Ele chegou bêbado em sua casa, e como se já tivesse carregado ao longo de seu dia o mundo inteiro em suas costas, deixou seu corpo cansado cair em direção à porta. Ao se colidir decadentemente, largou a cabeça naquele pedaço de madeira. Voltou sua cabeça para trás e só enxergou o vulto de algo girando desordenadamente em frente aos seus olhos. Com toda a dificuldade do mundo, conseguiu encontrar o chão para se sentar.
O que ele queria mesmo era luz. A luz não se acendia e parecia não haver ninguém naquela casa. Continuou sentado, e como que embrulhado de toneladas de fantasias frustradas no peito, escarrou restos do fumo ainda resistentes nos poros de seu corpo. Tentou tirar sua camisa azeda de grudes deixados pela noite ao se enroscar em ombros alheios e vacilantes, mas foi tudo em vão. Tentou novamente tirar a camisa, mas antes de conseguir tal intuito, vomitou em cima de seus pés.
Medo. Ele começou a sentir culpa. Sentia que necessitava pedir desculpas a alguém. Ele havia feito mal a alguém. Que nada! Era nada daquilo não. Ele sabia que o assunto não acabava ali, e o que ele passava naquele momento em frente a sua casa era apenas um dos tantos momentos que ele sentia que ainda iria passar novamente. Ele já havia prometido a si mesmo nunca mais passar por aquilo outra vez, mas ele sabia que suas certezas não eram sempre verdades. Talvez um dia fossem.
Mas não eram apenas verdades ou a falta delas que o atormentava. Existiam naquele peito exausto muitos medos. Sim, isso ele poderia ao menos sentir. Pensar naquela casa exposta, pensar que não havia colocado alarmes e pensar que sua felicidade dissimulada um dia iria sofrer um enorme golpe ao ver um de sua espécie invadindo seu lar tentando usurpar toda a sua ambição serviente aos seus caprichos inúteis por ostentação o atormentava bastante. Certo, para ele aquilo tudo fazia sentido, mas não era apenas aquilo.
Esqueceu-se do medo, olhou novamente a poça de vomito em seus pés imundos da noitada. Lembrou que aquela porcaria lembrava vitamina de banana que tomava todas às vezes antes de ir para a sua escola. Voltou o medo, voltou a culpa, voltou a certeza da impossibilidade de parar algum dia a sua fuga nas mesas de bares e nos momentos de solidão vividos por ele dentro de sua casa. Sim, momentos de solidão. Teria alguém em casa? Ninguém abriu a porta.
Ele dormiu fora de sua casa mesmo tendo acesso aos compartimentos dela. Teria acesso mesmo? Onde estaria a chave? Ele sorriu e se lembrou que com aquele seu espírito oscilante marcado pelas aventuras noturnas, a chave estaria provavelmente largada em qualquer lugar da rua.
Sempre havia morado ali...
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
A Janela dos fundos
A vida dos vizinhos sempre e mais interessante, principalmente quando eles se expoem no quintal oposto a janela dos fundos. Cena muito bem retratada em `Rear Window` (Janela Indiscreta, 1954), filme do anglo-americano Alfred Hitchcock. O cineasta profetizou a sociedade Visual de nossos dias, nao por que o apelo a visao e produto da exarcebada modernidade, mas talvez tenha percebido que o que ha diante dos olhos seja algo a mais que mero estimulos perceptivos concerne ao sentido da visao. O visual e erotico, sentimos nos olhos o sabor do desejo, de ver a vida dos outros como instrumento de diversao.
Acredito que a atualidade pontencializou esse nosso desejo, inumeros dispositivos enchem os nossos olhos de desejos, fazem com que dispendiamos horas a fio sem nos disprendermos da tela- imagem, seja cinema ou televisao. Esses disposistivos so ampliam a nossa vontade de saber mais, seja no teor informativo ou seja no ter do entretenimento, principalmente. Personagens sao criados para serem refletidos com o nosso dia-a dia. O climax nasce daquilo que nos nao permitimos que aconteca na normatividade diaria da rotina. Como se as novelas nao bastassem, os `reality show` fazem de vidas reais-artificiais uma novela. Vidas que sao manipuladas para obter o ibope.
Somos seres visuais. O voyeurismo foi claramente explorado por Hitchcock. Jeffries via a vida dos vizinhos, em suas lentes tele-objetivas, numa tentativa de torna-la a sua mais interessante, pois esse se encontrava com uma das pernas engessada depois de ter sofrido um acidente de carro. Fazer de sua profissao um lazer se tornara um prato cheio para o personagem, pois ele comprava a nossa marcante caracteristica, ver nao se trata apenas em observar, e olhar e reparar o outro que esta em sua volta.
O que se torna mais interessante, e ver o outro na intimidade, como sugere a traducao do titulo original de `Janela Indiscreta`, Rear Window, ver o outro na `Janela dos fundos`. Em nossos quintais, relaxamos as nossas exigencias sociais, deixemos que a mascara caia, e nos vestimos de nos mesmos. A inveja, o egoismo e a vaidade aparecem claramente e para quem aprecia esse palco, os olhos se tornam um instrumento de prazer em potencial.
A vida do outro esta mais popular do que nunca. Podemos acompanhar nos Orkuts, facebooks e em inumeros sites de relacionamento.Fazemos desse ato superficial um convivio social aberto, fluido e fragmentado. Todos podem ser meus amigos e vizinhos, inclusive estranhos. Quero voce perto dos meus olhos para o meu bel- prazer, mas ao mesmo tempo longe pois, de algum modo, pode ser uma ameaca. Esse excesso de facilidade tecno-virtual nao nos da nenhuma seguridade de quem e esse amigo- estranho. Relacoes esquizoides sao implatadas nessa nossa sociedade. Experiencias excentricas aos nossos olhos tambem. Hitchcock foi incisivo quanto aos seus vizinhos da modernidade.
* Argumento em detalhes sobre o Voyeurismo, olhar e cinema na Revista Cientifica Anagrama: `CINEMA e VOYEURISMO EM HITCHCOCK: Do Olhar à Apropriação do Desejo `, Maira Lima de Gois.
http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/anagrama/index
Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação
www.revistas.univerciencia.org
Acredito que a atualidade pontencializou esse nosso desejo, inumeros dispositivos enchem os nossos olhos de desejos, fazem com que dispendiamos horas a fio sem nos disprendermos da tela- imagem, seja cinema ou televisao. Esses disposistivos so ampliam a nossa vontade de saber mais, seja no teor informativo ou seja no ter do entretenimento, principalmente. Personagens sao criados para serem refletidos com o nosso dia-a dia. O climax nasce daquilo que nos nao permitimos que aconteca na normatividade diaria da rotina. Como se as novelas nao bastassem, os `reality show` fazem de vidas reais-artificiais uma novela. Vidas que sao manipuladas para obter o ibope.
Somos seres visuais. O voyeurismo foi claramente explorado por Hitchcock. Jeffries via a vida dos vizinhos, em suas lentes tele-objetivas, numa tentativa de torna-la a sua mais interessante, pois esse se encontrava com uma das pernas engessada depois de ter sofrido um acidente de carro. Fazer de sua profissao um lazer se tornara um prato cheio para o personagem, pois ele comprava a nossa marcante caracteristica, ver nao se trata apenas em observar, e olhar e reparar o outro que esta em sua volta.
O que se torna mais interessante, e ver o outro na intimidade, como sugere a traducao do titulo original de `Janela Indiscreta`, Rear Window, ver o outro na `Janela dos fundos`. Em nossos quintais, relaxamos as nossas exigencias sociais, deixemos que a mascara caia, e nos vestimos de nos mesmos. A inveja, o egoismo e a vaidade aparecem claramente e para quem aprecia esse palco, os olhos se tornam um instrumento de prazer em potencial.
A vida do outro esta mais popular do que nunca. Podemos acompanhar nos Orkuts, facebooks e em inumeros sites de relacionamento.Fazemos desse ato superficial um convivio social aberto, fluido e fragmentado. Todos podem ser meus amigos e vizinhos, inclusive estranhos. Quero voce perto dos meus olhos para o meu bel- prazer, mas ao mesmo tempo longe pois, de algum modo, pode ser uma ameaca. Esse excesso de facilidade tecno-virtual nao nos da nenhuma seguridade de quem e esse amigo- estranho. Relacoes esquizoides sao implatadas nessa nossa sociedade. Experiencias excentricas aos nossos olhos tambem. Hitchcock foi incisivo quanto aos seus vizinhos da modernidade.
* Argumento em detalhes sobre o Voyeurismo, olhar e cinema na Revista Cientifica Anagrama: `CINEMA e VOYEURISMO EM HITCHCOCK: Do Olhar à Apropriação do Desejo `, Maira Lima de Gois.
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Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação
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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
Refrão Torto
Só quem não sabe
quer cantar diferente
porque não enxerga
que é o refrão é o de sempre:
as mesmas tertúlias,
os mesmos engodos,
as mesmas perfumarias
quer cantar diferente
porque não enxerga
que é o refrão é o de sempre:
as mesmas tertúlias,
os mesmos engodos,
as mesmas perfumarias
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
O PADRE BELO
O PADRE BELO
Torquato foi estudar no seminário muito jovem. O rapaz mal tinha feito dezesseis anos e estava entre os padres. Aprendeu latim, oratória, homilética, hermenêutica, teologia, grego, filosofia e outros saberes para se tornar em um religioso com “um futuro belo pela frente”. Sua mãe, uma mulher aristocrata de Baturité, no Ceará, não medira esforços para dar ao seu único herdeiro a melhor educação da época. Ademais, Dona Quidinha, como era chamada, era uma mulher de fé. Quando Torquato ainda estava em seu ventre, ela teve uma virose, o que, na época, foi um alarme para os médicos. A mulher prometeu a Nossa Senhora que se a criança nascesse, fosse homem ou fêmea, seria do Cristo.
- Dona Quidinha! Estou sabendo que Torquato está voltando do seminário de Fortaleza! Não se fala outra coisa na cidade!
- Mulher, você nem imagina a alegria!
Os anos de viuvez, e depois, os anos longe de Torquato ensinaram a dona Quidinha o valor da presença das pessoas. Quidinha ficara viúva depois do nascimento de seu único filho. Seu marido, Augusto viajava para o Pará; o homem negociava com borracha de seringa; fez sua fortuna com esse comércio. Na época, a borracha de seringueira tinha muito valor. Seu Augusto foi picado por uma serpente venenosa e morreu no Pará. No dia de seu enterro, Quidinha foi consolada pelos familiares e amigos, mas, nada disso tirou de seu peito a eterna saudade de seu amor, nem o vazio de sua casa. Com a partida de Torquato, a mulher se isolou mais ainda reservando sua atenção aos parentes mais chegados. Durante a estada de Torquato em Fortaleza, Quidinha se dedicava a leitura e aos afazeres de casa. Mesmo com tantos criados, a mulher sempre arranjava alguma coisa para lhe ocupar o tempo. Era séria, e sem muita conversa. Seu falar era de dama – um Português muito culto.
- Acho que o meu menino vai adorar esta cama. Você não acha Gertrudes?
- Com certeza dona Quidinha. Torquato, agora é um homem de Deus, e vai tomar conta da fé de todos nós!
- Que Deus te ouça, mulher!
Torquato desceu da condução às oito da manhã de sábado. Seus parentes e amigos de infância estavam lá. Foi um dia de muita alegria para todos da velha Baturité. O prefeito pediu a palavra ainda na rua para saudar o jovem padre:
“Meus amigos e amigas! Meus eleitores ou não! É com muita alegria que, hoje, a luz do dia, eu vejo este jovem Baturiteense retornar ao lar, trazendo sobre nós, a benção de Cristo...”
O jovem Torquato estava muito cansado, agradeceu a todos e foi para casa. Em casa, as pessoas o aguardavam para a recepção no casarão da viúva. Torquato em seu quarto respirou finalmente ar puro. O stress da viagem não mais o incomodava. Tudo estava bem, exceto, a persistente lembrança de um amor proibido no seminário. Parece que a combustão do amor proibido se compara a da paixão. Esta é cega; enlouquece, ou causa tragédias. Mas, se o amor vem de Deus, por que causa tantos problemas?
Nem sempre o amor é problema. No entanto, um padre amar uma pessoa de carne com desejos carnais era algo que aquela família não queria. Torquato era o ídolo que sua mãe não abriria mão. Os anos passaram. O padre da cidade estava muito idoso. A hora de assumir a paróquia havia finalmente chegado. A comunidade decidiu fazer uma festa para receber o novo padre. Dona Quidinha queria fazer uma surpresa para seu filho e mandou convites para alguns de seus colegas de seminário. Torquato estava indiferente. O rapaz só pensava no trabalho. Dedicava todo o seu tempo livre para os serviços da paróquia. Em casa ele rezava e estudava os evangelhos. Sua mãe a cada dia se enchia de felicidades.
- Eu sabia que meu ventre geraria um ente santo!
- O que Quidinha! Larga de ser vaidosa mulher! Esquecestes-vos do amor por Tadeu?
- Deixa disso! Sua cobra! Isso foi há muito tempo atrás e nem faz mais sentido. Neusa parecia ser a pessoa mais normal daquela casa. De um lado tínhamos um padre calado e do outro uma mãe encantada com os que seus olhos viam, embora, nervosa sem causa aparente.
A igreja estava cheia. Pessoas católicas das cidades vizinhas e munícipes encheram a matriz. Torquato esperava seus colegas, mas, até aquele momento ninguém aparecera. Ele pensou que foi a dificuldade de transporte. A missa estava quase na Eucaristia quando o novo padre levanta seus olhos do altar na direção dos bancos da última fila. A nave da Igreja devia ter uns trinta metros. Lá no final estava um homem com veste de monge. Seu rosto estava quase todo encoberto com um capuz preto. Ele carregava um rosário no peito. Torquato perdeu a fala. Na verdade, tudo começou com uma gagueira com a mão apontada na direção do homem. As pessoas olhavam para trás e entendiam que ele estava emocionado com alguma coisa ou alguém. Os auxiliares do culto o levaram para sacristia e de lá para o sanatório de doentes mentais. Torquato foi dado como doido.
- Meu filho, tão bonito, tão belo, tão inteligente! Não era Neusa?
- Era mulher! Mas o caso de Torquato está mal contado.
- Deixa de ser uma peste sua doida?
- Quidinha! É a segunda vez que você fala comigo com esses termos. Contenha-se! Você sempre foi uma dama.
- Mulher! Estou desesperada! Meu filho, Neusa! Meu filho enlouqueceu! De fato quem esperava uma tragédia dessas?
