Como forma de atingir uma organização e um funcionamento enquanto estrutura, a sociedade cria várias convenções e a linguagem é uma delas. A linguagem tem como finalidade estabelecer a comunicação entre os indivíduos, isto é, fazer com que esses indivíduos possam se relacionar. Essa capacidade dos indivíduos se relacionarem acontece pelo fato da comunicação estabelecer padrões de significados convencionados capazes de gerar entendimento em comum entre eles.
Com isso podemos entender que a linguagem antes de tudo é um sistema de sinais convencionados que tem como finalidade estabelecer a comunicação entre os indivíduos na sociedade. Os sentidos encontrados na linguagem são construídos culturalmente. Os modos de ver, pensar, sentir e agir, ou seja, as formas como os grupos e os indivíduos se representam e são representados, é fruto das cargas de valores, isto é, dos valores de mundo contidos nos discursos produzidos socialmente.
Portanto, não há como vivermos em uma sociedade humana dotada de culturas se não soubermos fazer uso do sistema de funcionamento da língua utilizada por nosso meio social. Porém, é importante notarmos que essa ferramenta que nos possibilita compreender as coisas a nossa volta que é a linguagem, é apenas uma construção social e que nos serve única e exclusivamente como mera intermediária para nos situarmos no mundo. As coisas em si mesmas não têm significação alguma.
Vejamos: nenhum indivíduo nasceu utilizando a linguagem. Na verdade, ao longo de sua vida ele vai vivendo uma série de experiências que vai agregando ao longo dos seus contatos com a realidade. Nos primeiros instantes esse indivíduo balbucia algumas letras, posteriormente começa a articular sílabas a partir dessas letras, mais a frente passa a formar palavras, adiante se encontra capaz de conectar essas palavras a outras formando frases, para por fim, construir discursos mais complexos.
Nossos primeiros contatos com o mundo foram meramente sensoriais. Só depois é que nos adentramos no universo simbólico da linguagem. Antes de sermos essa aparente capacidade de ordenar as coisas ao nosso redor, somos unicamente intraduzíveis. Ao mesmo tempo em que a linguagem busca nomear as coisas, somos incapazes de significá-las enquanto essência já que antes da tradução dela, somos um vácuo carente de qualquer significado codificado a partir dessa linguagem.
Portanto, antes de nos apropriarmos da linguagem, nós éramos meros animais sem qualquer capacidade comunicativa para partilharmos códigos estabelecidos culturalmente e para vivermos em sociedade. Esse lado se refere à nossa condição enquanto natureza. No entanto, para vivermos em sociedade, esse nosso lado aparentemente foi tirado de nós. Porém, como dito anteriormente, ele apenas foi expurgado aparentemente, pois em nossa essência, essa natureza continua a borbulhar.
A sociedade moderna, como forma de manter a convivência social, busca reprovar qualquer manifestação dos nossos instintos. A ampliação dessa proibição se acentua no instante em que a razão proposta pelo ocidente passa a negar qualquer condição que venha a implicar uma trava à finalidade produtiva objetivada pelo sistema vigente. Em meio a uma cultura racional, tudo que venha a se aproximar dos instintos e até mesmo da sensibilidade, da imaginação e da intuição passa a ser excluído.
É devido a essa exclusão do nosso mundo sensorial e sensível que a arte de vanguarda entra em cena. Para essa arte, a cultura racional e produtivista do capitalismo burguês chegou a um nível de exigência no que diz respeito à eficácia e aos resultados objetivos, que a razão humana terminou por se submeter a uma mera funcionalidade, tornando-se pragmática e reduzida meramente a tudo que diz respeito à função das coisas. Os sonhos, a imaginação, a sensação foram considerados inúteis.
Para a arte de vanguarda, faz-se necessário o nosso reencontro com esse mundo que foi retirado de nós. O humano não pode viver escravizado pelas atrocidades racionais pragmáticas e utilitárias. É de grande importância que os humanos rompam as travas que os sufocam e consigam se dá o direito de flutuar, ir além do mero perceptivo e do que simplesmente se considera objetivo e real. O humano não pode se esquecer desse seu lado intraduzível. É necessário também o sentir sem pensar.
A arte de vanguarda acredita que o humano precisa navegar em seu mundo caótico também. Limitar-se a viver na esfera dos sentidos, das convenções, da normatividade, é se sujeitar a uma pobreza de olhar. O humano precisa se afogar nos mares revoltosos da não-razão para se transfigurar de si mesmo, para transbordar seus limites. Sem dialogar com as sensações e as sensibilidades forjadas pela razão instrumental o humano deixa de criar por matar sua possibilidade de imaginar e de sonhar.
Aquela criança dotada de criatividades e de liberdade para extrapolar o limite dos sentidos reais acerca das coisas passa a ser valorizada. Aquela criança sedenta em fantasiar e colorir o mundo e que foi obstruída pela maquina obsessiva de um sistema produtivista preocupado com a racionalidade, com a objetividade, deve ressuscitar no espírito de todos os humanos. Reaprender a sentir o prazer pela descoberta e pelo encanto com o não-acessível é objetivo da arte de vanguarda.
Ao se deparar com uma obra de vanguarda, o leitor tem que se deixar levar pelo esquecimento da norma e de qualquer tipo de verdade imposta. Transitar na arte de vanguarda é deixar de lado qualquer intenção premeditada e qualquer espécie de pressuposto lógico. Naufragar é preciso e flutuar também. Cabe ao humano se deleitar em si mesmo e em tudo aquilo em que ele não se compreende. Reaprender a se transfigurar, a se descontextualizar, a se desestabilizar, a se desestruturar.
O que importa é criar novas verdades estando convicto de que essas verdades assim como se criam, se destroem e se recriam; alcançar um mundo desconhecido e saber se deliciar com esse não-entendido, esse não-visto. É saber se libertar dos padrões que definem certezas e modelos premeditados e criar suas próprias linhas; deixar o fluxo da inconstância criar novos traçados, novos ângulos, novas paisagens. Nada melhor do que sermos donos da nossa própria interpretação e da nossa criação.
Ser livre e autônomo; ser crítico e se dá o direito de perder o controle. Está consciente de que a razão, antes de se reduzir às verdades e esquemas, é tão-somente uma superfície mínima que nos garante apenas uma mínima parcela de lógica em nossa convivência com o outro. Antes dela, somos andantes sem destino, pois a razão cria justamente o nos falta, ou seja, o sentido, o tempo, a lógica, a ordem, as regras. Antes de qualquer coisa somos a sombra de nossas próprias convicções.
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