiro essas mulheres. Sempre fui envolvido com o modo delas agirem; acho muito legal conhece-las e me envolver com elas, afinal, elas me ensinam justamente por serem autônomas em suas posturas. Essas mulheres são indivisíveis, elas são únicas. Mulheres tortas me enriquecem porque estão abertas ao diálogo e à construção desse diálogo.

Infelizmente as mulheres, apesar de terem obtido muitas conquistas pela lei, ainda sofrem com as imposições morais, mas são essas mulheres que se entortam que fazem com que a minha esperança se nutra constantemente. Obviamente que elas, por também serem produtos dessa cultura, não estão livres em manifestar vez ou outra discursos machistas, mas por se entortarem, sabem também requestionar esses valores machistas.

É uma pena que em se tratando de quantidades, eu não encontro um número sequer razoável delas, porém, antes de estarem extinção, prefiro entender que elas são parte de uma rede que aos poucos pode ir crescendo. Mulheres tortas sempre foram as bruxas, as levianas, lascivas ou qualquer adjetivação imunda de preconceitos morais, mas são elas que, apesar de sofrerem pelo que são, que terminam por promover novas mudanças na sociedade.

Como qualquer postura torta, essas mulheres sabem conviver com relação às expectativas sociais, tanto é que elas tendem a ter um senso de justiça, de compromisso em seus relacionamentos, mas justamente por serem tortas, elas desestabilizam as lógicas que se querem impor como “verdadeiras”. Por isso mesmo que apesar de se ajustarem, por também se entortarem, provocam conflitos devido à independência que carregam.

2 comentários:

  1. "Eu noto que essas mulheres, ao mesmo tempo em que sabem lidar com os compromissos exigidos pela cultura, questionam essa cultura."

    Esse misto de conflito e negociação do torto complexifica ainda mais as relações de gênero e nos coloca diante de algumas questões, a autonomia das mulheres está no rompimento de todos os valores "anteriores" e na construção de uma nova normatização? Essa normatização deve ser apenas objetiva? Onde fica a subjetividade nessa construção, ela terá espaço? Até que ponto o moralismo emergente de alguns dos movimentos feministas podem sufocar essa subjetividade?

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  2. Quando entro em qualquer discussão sobre essas questões, a minha posição atual é sempre a de lembrar que os prejuízos dessa lógica em que vivemos não cobre apenas as mulheres. Os homens são afetados também, pelas exigências que lhe são feitas, impossíveis de cumprir e levando ao risco de serem considerados menos homens por isso. Com isso, digo que gostei da questão posta e da valorização da mulher torta, mas acho que não deve ficar só ao encargo dela esse enfrentamento, já que alguns homens - talvez também tortos, dentro desse raciocínio - não só entendem a problemática, como sentem na própria pele as implicações da perpetuação do machismo. Assim, os homens deveriam estimular e apreciar esse entortamento no cotidiano, enfrentando a ameaça que essa mulher representa, e também o peso e o privilégio do machismo para o macho.

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