Torquato no sanatório passou um tempo isolado das outras pessoas. Fizeram isso por precaução. As pessoas não sabiam se ele era violento. Torquato não era violento. O padre belo ficou autista. A maior parte do tempo ele falava consigo. As pessoas não entendiam muito bem sua fala. Em alguns momentos ele se sociabilizava. Logo em seguida retornava para o seu mundo. Sua mãe, no início o visitava todo final de semana. Com o passar do tempo, as visitas foram ficando cada vez mais raras. Torquato ficou esquecido no sanatório. Esquecido em parte, pois, as pessoas sabiam de quem ele era filho.
- O filho de Quidinha está melhor? Perguntou o encarregado Pedro.
- Não, Pedro. Torquato sofre de esquizofrenia. É uma doença muito difícil de ser tratada. A Medicina ainda não tem muitos conhecimentos sobre ela.
- Dr. Vanúbio, mas, ele tem tratamento?
- Ainda não temos drogas exclusivas para este tipo de problema.
- Então, ele vai ficar aqui até morrer?
- Muito provável.
Dr. Vanúbio saiu da enfermaria do hospital psiquiátrico São Simeão, e se dirigiu a sua sala onde havia uma mulher o aguardando.
- Boa tarde! Disse Vanúbio ao entrar na sala.
- Boa tarde. Respondeu a linda mulher.
- A senhora é?...
- Sim, eu sou a Dr. Norma. Estou vindo do Hospital Saint Peterson de Nova York. Estamos desenvolvendo um Estudo sobre a esquizofrenia entre religiosos. O caso de Torquato veio parar em nossa mesa pelas mãos de uma senhora chamada Neusa. Tia do paciente.
- Sei, mas, ainda estou sem entender. O que eu posso fazer por você?
- Eu gostaria que você me colocasse em sua equipe para acompanhar o caso de Torquato. Acredito que será muito útil para minhas pesquisas.
- Mas quem vai lhe pagar? Nosso hospital sobrevive de verbas públicas!
- Não se preocupe. O Instituto de Pesquisas Clínicas e Psiquiátricas cobrirá as despesas.
Daquele dia em diante Norma e Vanúbio estavam juntos no tratamento de Torquato. Os encontros se davam pelo turno da manhã. Vanúbio decidiu abrir uma via de diálogo com o rapaz. Até então, o que ele sabia é que esse tipo de paciente não diz coisa com coisa. Está totalmente dissociado da vida real.
- Torquato, como se sente hoje? Torquato nem virou o rosto em sua direção.
- Vai ser complicado Dr. Norma! Afirmou Vanúbio com muita convicção.
- Complicado, mas, não impossível. Replicou a Médica de Nova York.
Os loucos têm alguma coisa para dizer. Eles dizem do que sentem daquilo que está nas profundezas de sua alma. A fala fragmentada, dissociada da nossa realidade oculta à lucidez de um homem. A cadeia de significantes foi quebrada, o elo causal foi perdido em algum lugar. O outro não se apresenta diante dele; o outro se expressa em seu corpo.
Torquato movia as mãos do mesmo jeito que ele as moveu quando na missa. A visão do homem com o rosto num capuz estava diante de seus olhos. E ele apontava para aquele homem quando estava tenso. Não saía som de sua boca, apenas, um gemido baixo que soava como sendo uma dor. A visão de sua mãe o deixava muito nervoso. Talvez tenha sido por essa razão que a mulher deixou de ver o filho. Torquato não suportava a visita de sua mãe.
- Dr. Vanúbio!
- Sim?
- Sua pessoa já percebeu o movimento das mãos dele?
- Não! São movimentos sem coordenação, além do mais, não estão contextualizados a nenhum tipo de cadeia de significante.
- Será? Dr. Norma estava buscando uma via de acesso ao psiquismo de Torquato. Ela acreditava que se pudesse entrar em contato com ele poderia retirá-lo, pelo menos, da crise. Às três da tarde ela retorna para sua residência e estuda alguns casos seus. Seu intuito era ver se a esquizofrenia do rapaz era paranóide - a mais importante, ou hebefrênica, ou simples, ou catatônica, esta última seria muito difícil ser, pois, Torquato nunca tivera ataques catalépticos. Norma passa o resto da tarde estudando o caso. A moça perguntava a si mesma sobre muitas questões. Por um instante ela para e pensa: “Faz horas que eu converso comigo mesma. Quem visse, e não soubesse o contexto do meu ato, me chamaria de louca! Será que o mesmo não ocorre com Torquato?” Assim passou a moça o resto da tarde e entrou noite adentro. Ela estava sozinha em sua casa. Por volta das dez horas, ela se deita. Estava muito cansada, e o cansaço não a deixava dormir. Ela acende uma candeia que estava bem próxima de sua cama e começa a andar pelo quarto. Ela fazia perguntas, e ela mesma, as respondia. Às vezes, Norma sentia que havia alguém no quarto, para ser preciso, ela sentia como se uma criança a estivesse observando. Mas, a médica não deu importância a seus instintos. Ela ficou assim até seu corpo não resistir e cair no sono.
Amanheceu chovendo em Baturité. A luz elétrica havia chegado, mas, não para todos. Norma decidiu dar choques em Torquato para ver se ele saía da crise. “Talvez o choque o desperte e o ciclo seja interrompido, aí, eu tentarei uma associação livre”. Torquato foi submetido a três sessões de choque.
“Seu nome é Torquato?”
O rapaz apontava para frente e não produzia nenhuma fala. Seus olhos estavam desfocados. De sua boca escorria uma fina baba incolor. Norma sem saber por que, estende a mão para limpá-lo, na metade do caminho, para, e se contém. Dr. Vanúbio observa o gesto da colega, e formula a hipótese de Norma ter se apaixonado pelo paciente a quem ela demonstrava tanta vontade de curar. “Para onde ele aponta?” Esta foi a pergunta repetida centenas de vezes em sua mente.
Torquato teve seu quadro agravado depois do inverno de 1929. O rapaz apesar da insistência de Norma não apresentava melhoras; nada de associação livre, nenhum diálogo significativo, então, ela resolveu trazer alguns amigos de Torquato para ver se ele tinha memória sobre as experiências vividas com aquelas pessoas que estavam presentes em uma época muito importante de sua vida: “O seminário”. Entre eles estava Gustavo, primo de Isadora.
- Torquato! Você se lembra de seus amigos? O rapaz estava com os olhos distantes e de repente vai virando-os de forma desconfiada na direção do grupo. Em seguida Torquato aponta para frente e repete o que sempre faz: “Entra em crise de gagueira e não diz coisa com coisa”. Norma perdia as esperanças quando o doente para, e volta o olhar na direção de Gustavo. Torquato chora inesperadamente. Norma ficou tão surpresa e feliz que saiu a procura do doutor Vanúbio.
- Doutor! Torquato reagiu a estímulos mnemônicos e chorou! Isso nos diz alguma coisa!
- Com certeza minha cara! Precisamos saber mais do passado do rapaz. Norma decidiu investigar o passado de Torquato no seminário. Para tanto, viajou para Fortaleza, a capital do Ceará. O seminário da Prainha estava em reforma. Havia muita gente de fora e alunos noviços que iniciavam a vida religiosa naquele ano. Norma tinha a lista completa de todos os amigos de Torquato; dos professores, e das pessoas que trabalharam na época dele. Neusa cuidou de tudo. Quidinha mantinha-se totalmente fora do caso. A mulher se calou e se fechou de vez para o mundo depois da doença, ou fracasso do filho em ser o padre de Baturité.
- Com quem Torquato mais se relacionava Monsenhor?
- Veja minha filha! Torquato era muito dócil. Aceitava tudo. Mal falava. Um rapaz muito tímido, na verdade. Ele andava com Giordano, um italiano que decidiu estudar no Brasil.
- Giordano? Como posso encontrá-lo?
- Giordano? Você quer encontrar Giordano?
- Sim, Monsenhor Raimundo. Eu gostaria de falar com Giordano!
- É impossível! O rapaz voltou para Roma. Logo depois da formatura, Giordano recebeu o chamado de Deus para a Itália. Lamento doutora Norma! Norma decidiu ficar mais tempo em Fortaleza para visitar algumas paróquias de seminaristas amigos de Torquato. Na Catedral Metropolitana de Fortaleza havia uma cripta. Nela, os mortos célebres da igreja Católica do Ceará eram sepultados. Na cripta havia uma pequena biblioteca. Dela cuidava um jovem ruivo com feição de gringo, mas, não o era. Ele era um sobralense que havia entregado o coração a Virgem. “Ele estará na missa ajudando o Bispo. Depois ele retoma aos afazeres na cripta”. Foi isso que Monica, um noviça do convento das Dores, disse para Norma.
- Padre Rodolfo! Padre Rodolfo! Eu sou pesquisadora do Instituto de Clínica Psiquiátrica do Hospital Saint Peterson de Nova York. Eu e o doutor Vanúbio de Baturité estamos trabalhando o caso de um jovem que foi seu colega de quarto. O Torquato. Seu quadro melhorou e as lembranças começaram a surgir. O que sua pessoa pode nos dizer sobre Torquato?
- Muito pouco nós conversamos, mas, ele não era má pessoa não!
- Bem, eu não entendo. Você consta na lista como um de seus melhores amigos. Rodolfo ficou vermelho. Quando o sobralense ficava nervoso costumava ficar com as maçãs vermelhas.
- Nós éramos amigos. No entanto, conversávamos muito pouco, nossa amizade se limitava a críticas teológicas. Torquato se enveredou pelo estudo do Ocultismo. A última palavra de Rodolfo quase não foi ouvida. O homem a disse pelo canto da boca.
- Ocultismo? Que tipo de Ocultismo?
- Não sei. O que sei é que quando Giordano o convidava para ir a Messejana ele o acompanhava; isso ocorria quando não havia atividades no seminário. Diziam que iam visitar paróquias amigas.
- Você sabe do endereço de Messejana?
- Não. Messejana não é tão grande. Você vai achar alguma coisa lá, eu acho.
Norma havia pesquisado tudo e todos. Professores, amigos, padres. Somente um nome faltava, e que estava por perto, era Isadora. Norma não tinha feito muito progresso em sua viagem para Fortaleza. Isadora seria seu último tiro. “Mas, como acha-la? As pessoas dos seminários e conventos não gostam de dar informações. Os amigos de Torquato se recusam a falar sobre ele. Será que Isadora vai dizer alguma coisa?”. Pensou a jovem psiquiatra.
Era noite quando Norma encontra a noviça Isadora na casa de seus pais na Rua Senador Pompeu. Fortaleza tinha luz elétrica. Todavia nem toda casa era abençoada com a tecnologia. A casa de Isadora tinha eletricidade. Isso indicava que sua família era de posses. Norma bate no portão de grade grossa que se estendia por quase meio quarteirão. Ao seu encontro vem um homem alto, magro, e negro. Ele vestia um terno preto de criado. Ao seu lado estava uma criança do sexo masculino, branca, de oito anos.
- Estou sendo aguardada por dona Isadora. Eu sou a Doutora Norma do Saint Peterson. O homem sem dizer uma palavra, abre o portão e a acompanha até o hall da casa. Norma olha para trás e vê apenas a criança. “Para onde foi o criado?” Pensou consigo a mulher. A porta era de cedro puro entalhada com querubins nas duas bandas. As paredes da casa ostentavam o melhor da alvenaria da época. O piso era de mármore azulado e brilhava que doía nos olhos. Todo o entorno da casa tinha jardins e rosas de todos os tipos. Havia uma entrada pelos fundos a uma distância de quarenta metros até o hall. Norma bate uma segunda vez. A criança se aproxima da mulher como que quisesse dizer alguma coisa. Norma para de bater, olha para ela e pergunta:
- Como é seu nome? A criança gagueja e aponta para dentro da residência.
- Como? Estou sem entender! A criança corre para os fundos da casa e Norma segue atrás.
Os fundos da casa tinha uma capela velha. Os fundos da capela terminavam no muro dos fundos da casa. A porta da capela estava aberta, e dentro dela havia uma moça vestida de freira noviça. A capela estava iluminada com velas. As cores das velas logo chamou a atenção da médica. Todas eram roxas.
- Isadora! Meu nome é Norma. Sou médica Psiquiatra e trabalho o caso Torquato. Torquato demonstra algumas lembranças. Por isso, vim à Fortaleza, na esperança de obter mais informações sobre a vida do paciente. Você parece ser a única pessoa que pode me ajudar agora.
- Em que eu posso te ajudar? Quando Norma ouviu a voz da moça, seu coração se encheu de fé.
- Conte-me sobre sua amizade com Torquato! A freira se ajeitou no banco e iniciou sua narrativa. “Torquato era muito inteligente. As pessoas o viam calado, mas, não conheciam sua mente. Ele e Giordano se envolveram em algumas experiências com o livro macabro da Capa Preta. Quando Giordano disse que morou e viveu no mesmo lugar de São Cipriano, Torquato se interessou pelo estudo do livro. Os dois fizeram muitas experiências, algumas delas foram feitas aqui mesmo nesta capela”.
- Que tipos de experiências foram feitas?
- Olha doutora, na verdade, eu nem devia estar conversando com você! Eu não posso revelar as experiências.
- Nem uma só? Insistiu a médica.
“Torquato encontrou no livro que podia fazer uma criança semelhante a ele. De acordo com a receita da magia ele teria que usar pele humana e alguns cabelos. Mas, felizmente, acho que ele não fez o feitiço por que era preciso sangue humano para fazê-lo. Torquato queria ter um filho a todo custo. Ele não queria ser padre. Veio para o seminário por causa de sua mãe”, por isso, ele queria uma cópia dele.
- Uma cópia?
- Sim, ele queria fazer uma pessoa com a idade dele, desta forma, sua mãe teria seu padre.
- Mas, você não acreditou nisso, não? Não foi? Isadora sorriu.
- E Giordano onde ele está agora?
- Não te contaram?
- O que?
- Que Giordano está morto? Foi encontrado morto em Messejana. Seu corpo estava sem pele e em adiantado estado. Seus olhos foram arrancados. Os médicos não encontraram uma gota de sangue no cadáver. Torquato não teve nada a ver com a morte de Giordano. Acho que Torquato amava o italiano e fazia planos de ir embora com ele para a Itália. Eles e a criança prometida pelo livro. Agora a história de Torquato vai ficando mais estranha. Feitiço, criança, morte. Norma via que era o momento de parar. A coisa estava ficando sinistra, porém, Isadora resolve abrir o coração de vez.
“Norma, eu não queria que nada de mal acontecesse a ninguém. Torquato estava dominado por uma força muito maior que sua fé. Giordano nutria por Torquato um amor muito possessivo. Ele queria que Torquato abrisse mão do feitiço e fosse com ele de qualquer jeito, uma vez que para conseguir pele humana seria preciso matar alguém. Torquato pensou em pegar um mendigo na rua, mas, Giordano não concordava dizendo que carne de mendigo produziria um ser miserável. Pediu muitas vezes para que Torquato desistisse do experimento. Todavia, era tarde demais”.
- Giordano, se eu for embora com você minha mãe não vai suportar. Acho que dando um filho para ela, ela se acalmará.
