As pessoas que trazem um olhar romântico acerca das tradições culturais, ao chegarem em Piranhas, município localizado no alto sertão do estado de Alagoas, na certa se decepcionam no que diz respeito aos hábitos musicais de seus habitantes. Diferente do que esperam os amantes da dita pureza cultural, Piranhas, apesar de turística por ser histórica, é totalmente marcada pela chamada cultura de massa. Essa massificação impera claramente no que diz respeito ao consumo do pagode.
O pagode tem recebido sérias críticas reprovativas. Se pensarmos isso no consumo do público feminino, esses discursos se intensificam, visto que eles criticam o comportamento da mulher por enxergarem a preponderância do machismo contido nas letras dessas músicas. Contudo, eu acredito que, sem negar o machismo contido nas letras, as mulheres consumidoras desse gênero possuem códigos e delimitações de espaços em seus grupos sociais capazes de afirmar moralmente o lugar delas.
Vejamos: para existir grupos, necessariamente precisa haver códigos que sejam capazes de possibilitar formas de comunicação entre seus membros. Esses códigos têm a finalidade de fazer com que os indivíduos não apenas se compreendam, mas também passem a ter um sentimento de pertencimento a esse grupo. É a partir dos códigos construídos e utilizados por esses grupos que os seus membros se assemelham, compactuam formas de ver, pensar e agir. É nos códigos que os indivíduos se identificam.
Pelo fato dos códigos permitirem aos membros se comunicarem e compartilharem de valores, cada grupo termina por delimitar seu espaço. Com as mulheres não é diferente. Através dos códigos, elas terminam colocando certas regras de comportamento, conseguindo com isso, delinear e afirmar o seu próprio território. Essa afirmação pode se estabelecer sobre condições morais, de respeito, de regras que instituem valor à sua posição social dentro desse grupo consumidor do pagode.
Vale também lembrar que consumimos determinadas músicas com relação a determinados ambientes. Eu posso muito bem ouvir determinado gênero musical de acordo com cada circunstância. O fato de se consumir o pagode não foge a regra dessa afirmação. Posso consumir o pagode como mero divertimento. É por talvez puder escolher o pagode como divertimento que eu não consigo aceitar que de forma determinante uma mulher consumidora do gênero aceite literalmente os discursos do pagode.
Pensando na escolha musical para cada circunstância e somando o fato de se conceber o grupo como um espaço no qual os seus membros estabelecem regras para demarcar o seu lugar, o que posso verificar é que não necessariamente o fato de uma mulher consumir o pagode, significa que ela esteja assumindo uma posição de desrespeito com ela mesma. Ela pode muito bem ouvir o pagode por outros interesses circunstanciais e estabelecer regras em seu meio para se preservar moralmente.
Por exemplo: apesar da letra de pagode trazer temáticas referentes ao sexo, não significa dizer que as mulheres que ouvem pagode não se preservem sexualmente. O fato das letras exporem conteúdos referentes à inferiorização da mulher, não quer dizer que socialmente ela se coloque em condição inferiorizada. Uma mulher pode consumir o pagode e afirmar o seu lugar, inclusive reagindo de forma radical a qualquer intenção masculina que tenha como objetivo, denegrir a sua imagem.
Aí é onde entra o papel da educação. Digo isso, pois muitas dessas mulheres e consumidores do pagode em geral são alunos. Não tem como fugirmos da realidade marcada pelo forte consumo da cultura de massa. Os educadores ao insistirem em discursos contrários ao pagode se encontram na contramão do contexto atual. Devemos estar cientes de que, gostando ou não, o pagode é uma realidade bastante presente no cotidiano dos alunos.
Porém, infelizmente a educação insiste em perpetuar um discurso elitista, ao invés de, a partir do discurso dos alunos, buscar encontrar caminhos para avaliar os prós e contras do pagode. Ainda se é muito comum ouvirmos de professores discursos claramente moralistas e denegridores acerca do pagode. Inclusive, ao conversar com muitos educadores, eu percebo que a reprovação é tamanha que eles sequer conseguem visualizar espaços para a utilização do pagode em sala de aula.
