Vivemos em uma cultura na qual, devido ao seu excessivo racionalismo, tende, no intuito de objetivar as coisas, separá-las. Essa separação, antes de servir apenas como um esclarecimento conceitual, é colocada em prática de maneira a distinguir de forma precisa as coisas. Com isso eu quero dizer que as coisas são vistas quase sempre de forma opositiva fazendo com que essa oposição não dialogue com o outro lado da questão.
Esclarecendo: é bastante recorrente a gente tomar a realidade como habitada por antônimos. Essa antinomia nos leva a uma desastrosa leitura dicotômica da realidade, ou seja, ou uma coisa é uma coisa ou outra coisa é outra coisa. Tendemos a compreender, por exemplo, o torto como tudo aquilo que se diferencia do que entendemos como reto, isto é, o torto é tudo aquilo que diz respeito ao “anormal”, enquanto o reto a tudo que transita na “normalidade”.
Entretanto, acredito que nós, vítimas do excessivo cientificismo racionalista, devemos repensar essa forma de conceber a realidade das coisas. Eu penso que uma perspectiva hibrida nos permitirá analisar as coisas a partir de suas incessantes e inacabadas construções, e não como algo fechado e finalizado em si mesmo. Captando as coisas por esse viés, passaremos a entender a realidade enquanto fluxos, e não enquanto classificações engessadas.
Não estou querendo dizer que a realidade se apresenta a nós de forma não codificável, ou seja, de forma a não construir sentidos e classificações sobre as coisas. É evidente que, vivendo em meio a uma cultura, inevitavelmente estabelecemos sentidos e códigos que são compartilhados, afinal, seria impossível vivermos em sociedade se não houvesse um sentido instituído, aceito por nós e capaz de nos possibilitar a comunicação.
O que eu insisto e de forma bastante relutante e redundante, é que, não é por que aprendemos em nossa experiência diante da sociedade que a verdade é uma coisa e a mentira é outra, que a gente não possa entender que essas duas realidades, apesar de culturalmente compreendidas como diferentes, não estejam em trânsito entre elas o tempo inteiro. O que quero dizer é que as coisas devem ser compreendidas pela sua dinâmica e contradição.
Entendendo que as coisas estão incessantemente se hibridizando entre elas, nós conseguiremos pensar inclusive em pôr em prática um dos princípios mais importantes da democracia que é a convivência com o diverso. Entendendo que a realidade não se apresenta a nós com essa dicotomia, construiremos espaços para o diálogo, para a tolerância por reconhecermos a inevitável contradição das coisas. Reconhecendo essa contradição, saberemos relativizar as opiniões que são divergentes das nossas.
É a partir desse olhar que penso a questão do torto. Quando me refiro ao torto, não estou em nenhum momento criando opositivos para ele. Na verdade, ao pensar acerca do torto eu me permito entendê-lo como uma dinâmica e como uma contradição, afinal, eu não posso olhar o torto se eu não o concebo como um incansável entortar. Entretanto, esse entortar, antes de se definir de forma acabada, permite-se ao trânsito e ao diálogo com diversos lados.
Portanto, quando reflito acerca da questão do torto, inevitavelmente eu também abro espaço para o que entendemos como reto, afinal, como dito anteriormente, se o torto implica em entortar, esse entortar também dialoga com as diversas realidades vistas como codificáveis e instituídas. Com isso, o torto não só diz respeito ao ajustamento, isto é, com aquilo que poderíamos pensar como o que entendemos como reto, mas também com o desajuste.
O que quero fazer notar com isso é que o torto, como dito mais acima, é um fluxo, um trânsito, um interminável construir/desconstruir/reconstruir de si mesmo. É por compreendê-lo a partir dessa lógica de contradições que penso ser importante trazer neste texto alguns pontos que dizem respeito à ideia referente ao que entendo como condição e situação, assim como a compreensão que faço entre o ser e o estar.