- Rapaz você enlouqueceu? Era só uma brincadeira! Não era nada sério. Esqueça isso e vamos embora meu amor!
- Não Giordano! Minha mãe não aceitará meu amor. A criança amenizará sua dor. Eles discutiram muito aqui em minha casa. Eu vi quase tudo até que...
- Até o que Isadora?
- Até...
A moça começou a chorar. Norma tenta confortá-la dando-lhe um abraço. A médica percebe que o ser com que ela falava parecia um boneco. A voz saia de dentro dele, mas, nada existia, exceto muita roupa. Norma deu um salto instintivo para trás. Olha bem ao seu redor e percebe que a capela era parte de um pequeno cemitério particular. O casarão da Rua Senador Pompeu tinha um cemitério de família nos fundos. A porta que dava acesso à cozinha estava aberta. A criança estava em pé defronte à mesma. Ela estende a mão para Norma como que acenasse para ela entrar.
Dentro da casa não havia luzes acessas, somente velas espalhadas por lugares estratégicos. A pessoa que havia preparado o local sabia ao certo que alguém apareceria naquela noite. A cozinha era grande, toda mobiliada com móveis de primeira. Nada faltava, o luxo estava em todo lugar. Da cozinha partia um imenso corredor que dava na sala principal que ficava na parte de frente da casa. Lá, uma escada larga de madeira de lei dava acesso ao andar de cima. Norma via tudo sempre acompanhada da criança misteriosa. A criança olha para cima como que dissesse a moça que ela devia subir. Norma sobe os degraus da escada um a um, seu coração começava a bater forte, embora, mulher de ciência, aquela situação a colocara em uma condição de muito perigo e medo, afinal, que casa sinistra era aquela? Uma residência grande, de gente rica, no entanto, vazia? “O que era aquilo lá embaixo. Com quem eu conversei?” Estas foram perguntas sem respostas para Norma.
A escada terminava no início de outro corredor, ao longo deste havia portas. Todas estavam fechadas. Na parede do lado esquerdo, havia uma galeria de quadros de parentes de pessoas da casa. Uma mulher com feições europeias estava em um dos retratos. Norma olha os retratos e se inicia em sua mente uma verdadeira luta; uma luta de saber por que as pessoas dos retratos eram pessoas que pertenciam às lembranças de sua infância. “Eu me lembro de ter visto estas pessoas!” Pensou a jovem médica. “Mas, não me recordo em que situação eu as vi”. Continuou a psiquiatra. Nas fotos estavam imagens do passado de Norma. Uma criança de cabelos loiros estava com um casal. O homem era belo, alto, forte, vestia roupas da marinha. Em seu ombro esquerdo muitas medalhas cintilavam. Por um instante Norma se sentiu em casa, porém uma certeza reinava em seus pensamentos: “Nada devo ter nada com essa gente por que desde criança que moro nos Estados Unidos”. Próximo ao final do longo corredor havia uma porta aberta que dava acesso a uma sala muito grande. Dentro dela saia um som de piano. Norma segue em direção à sala.
A sala também estava iluminada à luz de velas. Em seu meio um grande pentagrama havia sido riscado. Em cada ponta da estrela esotérica havia uma vela preta acessa. Sobre a estrela cerca de dois metros do chão, cordas virgens seguravam a pele de um ser humano que havia sido sacrificado vivo. Pelo tamanho da pele devia ser de alguém adulto. Norma olha para tudo com atenção. Sobre uma mesinha havia um livro aberto. Era o Livro de Magia Goética “O Capa Preta”. Dentro dele, estavam os nomes de Torquato, Giordano, Isadora, Gustavo, Tadeu, e outros. “Nunca pensei que um dia eu iria ver um ritual de magia negra”. Pensou novamente a médica.
O som de portas sendo abertas ecoa pelo corredor. Passos assustam a médica; ela se esconde entre as cortinas da sala. Treze pessoas entram nela. O primeiro carregava um vaso de louça branca com sangue dentro. Os demais o acompanham formando um círculo arredor do pentagrama. As invocações iniciam. Eram palavras em língua romana. Norma sabia que aquilo era um ritual. Ninguém podia ser reconhecido, todos vestiam roupas pretas de monge, e tinham suas cabeças cobertas com um capuz. Em seus peitos cruzes de cabeças para baixo, ou medalhões com o um escorpião gravado neles. A criança entra na sala trazida pela mão de Isadora. Quando os treze veem a criança, as invocações aumentam. No meio do pentagrama a criança ingere o conteúdo do vaso. Isadora é suspensa do chão com força inexplicável, e é envolvida pela pele que estava nas cordas virgens sobre o pentagrama. O cheiro de carne queimada era muito forte. Alguns segundos depois Isadora surge no centro do pentagrama, totalmente, despida. Era uma mulher linda. No entanto, algo estranho havia nela. As pessoas tomam a criança e a levam para Isadora, esta agarra a criança e arranca-lhe o coração com as mãos na frente de todos. Isadora com o coração da criança na mão caminha na direção das cortinas. Ao chegar próximo da médica a encontra desmaiada.
- Neusa, o que você faz aqui?
- Ah, menina são onze horas da manhã e você me pergunta o que eu estou fazendo aqui?
- Sim, você não estava em Baturité?
- Claro que sim, mas, Vanúbio me pediu para te ajudar. Tua viagem demorava muito. Então ele disse para eu vir a Fortaleza.
- E quando você chegou?
- Há poucos minutos atrás.
- Que casa é essa?
- Essa casa é de nossa família, Isadora é minha sobrinha. Torquato ficou aqui muitos dias quando esteve em Fortaleza. Mal Neusa fechara a boca, um homem entra no quarto.
- Como está a menina? Norma, esse é Tadeu!
- Muito prazer! Os olhar clínico da médica incide sobre o reflexo da luz solar sobre as medalhas que estavam no peito esquerdo do homem.
- O prazer é todo meu. Estou bem. O que era aquilo ontem à noite? O que houve aqui?
- O que você está perguntando?
- Ontem, eu vi uma sessão de magia negra nessa casa.
- Aqui? Perguntou Neusa assustada.
- Sim, aqui!
- Todos nós chegamos hoje pela manhã. Você não quer tomar um café? Norma se levanta da cama e se apronta para o café. Comeu algumas torradas com dona Neusa e o estranho Tadeu. Este era um homem de meia idade. Seus cinquenta e cinco anos eram facilmente percebidos pelos cabelos grisalhos em abundancia em sua cabeça.
- Mas, eu não entendo! Quando cheguei ontem, havia um criado negro que abriu a porta, depois encontrei uma criança que me acompanhou o tempo inteiro até, até... Norma começa a chorar.
- Até o que Norma?
- Isadora, ou sei lá quem, arrancou-lhe o coração do peito ainda viva e caminhou na minha direção. Está tudo lá na sala de cima! Neusa e Tadeu acompanharam Norma a sala. Não havia o menor vestígio do que Norma havia contado.
- O cemitério, o pequeno cemitério; eu conversei com Isadora sua sobrinha na capela do cemitério. Todos desceram aos fundos. A capela estava lá, os túmulos estavam lá, mas, nenhuma evidência de Isadora.
- Eu estou sem entender! Norma estava muito nervosa. Neusa a disse que se deitasse até chegar o transporte. Ela retornaria para Baturité naquele mesmo dia. A médica de Nova York nunca havia sido testemunha de um assassinato tão cruel como aquele. Norma não queria se entregar a situação e voltar para Baturité sem respostas. Contudo a natureza falou mais alto. E dessa vez bem mais alto. Norma pegou no sono.
- Norma! Norma!
- Sim?
- Eu sou Giordano. Você queria falar comigo?
- Sim!
- Então vá até a capela!
- A capela?
- Sim!
Em seu sonho Norma conversava com Giordano. O rapaz parecia bem e muito vivo.
- O que houve entre você e Torquato?
- Nos conhecemos no internato do seminário. Ele era muito calado, e eu também. Logo fizemos amizade e passamos a morar no mesmo quarto. Com o tempo, não sei o motivo, Monsenhor Raimundo me fez trocar de quarto e me avisou que eu retornaria para Roma.
- E esse monsenhor era amigo de Torquato?
- Ele protegia demais o rapaz. Tudo ele dizia que contaria a dona Quidinha. A mulher estava informada de tudo.
- De tudo o que?
- Que nós dois nos amávamos. Eu o chamei para ir comigo para Roma. Foi aí quando tudo começou...
- O que? Antes que Giordano respondesse, dona Neusa sacode o ombro direito de Norma tentando acordá-la; era hora de partir.
Norma acorda um tanto desorientada, troca-se e acompanha dona Neusa até o transporte.
- A senhora não vem comigo? Perguntou Norma.
- Não, tenho algumas pendências aqui. Vá com Tadeu! Ele te fará companhia. Tadeu acompanhou Norma até a estação de trem. A moça ficou aguardando o transporte sair. Enquanto isso algumas perguntas persistiam na cabeça da médica. “O que minhas fotos de infância faziam lá?” “O ritual de magia negra, por que era feito ali?” “Os crimes que estavam sendo cometidos, iriam ficar sem punição?” “Quem era a criança que foi sacrificada na noite anterior?” A doutora de Nova York decidiu chamar a polícia. Foi muito difícil convencer o delegado Teixeira a ir até a casa dos barões. O delegado acompanhou a médica com mais dois homens. O cabo Seixas, e o soldado Aguiar.
Os três entram sem avisar pela porta dos fundos. Desta feita, as luzes estavam todas acessas. Havia música e alegria na casa. À cabeceira da mesa de jantar do salão de chegada estava Giordano. Ao seu lado direito sentava Torquato, ao seu lado esquerdo, sentava Neusa. Na cadeira do meio estava Tadeu, do lado oposto Isadora. Todos comiam e conversavam bem animados.
- Recebemos uma denúncia que houve um crime aqui ontem à noite. Disse o delegado Teixeira.
- Como? Um crime? Perguntou com ar de surpresa Giordano.
- Doutor, este rapaz que falou é para estar em Roma. Todas as informações que recebi constavam que ele estava em Roma. As pessoas da mesa deram risadas.
Giordano em Roma? Ele mora comigo! Afirmou Torquato.
- Doutor este está internado no sanatório em Baturité. Novamente todos riram.
- Seu delegado como podes verificar a moça está descontrolada. Norma começou a gritar e a dizer: “Eu vi quando Isadora arrancou o coração da criança!” “Eu vi tudo delegado!” O delegado não sabia em quem acreditar. Pediu para seus homens olharem a casa. Os dois fizeram o serviço. Nada suspeito foi achado.
- Eu lamento doutora, mas, nada de suspeito foi achado. Quanto ao estarem aqui e ali, todos tem o direito de ir e vir. Lamento! O delegado se retirou da casa com seus homens. Norma caminha na direção de Neusa e pergunta:
- Por que você me chamou para cuidar do caso de Torquato se ele está bem?
- Este Torquato está bem, o de Baturité, a cópia, está mal. As cópias são frágeis. Seus psiquismos não suportam muita pressão.
- Como? Não estou entendendo!
- Nós tiramos cópias das pessoas. As cópias assumem as coisas que nós não gostamos de fazer. Ou, às vezes, fazemos cópias para matarmos a saudade de entes idos. Neusa mostrou a foto de Norma quando era criança.
- Nós choramos muito sua partida meu amor, não foi Tadeu?
- Sim, Neusa foi. Deixe a moça em paz! Ela agora é uma de nós. Sente minha filha! Vamos jantar! Norma sentou-se à mesa. Seus olhos estavam arregalados. Nada era mais inteligível.
- Vamos menina! Beba um pouco de sopa! Neusa põe sopa no prato de Norma. Ao olhar para seu prato, norma vê dois olhos azuis, eram os olhos da criança cujo coração fora arrancado ainda batendo. Norma gaguejava o tempo inteiro, apontava para a sopa. A levaram para a Casa de Misericórdia de Fortaleza. Alguns anos depois. Neusa e Tadeu foram visitá-la. A moça estava do mesmo jeito. O médico disse que seu caso não tinha recursos.
- É Neusa, as cópias são frágeis.
- Sim, meu amor. As cópias não resistem aos fatos reais.
Nunca mais soubemos do padre belo e de sua médica. Os jornais de Fortaleza noticiavam que muitas famílias reclamavam do desaparecimento de suas crianças. Eram crianças pobres com a idade entre sete e oito anos. O serviço Social denunciou que mendigos e moradores de rua estavam sumindo. Seus corpos nunca foram achados. Contudo, o cemitério particular da mansão da Rua Senador Pompeu abria mais covas...
Torquato foi estudar no seminário muito jovem. O rapaz mal tinha feito dezesseis anos e estava entre os padres. Aprendeu latim, oratória, homilética, hermenêutica, teologia, grego, filosofia e outros saberes para se tornar em um religioso com “um futuro belo pela frente”. Sua mãe, uma mulher aristocrata de Baturité, no Ceará, não medira esforços para dar ao seu único herdeiro a melhor educação da época. Ademais, Dona Quidinha, como era chamada, era uma mulher de fé. Quando Torquato ainda estava em seu ventre, ela teve uma virose, o que, na época, foi um alarme para os médicos. A mulher prometeu a Nossa Senhora que se a criança nascesse, fosse homem ou fêmea, seria do Cristo.
- Dona Quidinha! Estou sabendo que Torquato está voltando do seminário de Fortaleza! Não se fala outra coisa na cidade!
- Mulher, você nem imagina a alegria!
Os anos de viuvez, e depois, os anos longe de Torquato ensinaram a dona Quidinha o valor da presença das pessoas. Quidinha ficara viúva depois do nascimento de seu único filho. Seu marido, Augusto viajava para o Pará; o homem negociava com borracha de seringa; fez sua fortuna com esse comércio. Na época, a borracha de seringueira tinha muito valor. Seu Augusto foi picado por uma serpente venenosa e morreu no Pará. No dia de seu enterro, Quidinha foi consolada pelos familiares e amigos, mas, nada disso tirou de seu peito a eterna saudade de seu amor, nem o vazio de sua casa. Com a partida de Torquato, a mulher se isolou mais ainda reservando sua atenção aos parentes mais chegados. Durante a estada de Torquato em Fortaleza, Quidinha se dedicava a leitura e aos afazeres de casa. Mesmo com tantos criados, a mulher sempre arranjava alguma coisa para lhe ocupar o tempo. Era séria, e sem muita conversa. Seu falar era de dama – um Português muito culto.
- Acho que o meu menino vai adorar esta cama. Você não acha Gertrudes?
- Com certeza dona Quidinha. Torquato, agora é um homem de Deus, e vai tomar conta da fé de todos nós!
- Que Deus te ouça, mulher!