Para mim, um educador precisa se adentrar no universo dos discentes para compreender as razões que levam os alunos e especificamente as mulheres a consumirem o pagode. Antes de cair no moralismo e no elitismo, o educador tem que conviver em meio a esse espaço social vivenciado pelos alunos para compreender de forma viva e concreta a forma como eles estabelecem seus códigos e como se comunicam e se compreendem entre si.
Não apenas isso. Os educadores podem fomentar debates referentes ao consumo do pagode dentro do próprio ambiente educacional. A partir desses debates, eles, conjuntamente com os alunos, podem compreender com maior clareza principalmente acerca do consumo feminino em relação a essa música. Ou seja, como as mulheres se enxergam nas letras, quais circunstâncias e quais as razões que as levam a ouvir o pagode, como elas se comportam enquanto mulheres na sociedade, etc.
O ambiente educacional pode trazer provocações acerca do pagode. Por exemplo: sabemos que as mulheres vêm brigando pelos seus direitos enquanto gênero sexual e que isso é válido. Portanto, o machismo deve ser questionado. Mas antes de reduzir o machismo a uma questão meramente moral, o educador deve provocar questões como: as mulheres conseguiram de fato conquistar o seu direito? O que faz músicas de teores machistas conseguirem ainda ser consumidas com tanta frequência?
No que diz respeito ao sexo, os educadores podem mostrar várias facetas acerca do assunto, provocando questões como: a liberdade sexual é positiva? Até que ponto a liberdade sexual pode se tornar prejudicial à sociedade? O sexo exposto no pagode não possibilitaria um acesso mais aberto com relação ao assunto? Em que sentido a abordagem referente ao sexo nas músicas poderiam ser prejudiciais? A família e a escola têm um papel importante nesse debate? Por quê?
É importante que os educadores não deixem que suas verdades concluam as infinitas contradições discursivas acerca do tema. O que vale é estabelecer uma troca, e o educador tem que intermediar o debate respeitando a visão do aluno e intervindo com novas questões para que esse aluno passe a repensar suas afirmações. Por exemplo: mesmo o pagode sendo excelente para se dançar, até que ponto o sexo e o machismo contido nele podem interferir negativamente na sociedade?
O fato dos educadores terem competência curricular, profissional e teórica, não lhes dá o direito de afirmar suas verdades sem ao menos buscar conhecer as razões que levam os alunos a determinados tipos de comportamentos ou escolhas musicais. Não cabe ao educador afirmar uma opinião apenas pelo aspecto moral. Para se haver uma discussão crítica é pertinente que se pense essas questões de forma racional, buscando entender os fenômenos sociais a partir dos fatos, das razões de cada um.
O ambiente educacional tem que olhar o aluno como um ator que participa das experiências sociais. Os discentes não são meros objetos passivos. Eles têm que ter direito à voz simplesmente por que eles têm voz. Eles são sujeitos que possuem opiniões acerca das coisas, assim como detêm subjetividade e escolhas. Se a escola quer se tornar um espaço prazeroso para esses alunos, os educadores devem tornar as salas de aula um espaço para a expressão e manifestação desses alunos.
Só conseguiremos fazer da escola um espaço de prazer, quando nos dermos conta de que os alunos necessitam ter direito à voz. Vivemos em meio a uma sociedade que se encontra ainda marcada pelo autoritarismo.É através dos debates que os educadores podem abrir espaços que quebrem esse autoritarismo e que façam os alunos se sentirem respeitados e questionadores conscientes de suas próprias escolhas, por eles perceberem que possuem liberdade de manifestar seus valores.