Pois bem, quando falo em condição eu me refiro a algo que carrega em si uma ideia mais preponderante de imobilidade. A condição diz respeito a uma determinação, isto é, a um posicionamento mais engessado. Na condição eu me vejo mais submetido às classificações e conceitos mais permanentes. Pensar as coisas em sua condição implica em aceitar de certa forma uma definição mais precisa delas.
Por outro lado, quando eu penso na ideia referente à situação, eu compreendo uma maior propensão à dinâmica, ou seja, à mobilidade das coisas. A situação, antes de ser mais ajustada e dada à determinação, ela se permite adentrar nos escorregões, nos deslizes. Pensando a partir da situação, eu encontro maiores dificuldades em apropriar as coisas e encaixotá-las nas classificações. Com a situação o experimentar se beneficia e escapa mais das definições.
Com relação ao ser e o estar, acredito que o ser, assim como na questão referente à condição, termina por acolher com mais frequência à ideia da conceitualização mais precisa da realidade. Ser alguma coisa nos sugere a ideia de algo mais institucionalizado sociologicamente falando e algo mais voltado ao significado linguisticamente falando. Ou seja, o ser dá a ideia de identidade, do que é "normal", do que é codificável, ou seja, compreendido, de contornos delimitados.
Já quando eu falo em estar, eu penso que, assim como na situação, ele diz respeito a algo mais fugidio, ou seja, a uma realidade que se extrapola, transmuta, escapa dos nossos domínios que se querem mais precisos. O estar nos permite a ideia de provisoriedade, de momentaneidade. No estar nos deparamos com a inevitável contradição, no incessante afirmar/refutar/repensar. Estar se encontra mais no campo do que se quer instituir e não do que é instituído.
Com isso eu gostaria de chamar atenção para o fato de que o torto, antes de ser uma condição, ou seja, uma norma de caráter mais permanente e como dito anteriormente, mais acabado e instituído, ele se encontra muito mais voltado às fraudes, ou seja, às enganações resultantes das colisões nem sempre amistosas, enfim, menos voltado à noção de código, ou seja, daquilo que se é supostamente palpável por ser instituído.
Buscar desenhar a vida a partir da ideia do torto, é solucionar a realidade com mais problemas e encontrar os antídotos e a cura das “patologias” com mais doses intensas de veneno. O torto diz respeito ao estar, ou seja, ao provisório, visto que ele se entorta, e por isso mesmo ele se altera o tempo inteiro. O ser no torto existe também, afinal, por entortar, ele dialoga com ele, porém, o ser no entortar assume também um caráter de momentaneidade, fazendo prevalecer, portanto, a situação e o estar.
Com isso podem questionar: o torto se define? Eu respondo que sim, afinal, como dito, o torto, por entortar, também dialoga com a condição e com o ser, isto é, com o código, porém, essa definição está sempre predisposta a ser refeita e jamais acabada. O torto diz muito mais respeito às incessantes construções do que conjuntos harmonicamente classificados de forma taxonômica com hierarquizações precisas e circunscritamente engessadas.
Portanto, o ser torto não diz respeito ao que ele é em si mesmo enquanto condição acabada, mas sim, enquanto aquilo que vai sendo, ou seja, enquanto aquilo que o torna momentâneo, sobrevivente nos deslizes e no inacabado das situações e do estar. O torto afirma, pois dialoga com o código, e, portanto, com o ser e com a condição, mas refuta, e por isso mesmo, reelabora essa afirmação por simplesmente buscar ser em sua contraditória construção de si mesmo.
A permeabilidade do torto o faz transitar de forma turbulenta pelos espaços e pelas relações sociais. Isso caracteriza um tipo que é imaginário e ao mesmo tempo real que converge essas as forças provocadoras da sociedade e a sua devolução completamente subjetiva. O torto não é indiferente, não é conformado, nem resistente, muito menos rebelde, a característica principal do torto é a angustia, isso o transforma em movimento e em devenir, mas tudo isso de forma subjetiva, decodificando o mundo nas particularidades, na existência, na apreensão e reprodução, o torto não guarda nada.
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