Torquato desceu da condução às oito da manhã de sábado. Seus parentes e amigos de infância estavam lá. Foi um dia de muita alegria para todos da velha Baturité. O prefeito pediu a palavra ainda na rua para saudar o jovem padre:
“Meus amigos e amigas! Meus eleitores ou não! É com muita alegria que, hoje, a luz do dia, eu vejo este jovem Baturiteense retornar ao lar, trazendo sobre nós, a benção de Cristo...”
O jovem Torquato estava muito cansado, agradeceu a todos e foi para casa. Em casa, as pessoas o aguardavam para a recepção no casarão da viúva. Torquato em seu quarto respirou finalmente ar puro. O stress da viagem não mais o incomodava. Tudo estava bem, exceto, a persistente lembrança de um amor proibido no seminário. Parece que a combustão do amor proibido se compara a da paixão. Esta é cega; enlouquece, ou causa tragédias. Mas, se o amor vem de Deus, por que causa tantos problemas?
Nem sempre o amor é problema. No entanto, um padre amar uma pessoa de carne com desejos carnais era algo que aquela família não queria. Torquato era o ídolo que sua mãe não abriria mão. Os anos passaram. O padre da cidade estava muito idoso. A hora de assumir a paróquia havia finalmente chegado. A comunidade decidiu fazer uma festa para receber o novo padre. Dona Quidinha queria fazer uma surpresa para seu filho e mandou convites para alguns de seus colegas de seminário. Torquato estava indiferente. O rapaz só pensava no trabalho. Dedicava todo o seu tempo livre para os serviços da paróquia. Em casa ele rezava e estudava os evangelhos. Sua mãe a cada dia se enchia de felicidades.
- Eu sabia que meu ventre geraria um ente santo!
- O que Quidinha! Larga de ser vaidosa mulher! Esquecestes-vos do amor por Tadeu?
- Deixa disso! Sua cobra! Isso foi há muito tempo atrás e nem faz mais sentido. Neusa parecia ser a pessoa mais normal daquela casa. De um lado tínhamos um padre calado e do outro uma mãe encantada com os que seus olhos viam, embora, nervosa sem causa aparente.
A igreja estava cheia. Pessoas católicas das cidades vizinhas e munícipes encheram a matriz. Torquato esperava seus colegas, mas, até aquele momento ninguém aparecera. Ele pensou que foi a dificuldade de transporte. A missa estava quase na Eucaristia quando o novo padre levanta seus olhos do altar na direção dos bancos da última fila. A nave da Igreja devia ter uns trinta metros. Lá no final estava um homem com veste de monge. Seu rosto estava quase todo encoberto com um capuz preto. Ele carregava um rosário no peito. Torquato perdeu a fala. Na verdade, tudo começou com uma gagueira com a mão apontada na direção do homem. As pessoas olhavam para trás e entendiam que ele estava emocionado com alguma coisa ou alguém. Os auxiliares do culto o levaram para sacristia e de lá para o sanatório de doentes mentais. Torquato foi dado como doido.
- Meu filho, tão bonito, tão belo, tão inteligente! Não era Neusa?
- Era mulher! Mas o caso de Torquato está mal contado.
- Deixa de ser uma peste sua doida?
- Quidinha! É a segunda vez que você fala comigo com esses termos. Contenha-se! Você sempre foi uma dama.
- Mulher! Estou desesperada! Meu filho, Neusa! Meu filho enlouqueceu! De fato quem esperava uma tragédia dessas?
Torquato no sanatório passou um tempo isolado das outras pessoas. Fizeram isso por precaução. As pessoas não sabiam se ele era violento. Torquato não era violento. O padre belo ficou autista. A maior parte do tempo ele falava consigo. As pessoas não entendiam muito bem sua fala. Em alguns momentos ele se sociabilizava. Logo em seguida retornava para o seu mundo. Sua mãe, no início o visitava todo final de semana. Com o passar do tempo, as visitas foram ficando cada vez mais raras. Torquato ficou esquecido no sanatório. Esquecido em parte, pois, as pessoas sabiam de quem ele era filho.
- O filho de Quidinha está melhor? Perguntou o encarregado Pedro.
- Não, Pedro. Torquato sofre de esquizofrenia. É uma doença muito difícil de ser tratada. A Medicina ainda não tem muitos conhecimentos sobre ela.
- Dr. Vanúbio, mas, ele tem tratamento?
- Ainda não temos drogas exclusivas para este tipo de problema.
- Então, ele vai ficar aqui até morrer?
- Muito provável.
Dr. Vanúbio saiu da enfermaria do hospital psiquiátrico São Simeão, e se dirigiu a sua sala onde havia uma mulher o aguardando.
- Boa tarde! Disse Vanúbio ao entrar na sala.
- Boa tarde. Respondeu a linda mulher.
- A senhora é?...
- Sim, eu sou a Dr. Norma. Estou vindo do Hospital Saint Peterson de Nova York. Estamos desenvolvendo um Estudo sobre a esquizofrenia entre religiosos. O caso de Torquato veio parar em nossa mesa pelas mãos de uma senhora chamada Neusa. Tia do paciente.
- Sei, mas, ainda estou sem entender. O que eu posso fazer por você?
- Eu gostaria que você me colocasse em sua equipe para acompanhar o caso de Torquato. Acredito que será muito útil para minhas pesquisas.
- Mas quem vai lhe pagar? Nosso hospital sobrevive de verbas públicas!
- Não se preocupe. O Instituto de Pesquisas Clínicas e Psiquiátricas cobrirá as despesas.
Daquele dia em diante Norma e Vanúbio estavam juntos no tratamento de Torquato. Os encontros se davam pelo turno da manhã. Vanúbio decidiu abrir uma via de diálogo com o rapaz. Até então, o que ele sabia é que esse tipo de paciente não diz coisa com coisa. Está totalmente dissociado da vida real.
- Torquato, como se sente hoje? Torquato nem virou o rosto em sua direção.
- Vai ser complicado Dr. Norma! Afirmou Vanúbio com muita convicção.
- Complicado, mas, não impossível. Replicou a Médica de Nova York.
Os loucos têm alguma coisa para dizer. Eles dizem do que sentem daquilo que está nas profundezas de sua alma. A fala fragmentada, dissociada da nossa realidade oculta à lucidez de um homem. A cadeia de significantes foi quebrada, o elo causal foi perdido em algum lugar. O outro não se apresenta diante dele; o outro se expressa em seu corpo.
Torquato movia as mãos do mesmo jeito que ele as moveu quando na missa. A visão do homem com o rosto num capuz estava diante de seus olhos. E ele apontava para aquele homem quando estava tenso. Não saía som de sua boca, apenas, um gemido baixo que soava como sendo uma dor. A visão de sua mãe o deixava muito nervoso. Talvez tenha sido por essa razão que a mulher deixou de ver o filho. Torquato não suportava a visita de sua mãe.
- Dr. Vanúbio!
- Sim?
- Sua pessoa já percebeu o movimento das mãos dele?
- Não! São movimentos sem coordenação, além do mais, não estão contextualizados a nenhum tipo de cadeia de significante.
- Será? Dr. Norma estava buscando uma via de acesso ao psiquismo de Torquato. Ela acreditava que se pudesse entrar em contato com ele poderia retirá-lo, pelo menos, da crise. Às três da tarde ela retorna para sua residência e estuda alguns casos seus. Seu intuito era ver se a esquizofrenia do rapaz era paranóide - a mais importante, ou hebefrênica, ou simples, ou catatônica, esta última seria muito difícil ser, pois, Torquato nunca tivera ataques catalépticos. Norma passa o resto da tarde estudando o caso. A moça perguntava a si mesma sobre muitas questões. Por um instante ela para e pensa: “Faz horas que eu converso comigo mesma. Quem visse, e não soubesse o contexto do meu ato, me chamaria de louca! Será que o mesmo não ocorre com Torquato?” Assim passou a moça o resto da tarde e entrou noite adentro. Ela estava sozinha em sua casa. Por volta das dez horas, ela se deita. Estava muito cansada, e o cansaço não a deixava dormir. Ela acende uma candeia que estava bem próxima de sua cama e começa a andar pelo quarto. Ela fazia perguntas, e ela mesma, as respondia. Às vezes, Norma sentia que havia alguém no quarto, para ser preciso, ela sentia como se uma criança a estivesse observando. Mas, a médica não deu importância a seus instintos. Ela ficou assim até seu corpo não resistir e cair no sono.
Amanheceu chovendo em Baturité. A luz elétrica havia chegado, mas, não para todos. Norma decidiu dar choques em Torquato para ver se ele saía da crise. “Talvez o choque o desperte e o ciclo seja interrompido, aí, eu tentarei uma associação livre”. Torquato foi submetido a três sessões de choque.
“Seu nome é Torquato?”
O rapaz apontava para frente e não produzia nenhuma fala. Seus olhos estavam desfocados. De sua boca escorria uma fina baba incolor. Norma sem saber por que, estende a mão para limpá-lo, na metade do caminho, para, e se contém. Dr. Vanúbio observa o gesto da colega, e formula a hipótese de Norma ter se apaixonado pelo paciente a quem ela demonstrava tanta vontade de curar. “Para onde ele aponta?” Esta foi a pergunta repetida centenas de vezes em sua mente.
Torquato teve seu quadro agravado depois do inverno de 1929. O rapaz apesar da insistência de Norma não apresentava melhoras; nada de associação livre, nenhum diálogo significativo, então, ela resolveu trazer alguns amigos de Torquato para ver se ele tinha memória sobre as experiências vividas com aquelas pessoas que estavam presentes em uma época muito importante de sua vida: “O seminário”. Entre eles estava Gustavo, primo de Isadora.
- Torquato! Você se lembra de seus amigos? O rapaz estava com os olhos distantes e de repente vai virando-os de forma desconfiada na direção do grupo. Em seguida Torquato aponta para frente e repete o que sempre faz: “Entra em crise de gagueira e não diz coisa com coisa”. Norma perdia as esperanças quando o doente para, e volta o olhar na direção de Gustavo. Torquato chora inesperadamente. Norma ficou tão surpresa e feliz que saiu a procura do doutor Vanúbio.
- Doutor! Torquato reagiu a estímulos mnemônicos e chorou! Isso nos diz alguma coisa!
- Com certeza minha cara! Precisamos saber mais do passado do rapaz. Norma decidiu investigar o passado de Torquato no seminário. Para tanto, viajou para Fortaleza, a capital do Ceará. O seminário da Prainha estava em reforma. Havia muita gente de fora e alunos noviços que iniciavam a vida religiosa naquele ano. Norma tinha a lista completa de todos os amigos de Torquato; dos professores, e das pessoas que trabalharam na época dele. Neusa cuidou de tudo. Quidinha mantinha-se totalmente fora do caso. A mulher se calou e se fechou de vez para o mundo depois da doença, ou fracasso do filho em ser o padre de Baturité.
- Com quem Torquato mais se relacionava Monsenhor?
- Veja minha filha! Torquato era muito dócil. Aceitava tudo. Mal falava. Um rapaz muito tímido, na verdade. Ele andava com Giordano, um italiano que decidiu estudar no Brasil.
- Giordano? Como posso encontrá-lo?
- Giordano? Você quer encontrar Giordano?
- Sim, Monsenhor Raimundo. Eu gostaria de falar com Giordano!
- É impossível! O rapaz voltou para Roma. Logo depois da formatura, Giordano recebeu o chamado de Deus para a Itália. Lamento doutora Norma! Norma decidiu ficar mais tempo em Fortaleza para visitar algumas paróquias de seminaristas amigos de Torquato. Na Catedral Metropolitana de Fortaleza havia uma cripta. Nela, os mortos célebres da igreja Católica do Ceará eram sepultados. Na cripta havia uma pequena biblioteca. Dela cuidava um jovem ruivo com feição de gringo, mas, não o era. Ele era um sobralense que havia entregado o coração a Virgem. “Ele estará na missa ajudando o Bispo. Depois ele retoma aos afazeres na cripta”. Foi isso que Monica, um noviça do convento das Dores, disse para Norma.
- Padre Rodolfo! Padre Rodolfo! Eu sou pesquisadora do Instituto de Clínica Psiquiátrica do Hospital Saint Peterson de Nova York. Eu e o doutor Vanúbio de Baturité estamos trabalhando o caso de um jovem que foi seu colega de quarto. O Torquato. Seu quadro melhorou e as lembranças começaram a surgir. O que sua pessoa pode nos dizer sobre Torquato?
- Muito pouco nós conversamos, mas, ele não era má pessoa não!
- Bem, eu não entendo. Você consta na lista como um de seus melhores amigos. Rodolfo ficou vermelho. Quando o sobralense ficava nervoso costumava ficar com as maçãs vermelhas.
- Nós éramos amigos. No entanto, conversávamos muito pouco, nossa amizade se limitava a críticas teológicas. Torquato se enveredou pelo estudo do Ocultismo. A última palavra de Rodolfo quase não foi ouvida. O homem a disse pelo canto da boca.
- Ocultismo? Que tipo de Ocultismo?
- Não sei. O que sei é que quando Giordano o convidava para ir a Messejana ele o acompanhava; isso ocorria quando não havia atividades no seminário. Diziam que iam visitar paróquias amigas.
- Você sabe do endereço de Messejana?
- Não. Messejana não é tão grande. Você vai achar alguma coisa lá, eu acho.
Norma havia pesquisado tudo e todos. Professores, amigos, padres. Somente um nome faltava, e que estava por perto, era Isadora. Norma não tinha feito muito progresso em sua viagem para Fortaleza. Isadora seria seu último tiro. “Mas, como acha-la? As pessoas dos seminários e conventos não gostam de dar informações. Os amigos de Torquato se recusam a falar sobre ele. Será que Isadora vai dizer alguma coisa?”. Pensou a jovem psiquiatra.
Era noite quando Norma encontra a noviça Isadora na casa de seus pais na Rua Senador Pompeu. Fortaleza tinha luz elétrica. Todavia nem toda casa era abençoada com a tecnologia. A casa de Isadora tinha eletricidade. Isso indicava que sua família era de posses. Norma bate no portão de grade grossa que se estendia por quase meio quarteirão. Ao seu encontro vem um homem alto, magro, e negro. Ele vestia um terno preto de criado. Ao seu lado estava uma criança do sexo masculino, branca, de oito anos.
- Estou sendo aguardada por dona Isadora. Eu sou a Doutora Norma do Saint Peterson. O homem sem dizer uma palavra, abre o portão e a acompanha até o hall da casa. Norma olha para trás e vê apenas a criança. “Para onde foi o criado?” Pensou consigo a mulher. A porta era de cedro puro entalhada com querubins nas duas bandas. As paredes da casa ostentavam o melhor da alvenaria da época. O piso era de mármore azulado e brilhava que doía nos olhos. Todo o entorno da casa tinha jardins e rosas de todos os tipos. Havia uma entrada pelos fundos a uma distância de quarenta metros até o hall. Norma bate uma segunda vez. A criança se aproxima da mulher como que quisesse dizer alguma coisa. Norma para de bater, olha para ela e pergunta:
- Como é seu nome? A criança gagueja e aponta para dentro da residência.