Se ao menos os educadores estivessem de fato dispostos a fazer do conhecimento algo diretamente vinculado à realidade sócio-cultural do aluno, se estivessem interessados em estabelecer diálogos com eles, compreendendo assim, as razões pelas quais levam esses alunos a consumir esse gênero musical, se ao menos buscassem averiguar a realidade social, cultural, moral, familiar, estética e histórica desses discentes, o consumo dessa estética poderia ser ao menos mais consciente.
Não é por que o pagode contém assuntos referentes ao machismo e ao sexo, que ele deva ser expelido do ambiente educacional. Os educadores podem a partir disso provocar indagações acerca do papel da mulher, além de outros temas que também são por demais explorados no pagode como exclusões estéticas, por exemplo. A educação tem que abrir leque para discussões que talvez não estejam presentes em seus alunos, para com isso, provocar novas indagações e novos caminhos.
Para concluir, é necessário que antes de precipitarmos nossos discursos acerca do consumo das mulheres em relação ao pagode, temos que observar como se estabelece o olhar delas referente a esse gênero musical, ou seja, como elas se apropriam dos discursos do pagode. Além disso, devemos lembrar que uma escolha musical diz respeito a motivações, circunstâncias e finalidades variadas. Não necessariamente o fato de se consumir o pagode significa que a mulher não respeita a si própria.
Buscando uma compreensão do pagode a partir das mulheres, poderemos detectar a forma como elas se enxergam enquanto mulher na sociedade, como elas se posicionam socialmente, quais são os critérios que elas utilizam para assegurar o seu valor enquanto gênero sexual, qual foi o valor incutido a respeito da mulher em seu meio social, como foi sua educação moral, como se organiza sua família, qual o perfil de homens que elas buscam escolher para estabelecer uma relação conjugal, etc.
É por isso que eu acredito que o educador não deve se precipitar com os seus valores pessoais ou de classe. Ele tem que compreender as opiniões do grupo feminino consumidor do pagode analisando suas variantes históricas, sociais, morais, culturais, sociais. Obviamente que o seu papel também não é optar pela perpetuação das coisas, cabendo a ele, portanto, também provocar questionamentos em sala de aula fazendo o aluno perceber pontos positivos e negativos no pagode.
É por isso que eu acho de profunda importância que o educador, antes de optar pela exclusão desse gênero musical, deva se adentrar nos meios sociais compostos por grupos femininos que consomem o pagode, e através de uma pesquisa mesmo informal, começar a compreender o porquê desse consumo, além de possibilitar um espaço para a discussão em sala de aula acerca do pagode se preocupando em analisar a ótica do aluno para não cair no erro da intolerância e do elitismo.
Não cabe ao educador simplesmente condenar a opção das mulheres piranhenses em consumir o pagode. A prática social estabelecida pela cultura de massa é fato, e quem disse que é por toda ruim? Se reconhecermos a sua existência e sua importância, poderemos detectar pontos pertinentes que podem alterar profundamente a sociedade piranhense, como os traços tradicionais que ainda persistem em seus habitantes, como o sexo e a mulher são vistos socialmente, etc.
É nos códigos que os indivíduos se identificam.
ResponderExcluirA problemática do colega levanta a questão da velha aula nossa de cada dia e do compromisso docente. Ainda esta semana fui muito mal visto quando disse na escola: "Aqui é o lugar onde não se discute educação". Acredite serem válidas as questões do amigo. Todas se enquadram na nossa visão dialogista de educação. O grande desafio do educador dialogista é viver sua pratica num sistema monologista de educação. Escrevendo, cutucando, questionando, talvéz algum dia, alguém preste atenção que está tornando a escola naquela mesmice de todos os dias. Abraços tortos.
Pergunte ao professor de Potuguês ou literatur se ele trabalha a teoria do genero de bakthin? A intenção do ensino do código não prevê que aluno é portador de códigos bem diferentes dos que o educador trouxe para aula.
ResponderExcluirÉ IMPOSIÇÃO DE DISCURSOS DOMINANTES!!!!
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