- Como? Estou sem entender! A criança corre para os fundos da casa e Norma segue atrás.
Os fundos da casa tinha uma capela velha. Os fundos da capela terminavam no muro dos fundos da casa. A porta da capela estava aberta, e dentro dela havia uma moça vestida de freira noviça. A capela estava iluminada com velas. As cores das velas logo chamou a atenção da médica. Todas eram roxas.
- Isadora! Meu nome é Norma. Sou médica Psiquiatra e trabalho o caso Torquato. Torquato demonstra algumas lembranças. Por isso, vim à Fortaleza, na esperança de obter mais informações sobre a vida do paciente. Você parece ser a única pessoa que pode me ajudar agora.
- Em que eu posso te ajudar? Quando Norma ouviu a voz da moça, seu coração se encheu de fé.
- Conte-me sobre sua amizade com Torquato! A freira se ajeitou no banco e iniciou sua narrativa. “Torquato era muito inteligente. As pessoas o viam calado, mas, não conheciam sua mente. Ele e Giordano se envolveram em algumas experiências com o livro macabro da Capa Preta. Quando Giordano disse que morou e viveu no mesmo lugar de São Cipriano, Torquato se interessou pelo estudo do livro. Os dois fizeram muitas experiências, algumas delas foram feitas aqui mesmo nesta capela”.
- Que tipos de experiências foram feitas?
- Olha doutora, na verdade, eu nem devia estar conversando com você! Eu não posso revelar as experiências.
- Nem uma só? Insistiu a médica.
“Torquato encontrou no livro que podia fazer uma criança semelhante a ele. De acordo com a receita da magia ele teria que usar pele humana e alguns cabelos. Mas, felizmente, acho que ele não fez o feitiço por que era preciso sangue humano para fazê-lo. Torquato queria ter um filho a todo custo. Ele não queria ser padre. Veio para o seminário por causa de sua mãe”, por isso, ele queria uma cópia dele.
- Uma cópia?
- Sim, ele queria fazer uma pessoa com a idade dele, desta forma, sua mãe teria seu padre.
- Mas, você não acreditou nisso, não? Não foi? Isadora sorriu.
- E Giordano onde ele está agora?
- Não te contaram?
- O que?
- Que Giordano está morto? Foi encontrado morto em Messejana. Seu corpo estava sem pele e em adiantado estado. Seus olhos foram arrancados. Os médicos não encontraram uma gota de sangue no cadáver. Torquato não teve nada a ver com a morte de Giordano. Acho que Torquato amava o italiano e fazia planos de ir embora com ele para a Itália. Eles e a criança prometida pelo livro. Agora a história de Torquato vai ficando mais estranha. Feitiço, criança, morte. Norma via que era o momento de parar. A coisa estava ficando sinistra, porém, Isadora resolve abrir o coração de vez.
“Norma, eu não queria que nada de mal acontecesse a ninguém. Torquato estava dominado por uma força muito maior que sua fé. Giordano nutria por Torquato um amor muito possessivo. Ele queria que Torquato abrisse mão do feitiço e fosse com ele de qualquer jeito, uma vez que para conseguir pele humana seria preciso matar alguém. Torquato pensou em pegar um mendigo na rua, mas, Giordano não concordava dizendo que carne de mendigo produziria um ser miserável. Pediu muitas vezes para que Torquato desistisse do experimento. Todavia, era tarde demais”.
- Giordano, se eu for embora com você minha mãe não vai suportar. Acho que dando um filho para ela, ela se acalmará.
- Rapaz você enlouqueceu? Era só uma brincadeira! Não era nada sério. Esqueça isso e vamos embora meu amor!
- Não Giordano! Minha mãe não aceitará meu amor. A criança amenizará sua dor. Eles discutiram muito aqui em minha casa. Eu vi quase tudo até que...
- Até o que Isadora?
- Até...
A moça começou a chorar. Norma tenta confortá-la dando-lhe um abraço. A médica percebe que o ser com que ela falava parecia um boneco. A voz saia de dentro dele, mas, nada existia, exceto muita roupa. Norma deu um salto instintivo para trás. Olha bem ao seu redor e percebe que a capela era parte de um pequeno cemitério particular. O casarão da Rua Senador Pompeu tinha um cemitério de família nos fundos. A porta que dava acesso à cozinha estava aberta. A criança estava em pé defronte à mesma. Ela estende a mão para Norma como que acenasse para ela entrar.
Dentro da casa não havia luzes acessas, somente velas espalhadas por lugares estratégicos. A pessoa que havia preparado o local sabia ao certo que alguém apareceria naquela noite. A cozinha era grande, toda mobiliada com móveis de primeira. Nada faltava, o luxo estava em todo lugar. Da cozinha partia um imenso corredor que dava na sala principal que ficava na parte de frente da casa. Lá, uma escada larga de madeira de lei dava acesso ao andar de cima. Norma via tudo sempre acompanhada da criança misteriosa. A criança olha para cima como que dissesse a moça que ela devia subir. Norma sobe os degraus da escada um a um, seu coração começava a bater forte, embora, mulher de ciência, aquela situação a colocara em uma condição de muito perigo e medo, afinal, que casa sinistra era aquela? Uma residência grande, de gente rica, no entanto, vazia? “O que era aquilo lá embaixo. Com quem eu conversei?” Estas foram perguntas sem respostas para Norma.
A escada terminava no início de outro corredor, ao longo deste havia portas. Todas estavam fechadas. Na parede do lado esquerdo, havia uma galeria de quadros de parentes de pessoas da casa. Uma mulher com feições europeias estava em um dos retratos. Norma olha os retratos e se inicia em sua mente uma verdadeira luta; uma luta de saber por que as pessoas dos retratos eram pessoas que pertenciam às lembranças de sua infância. “Eu me lembro de ter visto estas pessoas!” Pensou a jovem médica. “Mas, não me recordo em que situação eu as vi”. Continuou a psiquiatra. Nas fotos estavam imagens do passado de Norma. Uma criança de cabelos loiros estava com um casal. O homem era belo, alto, forte, vestia roupas da marinha. Em seu ombro esquerdo muitas medalhas cintilavam. Por um instante Norma se sentiu em casa, porém uma certeza reinava em seus pensamentos: “Nada devo ter nada com essa gente por que desde criança que moro nos Estados Unidos”. Próximo ao final do longo corredor havia uma porta aberta que dava acesso a uma sala muito grande. Dentro dela saia um som de piano. Norma segue em direção à sala.
A sala também estava iluminada à luz de velas. Em seu meio um grande pentagrama havia sido riscado. Em cada ponta da estrela esotérica havia uma vela preta acessa. Sobre a estrela cerca de dois metros do chão, cordas virgens seguravam a pele de um ser humano que havia sido sacrificado vivo. Pelo tamanho da pele devia ser de alguém adulto. Norma olha para tudo com atenção. Sobre uma mesinha havia um livro aberto. Era o Livro de Magia Goética “O Capa Preta”. Dentro dele, estavam os nomes de Torquato, Giordano, Isadora, Gustavo, Tadeu, e outros. “Nunca pensei que um dia eu iria ver um ritual de magia negra”. Pensou novamente a médica.
O som de portas sendo abertas ecoa pelo corredor. Passos assustam a médica; ela se esconde entre as cortinas da sala. Treze pessoas entram nela. O primeiro carregava um vaso de louça branca com sangue dentro. Os demais o acompanham formando um círculo arredor do pentagrama. As invocações iniciam. Eram palavras em língua romana. Norma sabia que aquilo era um ritual. Ninguém podia ser reconhecido, todos vestiam roupas pretas de monge, e tinham suas cabeças cobertas com um capuz. Em seus peitos cruzes de cabeças para baixo, ou medalhões com o um escorpião gravado neles. A criança entra na sala trazida pela mão de Isadora. Quando os treze veem a criança, as invocações aumentam. No meio do pentagrama a criança ingere o conteúdo do vaso. Isadora é suspensa do chão com força inexplicável, e é envolvida pela pele que estava nas cordas virgens sobre o pentagrama. O cheiro de carne queimada era muito forte. Alguns segundos depois Isadora surge no centro do pentagrama, totalmente, despida. Era uma mulher linda. No entanto, algo estranho havia nela. As pessoas tomam a criança e a levam para Isadora, esta agarra a criança e arranca-lhe o coração com as mãos na frente de todos. Isadora com o coração da criança na mão caminha na direção das cortinas. Ao chegar próximo da médica a encontra desmaiada.
- Neusa, o que você faz aqui?
- Ah, menina são onze horas da manhã e você me pergunta o que eu estou fazendo aqui?
- Sim, você não estava em Baturité?
- Claro que sim, mas, Vanúbio me pediu para te ajudar. Tua viagem demorava muito. Então ele disse para eu vir a Fortaleza.
- E quando você chegou?
- Há poucos minutos atrás.
- Que casa é essa?
- Essa casa é de nossa família, Isadora é minha sobrinha. Torquato ficou aqui muitos dias quando esteve em Fortaleza. Mal Neusa fechara a boca, um homem entra no quarto.
- Como está a menina? Norma, esse é Tadeu!
- Muito prazer! Os olhar clínico da médica incide sobre o reflexo da luz solar sobre as medalhas que estavam no peito esquerdo do homem.
- O prazer é todo meu. Estou bem. O que era aquilo ontem à noite? O que houve aqui?
- O que você está perguntando?
- Ontem, eu vi uma sessão de magia negra nessa casa.
- Aqui? Perguntou Neusa assustada.
- Sim, aqui!
- Todos nós chegamos hoje pela manhã. Você não quer tomar um café? Norma se levanta da cama e se apronta para o café. Comeu algumas torradas com dona Neusa e o estranho Tadeu. Este era um homem de meia idade. Seus cinquenta e cinco anos eram facilmente percebidos pelos cabelos grisalhos em abundancia em sua cabeça.
- Mas, eu não entendo! Quando cheguei ontem, havia um criado negro que abriu a porta, depois encontrei uma criança que me acompanhou o tempo inteiro até, até... Norma começa a chorar.
- Até o que Norma?
- Isadora, ou sei lá quem, arrancou-lhe o coração do peito ainda viva e caminhou na minha direção. Está tudo lá na sala de cima! Neusa e Tadeu acompanharam Norma a sala. Não havia o menor vestígio do que Norma havia contado.
- O cemitério, o pequeno cemitério; eu conversei com Isadora sua sobrinha na capela do cemitério. Todos desceram aos fundos. A capela estava lá, os túmulos estavam lá, mas, nenhuma evidência de Isadora.
- Eu estou sem entender! Norma estava muito nervosa. Neusa a disse que se deitasse até chegar o transporte. Ela retornaria para Baturité naquele mesmo dia. A médica de Nova York nunca havia sido testemunha de um assassinato tão cruel como aquele. Norma não queria se entregar a situação e voltar para Baturité sem respostas. Contudo a natureza falou mais alto. E dessa vez bem mais alto. Norma pegou no sono.
- Norma! Norma!
- Sim?
- Eu sou Giordano. Você queria falar comigo?
- Sim!
- Então vá até a capela!
- A capela?
- Sim!
Em seu sonho Norma conversava com Giordano. O rapaz parecia bem e muito vivo.
- O que houve entre você e Torquato?
- Nos conhecemos no internato do seminário. Ele era muito calado, e eu também. Logo fizemos amizade e passamos a morar no mesmo quarto. Com o tempo, não sei o motivo, Monsenhor Raimundo me fez trocar de quarto e me avisou que eu retornaria para Roma.
- E esse monsenhor era amigo de Torquato?
- Ele protegia demais o rapaz. Tudo ele dizia que contaria a dona Quidinha. A mulher estava informada de tudo.
- De tudo o que?
- Que nós dois nos amávamos. Eu o chamei para ir comigo para Roma. Foi aí quando tudo começou...
- O que? Antes que Giordano respondesse, dona Neusa sacode o ombro direito de Norma tentando acordá-la; era hora de partir.
Norma acorda um tanto desorientada, troca-se e acompanha dona Neusa até o transporte.
- A senhora não vem comigo? Perguntou Norma.
- Não, tenho algumas pendências aqui. Vá com Tadeu! Ele te fará companhia. Tadeu acompanhou Norma até a estação de trem. A moça ficou aguardando o transporte sair. Enquanto isso algumas perguntas persistiam na cabeça da médica. “O que minhas fotos de infância faziam lá?” “O ritual de magia negra, por que era feito ali?” “Os crimes que estavam sendo cometidos, iriam ficar sem punição?” “Quem era a criança que foi sacrificada na noite anterior?” A doutora de Nova York decidiu chamar a polícia. Foi muito difícil convencer o delegado Teixeira a ir até a casa dos barões. O delegado acompanhou a médica com mais dois homens. O cabo Seixas, e o soldado Aguiar.
Os três entram sem avisar pela porta dos fundos. Desta feita, as luzes estavam todas acessas. Havia música e alegria na casa. À cabeceira da mesa de jantar do salão de chegada estava Giordano. Ao seu lado direito sentava Torquato, ao seu lado esquerdo, sentava Neusa. Na cadeira do meio estava Tadeu, do lado oposto Isadora. Todos comiam e conversavam bem animados.
- Recebemos uma denúncia que houve um crime aqui ontem à noite. Disse o delegado Teixeira.
- Como? Um crime? Perguntou com ar de surpresa Giordano.
- Doutor, este rapaz que falou é para estar em Roma. Todas as informações que recebi constavam que ele estava em Roma. As pessoas da mesa deram risadas.
Giordano em Roma? Ele mora comigo! Afirmou Torquato.
- Doutor este está internado no sanatório em Baturité. Novamente todos riram.
- Seu delegado como podes verificar a moça está descontrolada. Norma começou a gritar e a dizer: “Eu vi quando Isadora arrancou o coração da criança!” “Eu vi tudo delegado!” O delegado não sabia em quem acreditar. Pediu para seus homens olharem a casa. Os dois fizeram o serviço. Nada suspeito foi achado.
- Eu lamento doutora, mas, nada de suspeito foi achado. Quanto ao estarem aqui e ali, todos tem o direito de ir e vir. Lamento! O delegado se retirou da casa com seus homens. Norma caminha na direção de Neusa e pergunta:
- Por que você me chamou para cuidar do caso de Torquato se ele está bem?
- Este Torquato está bem, o de Baturité, a cópia, está mal. As cópias são frágeis. Seus psiquismos não suportam muita pressão.
- Como? Não estou entendendo!
- Nós tiramos cópias das pessoas. As cópias assumem as coisas que nós não gostamos de fazer. Ou, às vezes, fazemos cópias para matarmos a saudade de entes idos. Neusa mostrou a foto de Norma quando era criança.
- Nós choramos muito sua partida meu amor, não foi Tadeu?
- Sim, Neusa foi. Deixe a moça em paz! Ela agora é uma de nós. Sente minha filha! Vamos jantar! Norma sentou-se à mesa. Seus olhos estavam arregalados. Nada era mais inteligível.
- Vamos menina! Beba um pouco de sopa! Neusa põe sopa no prato de Norma. Ao olhar para seu prato, norma vê dois olhos azuis, eram os olhos da criança cujo coração fora arrancado ainda batendo. Norma gaguejava o tempo inteiro, apontava para a sopa. A levaram para a Casa de Misericórdia de Fortaleza. Alguns anos depois. Neusa e Tadeu foram visitá-la. A moça estava do mesmo jeito. O médico disse que seu caso não tinha recursos.
- É Neusa, as cópias são frágeis.
- Sim, meu amor. As cópias não resistem aos fatos reais.
Nunca mais soubemos do padre belo e de sua médica. Os jornais de Fortaleza noticiavam que muitas famílias reclamavam do desaparecimento de suas crianças. Eram crianças pobres com a idade entre sete e oito anos. O serviço Social denunciou que mendigos e moradores de rua estavam sumindo. Seus corpos nunca foram achados. Contudo, o cemitério particular da mansão da Rua Senador Pompeu abria mais covas...
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
Pedido
Andei revendo algumas questões acerca do torto e resolvi retornar. Gostaria de pedir aos autores a permissão de voltar a postar meus textos. Aguardo respostas.
Obrigado e abraço a todos
Obrigado e abraço a todos
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
A SURDA SEGURIDADE SOCIAL IRLANDESA
A Irlanda esta em crise. Crise tambem de bom senso. O governo parece esta interessado em manter uma massa de desempregado para justificar a sua ineficiencia de desenvolvimento. O produto, de modo geral, e exportado. Capitais de diversos paises europeus, como Inglaterra e Alemanha, sao injetados para salvar a ilha contra o desespero economico.
Sinceramente, a Irlanda e um atraso cultural, economico e politico. Nao ha estrategias razoaveis para tira-la dessa situacao. Aos inves de mendigar recursos para manter uma infra-estutura salutavel, o governo deveria utilizar sua mesa redonda para repensar em seus projetos politicos. Acredito que a maior falha e manter essa politica de desemprego. Tentarei explicar brevemente, um cidadao irlandes, europeu ou nao europeu (desde que tenha estampa 4, status de um semi-cidadao) ao perder o emprego, entra no sistema de fundo desemprego eterno. O governo paga em torno de 200 euros por semana para que esses mantenham no circulo de consumo.
Digamos que isso seja um verdadeiro Estado- Social descabido. Nao acredito que esse procedimento seja louvavel para uma sociedade neo neo capitalista ultra selvagem. Isso nao esta subtendido nenhuma apologia a liberacao solta da economica do eterno ` salve-se quem puder`. Questiono o valor da crise, pois o caos pode favorecer um amadurecimento de estrategias. Mas pelo que vemos, a Irlanda segue um padrao cultural, assim como no Brasil (numa via contraria), de pais de grandes antipodas que atraves de seus sustentaculos mantem seus cidadaos e nao cidadaos.
O lado positivo e que essa lei contem a violencia urbana, claro que aqui existe, ate mesmo no pais lider de seguranca social, pois sempre ha um torto que detesta o sistema. Se recebo quase 200 euros por semana, posso assegurar uma vida tranquila, de aluguel, comida e uns trocados para gastar em roupas a preco de banana na Pennys. Para se ter uma ideia, a qualidade de consumo, depois da Uniao Europeia, e alta, todos tem acesso a relativamente quase tudo, afirmo isso porque o imposto nao anda as alturas como no Brasil.
Enfim, a Irlanda deveria seguir, ou pelo menos , pegar emprestado alguns preceitos de alguns presidentes brasileiros, um deles seria JK e Getulio Vargas (vemos o quanto a Irlanda esta atrasada, tao quanto o Brasil na decada de 50- ao menos de visao futurista, nao faltou para alguns visionarios elitistas brasileiros). Por que nao fazer um pais em 5 anos, pensando daqui aos 50? Por que nao criar e dilatar seu complexo industrial? Aos inves de pagar uma massa de desempregados interminavelmente, inclusive jovens entre 20 e 30 anos que preferem manter o beneficio social, por que nao criar bolsas de estudos ou ate mesmo incentiva a pesquisa e a cultura- que no momento e oprimida pela cultura britanica? Esse sistema de `seguro- desemprego` poderia ser mantido por um tempo determinado, assim como na Espanha- 2 anos, para que esse dinheiro tenha um bom uso social. Caso o contrario, a Irlanda continuara ao relento assim como o Liffey River que apesar de parecer um esgoto ao ceu aberto , e considerado um charme entre as principais avenidas de Dublin. Acredito que a ousadia politca esta valendo mais que a surda seguridade social europeia.
* Caros amigos tortos, peco-lhes desculpas pelo horario da minha postagem, pois so consegui acesso ao blog neste momento, depois de muitas tentativas. Novamente, gostaria que os leitores e os autores me perdoassem pela falta de acentuacao. Infelizmente ainda me encontro impossibilitada de configurar o meu teclado em portugues.
Sinceramente, a Irlanda e um atraso cultural, economico e politico. Nao ha estrategias razoaveis para tira-la dessa situacao. Aos inves de mendigar recursos para manter uma infra-estutura salutavel, o governo deveria utilizar sua mesa redonda para repensar em seus projetos politicos. Acredito que a maior falha e manter essa politica de desemprego. Tentarei explicar brevemente, um cidadao irlandes, europeu ou nao europeu (desde que tenha estampa 4, status de um semi-cidadao) ao perder o emprego, entra no sistema de fundo desemprego eterno. O governo paga em torno de 200 euros por semana para que esses mantenham no circulo de consumo.
Digamos que isso seja um verdadeiro Estado- Social descabido. Nao acredito que esse procedimento seja louvavel para uma sociedade neo neo capitalista ultra selvagem. Isso nao esta subtendido nenhuma apologia a liberacao solta da economica do eterno ` salve-se quem puder`. Questiono o valor da crise, pois o caos pode favorecer um amadurecimento de estrategias. Mas pelo que vemos, a Irlanda segue um padrao cultural, assim como no Brasil (numa via contraria), de pais de grandes antipodas que atraves de seus sustentaculos mantem seus cidadaos e nao cidadaos.
O lado positivo e que essa lei contem a violencia urbana, claro que aqui existe, ate mesmo no pais lider de seguranca social, pois sempre ha um torto que detesta o sistema. Se recebo quase 200 euros por semana, posso assegurar uma vida tranquila, de aluguel, comida e uns trocados para gastar em roupas a preco de banana na Pennys. Para se ter uma ideia, a qualidade de consumo, depois da Uniao Europeia, e alta, todos tem acesso a relativamente quase tudo, afirmo isso porque o imposto nao anda as alturas como no Brasil.
Enfim, a Irlanda deveria seguir, ou pelo menos , pegar emprestado alguns preceitos de alguns presidentes brasileiros, um deles seria JK e Getulio Vargas (vemos o quanto a Irlanda esta atrasada, tao quanto o Brasil na decada de 50- ao menos de visao futurista, nao faltou para alguns visionarios elitistas brasileiros). Por que nao fazer um pais em 5 anos, pensando daqui aos 50? Por que nao criar e dilatar seu complexo industrial? Aos inves de pagar uma massa de desempregados interminavelmente, inclusive jovens entre 20 e 30 anos que preferem manter o beneficio social, por que nao criar bolsas de estudos ou ate mesmo incentiva a pesquisa e a cultura- que no momento e oprimida pela cultura britanica? Esse sistema de `seguro- desemprego` poderia ser mantido por um tempo determinado, assim como na Espanha- 2 anos, para que esse dinheiro tenha um bom uso social. Caso o contrario, a Irlanda continuara ao relento assim como o Liffey River que apesar de parecer um esgoto ao ceu aberto , e considerado um charme entre as principais avenidas de Dublin. Acredito que a ousadia politca esta valendo mais que a surda seguridade social europeia.
* Caros amigos tortos, peco-lhes desculpas pelo horario da minha postagem, pois so consegui acesso ao blog neste momento, depois de muitas tentativas. Novamente, gostaria que os leitores e os autores me perdoassem pela falta de acentuacao. Infelizmente ainda me encontro impossibilitada de configurar o meu teclado em portugues.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
!
Voluntariamente, respeitando o gesto exaurido da razão, parei de pensar e, distraído, filiei-me à horda dos indigentes: aonde uma ideia chega a terra embrutece as seivas do que foi plantado e torna-se estéril como uma puta sob o efeito de anticoncepcionais. Não posso mais mentir: eu sempre odiei ter razão. Nunca atribuí a mim grandes méritos por não ser instintivo como uma cadela no cio; nunca respeitei um homem por sua distinção de inteligência e caráter; nunca reconheci no prócere um pai. Quando fui às multidões, ceei com elas o mesmo rancor e vi-me proscrito ao saborear dias em vão no século das metástases... E de que prole repugnante faço parte? Que útero viscoso me excretou ao mundo? Às vísceras de quem nasci envolto? O céu se acoberta de azul todas as manhãs, lembrando o aveludado travesseiro da infância. Mas o seu tamanho não é beleza: é mistério e desolação emanada de todas as partes.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
DIZ O POVO
Na cidade as pessoas não têm rosto.
Cada uma some diluída no todo.
Assim não se sabe onde mora o povo.
É duro achar socorro.
Cada um na sua, alguém disse.
Parece que o povo não existe,
É estória contada na escola.
Gente tem nome, o povo não.
É bom trabalhar com o povo.
Sem nome, sem rosto, pode-se esculpi-lo nossa imagem e semelhança.
Mas o povo é herança.
É trapaça,
Por vezes ameaça.
O povo tem tradição.
O povo é eleitor.
O nosso?
É um povo que gosta de votar.
Fui pobre hoje sou doutor.
Agora posso me candidatar.
Aqui tem democracia.
O povo sabe. O povo sabe de sua história.
A História do povo é a que o povo conta.
Ele sabe contá-la muito bem.
Todo mundo acredita no povo.
Vi o povo passando.
E com o povo ia sua irmã mais velha.
A velha solteirona chamada miséria.
Para onde o povo ia, ela ia também.
O povo foi votar.
A miséria votou também.
Isso é democracia.
Diz o povo...
Cada uma some diluída no todo.
Assim não se sabe onde mora o povo.
É duro achar socorro.
Cada um na sua, alguém disse.
Parece que o povo não existe,
É estória contada na escola.
Gente tem nome, o povo não.
É bom trabalhar com o povo.
Sem nome, sem rosto, pode-se esculpi-lo nossa imagem e semelhança.
Mas o povo é herança.
É trapaça,
Por vezes ameaça.
O povo tem tradição.
O povo é eleitor.
O nosso?
É um povo que gosta de votar.
Fui pobre hoje sou doutor.
Agora posso me candidatar.
Aqui tem democracia.
O povo sabe. O povo sabe de sua história.
A História do povo é a que o povo conta.
Ele sabe contá-la muito bem.
Todo mundo acredita no povo.
Vi o povo passando.
E com o povo ia sua irmã mais velha.
A velha solteirona chamada miséria.
Para onde o povo ia, ela ia também.
O povo foi votar.
A miséria votou também.
Isso é democracia.
Diz o povo...
segunda-feira, 16 de janeiro de 2012
O valor de nao ter perdao
a culpa me carrega
porque vivo no meio de uma encruzilhada
de ser um Eu fora do meu eu.
o meu super esta aquem do que e dito como supra supremo.
Nao adianta evitar o que parece ser um script naturalizado,
o que na verdade sao meras determinacoes civilizatorias.
Eu te agrido e no dia seguite,
eu te perdoo.
Ah como queria ser cruel e livres das minhas culpas!
porque vivo no meio de uma encruzilhada
de ser um Eu fora do meu eu.
o meu super esta aquem do que e dito como supra supremo.
Nao adianta evitar o que parece ser um script naturalizado,
o que na verdade sao meras determinacoes civilizatorias.
Eu te agrido e no dia seguite,
eu te perdoo.
Ah como queria ser cruel e livres das minhas culpas!
sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
Perdão
Não consegui escrever nada durante a semana. Então resolvi postar uma música gospel que compus na semana passada. Segue abaixo:
http://www.4shared.com/music/1eeLrUwu/perdo.html?
http://www.4shared.com/music/1eeLrUwu/perdo.html?
quarta-feira, 11 de janeiro de 2012
Copias de um corpo
Um corpo em seu estado de mais pura perfeicao, sem simetrias ou contornos regulares.
A perfeicao que nao condiz com nenhum pre requisito biologico, mas essencialmente cultural. Os desajustes sao felinos perante as bonecas nas vitrines.
Quero o perfeito porque ele alimenta o vazio. Gosto do grotesco porque ele compartilha com minhas imperfeicoes que acredito serem absurdas.
*A fotografia acima ilustra uma expressao da artista cubana Ana Mendieta (1948-1985). Uma performance artistica em manifesto aos padroes de beleza da nossa cultura moderna.
segunda-feira, 9 de janeiro de 2012
Aviso
Caros leitores e autores,
Por motivos pessoais nao poderei postar o meu texto hoje e por isso, peco- lhes desculpas. Portanto, postarei o texto desta semana nesta quarta- feira. Abracos a todos.
Por motivos pessoais nao poderei postar o meu texto hoje e por isso, peco- lhes desculpas. Portanto, postarei o texto desta semana nesta quarta- feira. Abracos a todos.
sexta-feira, 6 de janeiro de 2012
Manhã
Desperto de um sono intranquilo: reviro a cabeça sobre a extensão do dia novo. O ornato lépido e seu aparato lúdrico me enfezam. Um bocejo hediondo se arredonda sobre os meus lábios: tenho convulsões de preguiça em cima da cama. Sou michê: 32 dentes enfeitam uma boca prazenteira. Não há poréns: a pelugem púbica se avoluma em torno do meu sexo. Por isso me chamam de homem sóbrio e consensual.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2012
BARATAS
O natal se aproximava. As pessoas estavam enternecidas com o espírito cristão que envolvia a sociedade aracajuana. As campanhas do natal sem fome, e do natal com roupa foram um sucesso. “É muito importante as pessoas participarem da solidariedade”. Asseverou o Bispo de Aracaju Dom Cosmerino de Souza Neto. Aracaju crescia feito uma mocinha. Ora, ela se estendia rumo ao sul, ora ela esticava para cima como que quisesse o seu lugar de cidade grande. Como as demais cidades brasileiras, Aracaju tem suas mazelas. Dizem os historiadores que esse problema é herança da colonização e da forma como foram fundadas as cidades do Brasil.
- Chega mulher! Chega!
- O que foi vó?
- Olha a TV! O sul está se desmanchando. A água encheu tudo!
- Graças a Deus que Aracaju não tem dessas coisas! Disse dona Dilza.
Dona Dilza conhecia todo mundo no “Costa e Silva” – Um bairro de classe média baixa de Aracaju. No Costa e Silva as coisas ainda estavam por acabar; bem diferente das coisas da zona sul. No Costa e Silva, o esgoto estava por acabar, no Costa e Silva as calçadas estavam por acabar, as ruas e os becos estavam por acabar. O que nunca acabava era a fé do povo.
- Graças a Deus que tenho minha casinha no Costa e Silva.
- Num é mulher? Já pensou se a gente morasse na “Terra dura?”
- Nem pensar! Dona Dilza bateu a mão na boca três vezes ao concluir seu comentário.
Na Avenida Osvaldo Aranha, na altura da entrada do Costa e Silva, estava em pé, próximo a uma pequena ponte que dar acesso ao emaranhado de ruelas, um homem mendigo, um João ninguém, totalmente desconhecido. O coitado não parava de dizer: “Vocês vão ver! Roubaram minha mulher e a esconderam aí dentro no Costa e Silva. Pois, vai chover antes do natal e vai todo mundo morrer!”. O homem repetia a mesma coisa todos os dias e noites em que ele fez ponto ali. O homem sumiu. Até hoje não se sabe seu paradeiro.
Maria filha de Judite, muito amiga de Dilza a contou do ocorrido. “Tem um profeta na Osvaldo Aranha. Ele diz que Deus vai castigar o Costa e Silva”. Dilza riu muito e depois disse: “Nunca se quer choveu em dezembro em Aracaju. Isso é coisa de cheira cola. A conversa foi esquecida e a vida continuou para quem podia pagar suas contas.
No Costa e Silva a comunidade, de forma quase que geral, era muito prestativa. Embora Aracaju fosse uma cidade com quase 600 mil habitantes, você ainda comprava na “caderneta”. As pessoas compravam fiado para pagar no final do mês. Todo o bairro era cheio de mercearias e botecos com mesa de sinuca e televisão com karaokê. Nos finais de semana as pessoas gostavam de tomar uma, e comer a maravilhosa “moqueca de sururu” – um prato muito estimado pela população de Aracaju. Parecia uma imensa orquestra. Em cada esquina da cidade, em cada bar, em cada casa havia música e pessoas se divertindo. Um suíço hospedado no Siqueira Campos descreveu Aracaju como uma cidade em festa – uma cidade polifônica.
- O que mais me admira no Brasil é essa alegria. Disse o gringo coçando a barba rala.
- Pois é, meu caro. Nosso povo é muito alegre e tornamos a vida melhor de ser vivida. Disse Osnário, um professor da rede pública.
O gringo desapareceu Brasil a fora. De vez em quando ele manda um e-mail com fotos para os amigos que ele fez na pracinha do Siqueira. Dizem que o cara arranjou uma namorada e está vivendo no Maranhão.
- Dilza! Dilza!
- O que foi mulher? Perguntou a mulher a sua colega pela mureta do quintal. O que separava a casa de Dilza da de sua melhor amiga era uma mureta de cimento e blocos. Logo atrás passava o canal. As duas famílias não suportavam o cheiro de esgoto e os pernilongos durante a noite.
- Sabe quem vai morar na baixada?
- Não!
- A viúva de Raimundo do ferro velho. Estão se mudando agora.
- Graças a Deus mulher! Vamos ter mais uma sofrida da vida para jogar buraco no sábado à noite. Concluiu Dilza.
A nova família do Costa e Silva trazia uma marca triste de sofrimento e dor. Isso fez com que mãe e filha se unissem como se fossem uma corda de duas dobras. Mariana era uma adolescente, filha de Natividade – a mulher de Raimundo do ferro velho.
- Mãe! A casa é boa mãe! Disse Mariana encantada com a nova casa.
- É minha filha. Graças a Deus, e a seu pai que nos deixou um dinheirinho, senão estávamos no meio da rua.
- Da rua não mãe! No meio da Osvaldo Aranha!
- Quem te disse isso?
- Ninguém! Os mendigos vão todos para lá. Por que mãe, por quê?
- Sei lá Mariana. Todos vão para lá, talvez por que tem muita gente, fica mais fácil ter uma esmola.
Enquanto as duas desfaziam os pacotes, e procurando arrumar a nova casa com uma nova decoração, a televisão anunciava as tragédias do sul do país.
“Niterói debaixo d’água: Mais de trinta casas soterradas. Três Pessoas faleceram no local”.
“Nova Friburgo chora seus filhos soterrados: A Defesa Civil estima mais de vinte mortes em Nova Friburgo!”
“Desabamento e morte nos morros de Salvador”.
Natividade e Mariana arrumam seu novo lar. As duas estavam muito alegres com a nova casa. O bairro não era ruim, e a casa não era de se jogar fora. As duas desfizeram os pacotes e a televisão anunciava o fim do mundo no Rio de Janeiro.
- Mãe, por que Deus deixa as pessoas morreram nas enchentes?
- Não sei minha filha! Mas, acredito que Ele sabe o que faz!
Em pouco tempo Natividade estava entrosada com os vizinhos. Mariana brincava com suas novas colegas. A vida seguia seu curso normal.
Em uma manhã de sábado, o dia nasceu cinzento. O tempo não ventava um instante. O povo da cidade sentia que estava em uma panela fervendo. O céu não tinha ar; era só vapor e mormaço naquela manhã do mês de dezembro. As mulheres do Costa e Silva aproveitaram o calor para lavarem roupa mesmo com o céu nublado. As nuvens não adiantavam de nada. A sombra parecia mais uma panela de pressão. Os noticiários avisavam que podia chover naquele dia a qualquer instante. Mas, não choveu aquele sábado, nem no domingo. A massa de água que tornava o céu escuro permanecia parada sobre a menina do Nordeste. Segunda feira chega e com ela a efervescência do comércio aracajuano. As ruas ficam lotadas de carro e de pessoas vindas das mais diversas partes do estado. A massa humana ocupa as ruas em busca do pão de cada dia – esta é Aracaju, e assim deve ser em toda parte do Brasil.
Mariana brinca com suas colegas no quintal de sua casa. A brincadeira estava animada até que Lucinha joga, sem querer, a boneca de Mariana por cima do muro dos fundos. A boneca cai no canal que passava no fundo das casas. Mariana pega uma cadeira para ver sua boneca.
- Mãe, mãe, venha aqui ver!
- O que Mariana?
- Veja! Tanta barata!
- O que menina?
- Baratas!
As baratas estavam mudando de morada. As pessoas foram para cima dos muros para ver as baratas saírem dos bueiros e buracos espalhados pela área. Elas saíam ao mesmo tempo formando um monte que depois se desfazia quando elas corriam em uma só direção – A Osvaldo Aranha. O povo do Costa e Silva nunca tinha visto tanta barata ao mesmo tempo. O estranho é que elas estavam apressadas e determinadas a deixarem o lugar.
- Mãe, até as baratas vão para a Avenida Osvaldo Aranha?
- Num sei Mariana! Estou sem entender! Deve ser o mesmo que aconteceu no Siqueira. As aranhas invadiram as casas próximas a Leste.
- E foi mãe?
- Foi.
- Mãe a Osvaldo Aranha fica lá em cima, não é?
- É.
A Avenida Osvaldo Aranha ficava em um nível mais alto de que a rua das casas onde Natividade e sua filha Mariana moravam. As baratas são sabias e diligentes. Quando elas sentem que algo está errado, elas fazem o que deve ser feito. Mas, isso é pensamento de baratas. Apesar do calor daquela segunda feira as pessoas cumpriram a rotina do dia normalmente. No final do dia foram beber a loirinha. Nesse horário, Aracaju se transforma. Existe um glamour na cidade. As pessoas se encontram com as outras para conversarem nos shoppings, nos bares e botecos espalhados por toda a cidade. É uma coisa tão agradável que as pessoas perdem a noção do tempo.
- Puxa! Minha mulher vai me matar! Disse o PM Freitas.
- Rapaz! Relaxa! Já tá ferrado mesmo! Completou o raciocínio Eduardo, funcionário do IML.
Os dois continuaram a conversa até as dez horas. A noite de Aracaju estava quente. O abafado do dia não havia dado uma trégua. Os rapazes se separaram cada com seu destino. O PM para casa, no bairro Costa e Silva, e Eduardo de volta para o necrotério. Freitas não conhecia sua nova vizinha, dona Natividade. Esta ficou viúva cedo. Vivia muito só, e fazia muito que ela não tinha um homem. Mariana dormia sono profundo quando estoura o transformador da rua. Natividade corre para a porta onde estavam outras pessoas. Entre elas o PM Freitas.
- Meu Deus! Que houve?
- Foi o transformador! Uma voz grossa responde a dona Natividade.
- E o que é isso?
- É aquele objeto pendurado no poste!
- Sei, vejo! Mas, menino como é que isso acontece?
- Deve ter sido o calor. Fez quase quarenta hoje. Parece que o som da palavra hoje fez Natividade se lembrar que deixou Mariana dentro de casa no escuro. Ela corre para dentro de casa, e o soldado Freitas fica em pé defronte ao portão da casa. As pessoas mataram a curiosidade, por isso voltaram para suas casas, e Freitas permanece na rua. Dona Natividade acende algumas velas e sai de casa novamente para fechar o portão. Quando ela se aproxima dele, percebe que havia um homem ali.
- É você? Onde estão as pessoas?
- Já foram. Eu acho que vou também. Um pingo d’água cai na cabeça de Freitas. Ele passa a mão e sorri para Natividade. Esta lhe responde o sorriso. Natividade toma o rumo de dentro de casa; um pingo d’água cai em sua testa. Ela sorri e entra se juntando a sua amada filha.
Freitas ficou com a imagem de Natividade em sua mente. Sua esposa dormia quando o soldado se levanta um pouco ansioso. Ele sentia vontade de voltar à casa da vizinha, nem que fosse para dar uma olhadinha. “Rapaz que coroa atraente!” Sua mente repetia isso o tempo inteiro. Tornou-se uma obsessão. “Rapaz que coroa bonita!” Seu pensamento ganhou força fazendo-o voltar à casa de dona Natividade. Ele bate no portão de ferro com uma pedra pequena. Repete o feito mais uma vez. Depois, novamente e novamente. A cada tentativa a ansiedade da mulher abrir a porta era grande, contudo, sua mulher estava, bem ali, na outra casa. Freitas cobra o juízo e toma a direção de sua casa de ombros caídos. A porta da casa de Natividade geme baixinho. O coração de Freitas estava certo.
O quarto de Mariana ficava na frente da casa. Dona Natividade foi para o quintal onde havia uma cobertura e uma rede cearense. O casal ficou ali, despreocupadamente, até ser despertado pelo o som de um leve chuvisco que caía nas telhas. Mariana acendeu uma vela para procurar sua peça íntima, e se depara com um monte de baratas vivas que saíam determinadas do bueiro do fundo de sua residência. Freitas ficou assustado com tantas baratas ao mesmo tempo e começou a espantá-las. Quanto mais o homem mexia, mais baratas apareciam.
- Mulher chame, amanhã, a defesa civil!
- Eles tiram as baratas? Perguntou a senhora do ferro velho.
- Sim, basta fazer a denúncia. Eles vêm imediatamente.
Os dois conversaram até perto das três. A chuva havia ficado mais forte; Freitas temia que sua mulher acordasse e notasse sua ausência e se retirou. Natividade voltou para seu quarto com uma música em sua mente. Fazia muito tempo que a pobre mulher não sentia a vida tão viva.
- Mãe! Mãe! A casa está cheia de baratas!
- O que foi menina! Fale mais alto! A chuva ficara forte e as duas mal conseguiam se ouvir.
- Mãe! As baratas tomaram a casa toda! Tem um monte de baratas por toda a casa. De fato, a quantidade de baratas havia aumentado consideravelmente. À proporção que a chuva aumentava, mais baratas desesperadas e agitadas apareciam. Mãe e filha se empenham na missão de livrar sua casa das baratas. Com álcool e fósforo nas mãos elas enfrentavam os insetos até que ouviram uma explosão abafada vindo das casas mais altas. A rua era quase uma ladeira que terminava no canal. Logo em seguida outra explosão e agora o som de água. As duas correm para pôr os móveis em locais altos. A reação foi quase instintual. As duas mulheres ficaram com muito medo; nada podiam ouvir das outras casas. Não sabiam o que estava acontecendo. A chuva aumentava ainda mais. E a água dentro de casa também. Muitas baratas boiavam mortas na água suja corrente. Seu cheiro era fétido. O cheiro das baratas pode ficar em seu nariz por muito tempo, mas, o cheiro da água do canal ninguém esquece!
Aracaju estava debaixo de uma bomba d’água. A massa de água decidiu cair de uma só vez. Os córregos da cidade inundaram, a maré aumentou fazendo os canais vomitarem suas águas. Uma enchente sem precedentes na história de Aracaju estava se configurando. Freitas percebe o perigo e pede sua mulher para ir à casa da mãe. Quando o casal decide sair de casa era tarde demais. Ninguém mais podia usar as vias públicas. Postes caídos, fios elétricos vivos, bueiros arrebentados, redemoinhos em toda parte. A cena era aterradora. A água descia em direção as casas à margem do canal que transbordava seu conteúdo letal. A primeira casa caiu, a segunda, a terceira, finalmente a casa de Natividade. As duas ficaram em baixo de um pedaço de laje. Parecia um milagre: “Natividade, eu vou chamar ajuda!” Disse Freitas. Não houve respostas.
- Mãe! Mãe!
- Fique quieta Mariana, em breve vão nos pegar! Tenha fé em Deus!
- Mãe! Não sinto mais as pernas!
- Menina, menina, espere mais um pouco!
A água subiu e cobriu toda a margem do canal. Freitas voltou com os bombeiros, mas, era muito tarde. Morreram Mariana, Natividade, e um mendigo que dormia no fundo das casas beirando o canal. As águas duraram três dias para baixar. Acharam os corpos de mãos dadas, mãe e filha. O mendigo foi levado para o necrotério ao lado das duas. Dizem que seu ventre ao ser aberto revelou-se estar cheio de baratas.
Após a enchente do Costa e Silva nenhuma providência foi tomada. As coisas estão como sempre foram. Os mendigos vão para a Avenida Osvaldo Aranha, e se alguma barata resolve correr para lá. As pessoas olham para as nuvens...
ROOSEVELT VIEIRA LEITE 21/12/11
- Chega mulher! Chega!
- O que foi vó?
- Olha a TV! O sul está se desmanchando. A água encheu tudo!
- Graças a Deus que Aracaju não tem dessas coisas! Disse dona Dilza.
Dona Dilza conhecia todo mundo no “Costa e Silva” – Um bairro de classe média baixa de Aracaju. No Costa e Silva as coisas ainda estavam por acabar; bem diferente das coisas da zona sul. No Costa e Silva, o esgoto estava por acabar, no Costa e Silva as calçadas estavam por acabar, as ruas e os becos estavam por acabar. O que nunca acabava era a fé do povo.
- Graças a Deus que tenho minha casinha no Costa e Silva.
- Num é mulher? Já pensou se a gente morasse na “Terra dura?”
- Nem pensar! Dona Dilza bateu a mão na boca três vezes ao concluir seu comentário.
Na Avenida Osvaldo Aranha, na altura da entrada do Costa e Silva, estava em pé, próximo a uma pequena ponte que dar acesso ao emaranhado de ruelas, um homem mendigo, um João ninguém, totalmente desconhecido. O coitado não parava de dizer: “Vocês vão ver! Roubaram minha mulher e a esconderam aí dentro no Costa e Silva. Pois, vai chover antes do natal e vai todo mundo morrer!”. O homem repetia a mesma coisa todos os dias e noites em que ele fez ponto ali. O homem sumiu. Até hoje não se sabe seu paradeiro.
Maria filha de Judite, muito amiga de Dilza a contou do ocorrido. “Tem um profeta na Osvaldo Aranha. Ele diz que Deus vai castigar o Costa e Silva”. Dilza riu muito e depois disse: “Nunca se quer choveu em dezembro em Aracaju. Isso é coisa de cheira cola. A conversa foi esquecida e a vida continuou para quem podia pagar suas contas.
No Costa e Silva a comunidade, de forma quase que geral, era muito prestativa. Embora Aracaju fosse uma cidade com quase 600 mil habitantes, você ainda comprava na “caderneta”. As pessoas compravam fiado para pagar no final do mês. Todo o bairro era cheio de mercearias e botecos com mesa de sinuca e televisão com karaokê. Nos finais de semana as pessoas gostavam de tomar uma, e comer a maravilhosa “moqueca de sururu” – um prato muito estimado pela população de Aracaju. Parecia uma imensa orquestra. Em cada esquina da cidade, em cada bar, em cada casa havia música e pessoas se divertindo. Um suíço hospedado no Siqueira Campos descreveu Aracaju como uma cidade em festa – uma cidade polifônica.
- O que mais me admira no Brasil é essa alegria. Disse o gringo coçando a barba rala.
- Pois é, meu caro. Nosso povo é muito alegre e tornamos a vida melhor de ser vivida. Disse Osnário, um professor da rede pública.
O gringo desapareceu Brasil a fora. De vez em quando ele manda um e-mail com fotos para os amigos que ele fez na pracinha do Siqueira. Dizem que o cara arranjou uma namorada e está vivendo no Maranhão.
- Dilza! Dilza!
- O que foi mulher? Perguntou a mulher a sua colega pela mureta do quintal. O que separava a casa de Dilza da de sua melhor amiga era uma mureta de cimento e blocos. Logo atrás passava o canal. As duas famílias não suportavam o cheiro de esgoto e os pernilongos durante a noite.
- Sabe quem vai morar na baixada?
- Não!
- A viúva de Raimundo do ferro velho. Estão se mudando agora.
- Graças a Deus mulher! Vamos ter mais uma sofrida da vida para jogar buraco no sábado à noite. Concluiu Dilza.
A nova família do Costa e Silva trazia uma marca triste de sofrimento e dor. Isso fez com que mãe e filha se unissem como se fossem uma corda de duas dobras. Mariana era uma adolescente, filha de Natividade – a mulher de Raimundo do ferro velho.
- Mãe! A casa é boa mãe! Disse Mariana encantada com a nova casa.
- É minha filha. Graças a Deus, e a seu pai que nos deixou um dinheirinho, senão estávamos no meio da rua.
- Da rua não mãe! No meio da Osvaldo Aranha!
- Quem te disse isso?
- Ninguém! Os mendigos vão todos para lá. Por que mãe, por quê?
- Sei lá Mariana. Todos vão para lá, talvez por que tem muita gente, fica mais fácil ter uma esmola.
Enquanto as duas desfaziam os pacotes, e procurando arrumar a nova casa com uma nova decoração, a televisão anunciava as tragédias do sul do país.
“Niterói debaixo d’água: Mais de trinta casas soterradas. Três Pessoas faleceram no local”.
“Nova Friburgo chora seus filhos soterrados: A Defesa Civil estima mais de vinte mortes em Nova Friburgo!”
“Desabamento e morte nos morros de Salvador”.
Natividade e Mariana arrumam seu novo lar. As duas estavam muito alegres com a nova casa. O bairro não era ruim, e a casa não era de se jogar fora. As duas desfizeram os pacotes e a televisão anunciava o fim do mundo no Rio de Janeiro.
- Mãe, por que Deus deixa as pessoas morreram nas enchentes?
- Não sei minha filha! Mas, acredito que Ele sabe o que faz!
Em pouco tempo Natividade estava entrosada com os vizinhos. Mariana brincava com suas novas colegas. A vida seguia seu curso normal.
Em uma manhã de sábado, o dia nasceu cinzento. O tempo não ventava um instante. O povo da cidade sentia que estava em uma panela fervendo. O céu não tinha ar; era só vapor e mormaço naquela manhã do mês de dezembro. As mulheres do Costa e Silva aproveitaram o calor para lavarem roupa mesmo com o céu nublado. As nuvens não adiantavam de nada. A sombra parecia mais uma panela de pressão. Os noticiários avisavam que podia chover naquele dia a qualquer instante. Mas, não choveu aquele sábado, nem no domingo. A massa de água que tornava o céu escuro permanecia parada sobre a menina do Nordeste. Segunda feira chega e com ela a efervescência do comércio aracajuano. As ruas ficam lotadas de carro e de pessoas vindas das mais diversas partes do estado. A massa humana ocupa as ruas em busca do pão de cada dia – esta é Aracaju, e assim deve ser em toda parte do Brasil.
Mariana brinca com suas colegas no quintal de sua casa. A brincadeira estava animada até que Lucinha joga, sem querer, a boneca de Mariana por cima do muro dos fundos. A boneca cai no canal que passava no fundo das casas. Mariana pega uma cadeira para ver sua boneca.
- Mãe, mãe, venha aqui ver!
- O que Mariana?
- Veja! Tanta barata!
- O que menina?
- Baratas!
As baratas estavam mudando de morada. As pessoas foram para cima dos muros para ver as baratas saírem dos bueiros e buracos espalhados pela área. Elas saíam ao mesmo tempo formando um monte que depois se desfazia quando elas corriam em uma só direção – A Osvaldo Aranha. O povo do Costa e Silva nunca tinha visto tanta barata ao mesmo tempo. O estranho é que elas estavam apressadas e determinadas a deixarem o lugar.
- Mãe, até as baratas vão para a Avenida Osvaldo Aranha?
- Num sei Mariana! Estou sem entender! Deve ser o mesmo que aconteceu no Siqueira. As aranhas invadiram as casas próximas a Leste.
- E foi mãe?
- Foi.
- Mãe a Osvaldo Aranha fica lá em cima, não é?
- É.
A Avenida Osvaldo Aranha ficava em um nível mais alto de que a rua das casas onde Natividade e sua filha Mariana moravam. As baratas são sabias e diligentes. Quando elas sentem que algo está errado, elas fazem o que deve ser feito. Mas, isso é pensamento de baratas. Apesar do calor daquela segunda feira as pessoas cumpriram a rotina do dia normalmente. No final do dia foram beber a loirinha. Nesse horário, Aracaju se transforma. Existe um glamour na cidade. As pessoas se encontram com as outras para conversarem nos shoppings, nos bares e botecos espalhados por toda a cidade. É uma coisa tão agradável que as pessoas perdem a noção do tempo.
- Puxa! Minha mulher vai me matar! Disse o PM Freitas.
- Rapaz! Relaxa! Já tá ferrado mesmo! Completou o raciocínio Eduardo, funcionário do IML.
Os dois continuaram a conversa até as dez horas. A noite de Aracaju estava quente. O abafado do dia não havia dado uma trégua. Os rapazes se separaram cada com seu destino. O PM para casa, no bairro Costa e Silva, e Eduardo de volta para o necrotério. Freitas não conhecia sua nova vizinha, dona Natividade. Esta ficou viúva cedo. Vivia muito só, e fazia muito que ela não tinha um homem. Mariana dormia sono profundo quando estoura o transformador da rua. Natividade corre para a porta onde estavam outras pessoas. Entre elas o PM Freitas.
- Meu Deus! Que houve?
- Foi o transformador! Uma voz grossa responde a dona Natividade.
- E o que é isso?
- É aquele objeto pendurado no poste!
- Sei, vejo! Mas, menino como é que isso acontece?
- Deve ter sido o calor. Fez quase quarenta hoje. Parece que o som da palavra hoje fez Natividade se lembrar que deixou Mariana dentro de casa no escuro. Ela corre para dentro de casa, e o soldado Freitas fica em pé defronte ao portão da casa. As pessoas mataram a curiosidade, por isso voltaram para suas casas, e Freitas permanece na rua. Dona Natividade acende algumas velas e sai de casa novamente para fechar o portão. Quando ela se aproxima dele, percebe que havia um homem ali.
- É você? Onde estão as pessoas?
- Já foram. Eu acho que vou também. Um pingo d’água cai na cabeça de Freitas. Ele passa a mão e sorri para Natividade. Esta lhe responde o sorriso. Natividade toma o rumo de dentro de casa; um pingo d’água cai em sua testa. Ela sorri e entra se juntando a sua amada filha.
Freitas ficou com a imagem de Natividade em sua mente. Sua esposa dormia quando o soldado se levanta um pouco ansioso. Ele sentia vontade de voltar à casa da vizinha, nem que fosse para dar uma olhadinha. “Rapaz que coroa atraente!” Sua mente repetia isso o tempo inteiro. Tornou-se uma obsessão. “Rapaz que coroa bonita!” Seu pensamento ganhou força fazendo-o voltar à casa de dona Natividade. Ele bate no portão de ferro com uma pedra pequena. Repete o feito mais uma vez. Depois, novamente e novamente. A cada tentativa a ansiedade da mulher abrir a porta era grande, contudo, sua mulher estava, bem ali, na outra casa. Freitas cobra o juízo e toma a direção de sua casa de ombros caídos. A porta da casa de Natividade geme baixinho. O coração de Freitas estava certo.
O quarto de Mariana ficava na frente da casa. Dona Natividade foi para o quintal onde havia uma cobertura e uma rede cearense. O casal ficou ali, despreocupadamente, até ser despertado pelo o som de um leve chuvisco que caía nas telhas. Mariana acendeu uma vela para procurar sua peça íntima, e se depara com um monte de baratas vivas que saíam determinadas do bueiro do fundo de sua residência. Freitas ficou assustado com tantas baratas ao mesmo tempo e começou a espantá-las. Quanto mais o homem mexia, mais baratas apareciam.
- Mulher chame, amanhã, a defesa civil!
- Eles tiram as baratas? Perguntou a senhora do ferro velho.
- Sim, basta fazer a denúncia. Eles vêm imediatamente.
Os dois conversaram até perto das três. A chuva havia ficado mais forte; Freitas temia que sua mulher acordasse e notasse sua ausência e se retirou. Natividade voltou para seu quarto com uma música em sua mente. Fazia muito tempo que a pobre mulher não sentia a vida tão viva.
- Mãe! Mãe! A casa está cheia de baratas!
- O que foi menina! Fale mais alto! A chuva ficara forte e as duas mal conseguiam se ouvir.
- Mãe! As baratas tomaram a casa toda! Tem um monte de baratas por toda a casa. De fato, a quantidade de baratas havia aumentado consideravelmente. À proporção que a chuva aumentava, mais baratas desesperadas e agitadas apareciam. Mãe e filha se empenham na missão de livrar sua casa das baratas. Com álcool e fósforo nas mãos elas enfrentavam os insetos até que ouviram uma explosão abafada vindo das casas mais altas. A rua era quase uma ladeira que terminava no canal. Logo em seguida outra explosão e agora o som de água. As duas correm para pôr os móveis em locais altos. A reação foi quase instintual. As duas mulheres ficaram com muito medo; nada podiam ouvir das outras casas. Não sabiam o que estava acontecendo. A chuva aumentava ainda mais. E a água dentro de casa também. Muitas baratas boiavam mortas na água suja corrente. Seu cheiro era fétido. O cheiro das baratas pode ficar em seu nariz por muito tempo, mas, o cheiro da água do canal ninguém esquece!
Aracaju estava debaixo de uma bomba d’água. A massa de água decidiu cair de uma só vez. Os córregos da cidade inundaram, a maré aumentou fazendo os canais vomitarem suas águas. Uma enchente sem precedentes na história de Aracaju estava se configurando. Freitas percebe o perigo e pede sua mulher para ir à casa da mãe. Quando o casal decide sair de casa era tarde demais. Ninguém mais podia usar as vias públicas. Postes caídos, fios elétricos vivos, bueiros arrebentados, redemoinhos em toda parte. A cena era aterradora. A água descia em direção as casas à margem do canal que transbordava seu conteúdo letal. A primeira casa caiu, a segunda, a terceira, finalmente a casa de Natividade. As duas ficaram em baixo de um pedaço de laje. Parecia um milagre: “Natividade, eu vou chamar ajuda!” Disse Freitas. Não houve respostas.
- Mãe! Mãe!
- Fique quieta Mariana, em breve vão nos pegar! Tenha fé em Deus!
- Mãe! Não sinto mais as pernas!
- Menina, menina, espere mais um pouco!
A água subiu e cobriu toda a margem do canal. Freitas voltou com os bombeiros, mas, era muito tarde. Morreram Mariana, Natividade, e um mendigo que dormia no fundo das casas beirando o canal. As águas duraram três dias para baixar. Acharam os corpos de mãos dadas, mãe e filha. O mendigo foi levado para o necrotério ao lado das duas. Dizem que seu ventre ao ser aberto revelou-se estar cheio de baratas.
Após a enchente do Costa e Silva nenhuma providência foi tomada. As coisas estão como sempre foram. Os mendigos vão para a Avenida Osvaldo Aranha, e se alguma barata resolve correr para lá. As pessoas olham para as nuvens...
ROOSEVELT VIEIRA LEITE 21/12/11
Avisando
Caros amigos, so voltarei a postar a partir do proximo mes, pois agora estou com dificuldade de compor qualquer coisa. Abraço.
terça-feira, 3 de janeiro de 2012
Mais um ano velho
Um ano vai,
Outro ano vem
e a rotina permanece.
Os ciclos terminam,
assim como os 365 dias,
mas apos esse termino o
comeco nao traz um novo inicio.
O Ano Novo ja nasce velho.
Outro ano vem
e a rotina permanece.
Os ciclos terminam,
assim como os 365 dias,
mas apos esse termino o
comeco nao traz um novo inicio.
O Ano Novo ja nasce velho.
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