Decepcionamo-nos com o amor por geralmente retirarmos dele toda a sua relação com a espontaneidade da vida. Carregamos uma triste herança construída pelos valores ocidentais acerca desse sentimento tão desejado pelo humano. Vou explicar: o ocidente traz consigo uma necessidade urgente de tentar pôr tudo em seu devido lugar. É incrível como o ocidente soube e sabe departamentalizar as coisas, organizar o tempo, selecionar os valores, classificar os afetos, padronizar sentimentos.
Essa doença do ocidente tem estado relacionada às concepções que defendemos acerca do amor. Assim como a sociedade ocidental determina modelos para qualquer coisa, nos relacionamentos conjugais transformamos tudo em padrões de etiquetas e de comportamentos. Em outras palavras, toda e qualquer ação em uma relação conjugal que fuja daquilo que é imposto e classificado como correto, rapidamente provoca desentendimentos no cotidiano dos cônjuges.
Isso acontece pelo fato de acreditarmos que as relações podem funcionar a partir de uma previsibilidade, de uma linearidade, de uma ordenação, de uma totalidade. Ou seja, o ocidental crê que a vida e os relacionamentos podem ser controlados e realizados plenamente através dos cronogramas dos seus projetos, acha que pode evitar os caminhos acidentais, que é capaz de nunca se contradizer com suas afirmações e que as experiências podem ser perfeitamente acabadas.
Porém, sinto informar aos adeptos dessa concepção, mas o amor, assim como qualquer coisa inserida nas experiências e vivências humanas, é impotente para atingir essa linearidade, essa previsibilidade, essa ordenação, essa totalidade. A experiência de amar implica em viver as contingências da vida, em saborear o inesperado das ações dos cônjuges envolvidos. Além disso, o amor é amante da contradição, e assim como qualquer sentimento reinante, ele não é perfeito por ser humano.
As relações conjugais não são capazes de predeterminar de forma sempre harmônica e equilibrada as etapas de uma vivência amorosa entre as pessoas. Ora, a experiência conjugal está inserida em meio às imprevisibilidades da vida. As pessoas mudam de opinião, variam de estado de humor, enfim, são circunstanciais. É óbvio que com isso não podemos pensar que a perfeição de um relacionamento amoroso seja plena. O amor salva e se afoga em meio a essa turbulência chamada contradição.
Envolver-se com alguém e afirmar que o amor vai ser eterno, que nunca vai sofrer, é deixar de se reconhecer como humano e deixar de reconhecer o parceiro ou a parceira como humanos. O outro, assim como nós, não está livre em errar, em se equivocar, nem nós estamos imunes a nos confrontarmos com os valores de quem escolhemos para viver uma relação. Somos históricos, e se fazemos história, é por que estamos mudando e revendo nossos próprios valores o tempo inteiro.
Não somos robóticos. Ainda bem! Não podemos achar que, assim como robôs programados, nós estaremos livres dos conflitos que alimentam qualquer relação humana. Somos o nosso próprio susto. Quantas ações achávamos que nunca cometeríamos, e, no entanto cometemos? Óbvio que o amor se faz também de momentos felizes, de prazeres intensos. Porém, somos humanos expostos às crises, aos erros e aos acertos. Se o amor é a chama que provoca desejos, também é a lama...
quarta-feira, 25 de junho de 2014
quinta-feira, 19 de junho de 2014
Arte: uma interpretação em pedaços VI
Uma casa não existe por si mesma. Para se tornar uma casa, foi necessário que se selecionasse os tijolos, colocasse esses tijolos um a um até levantar a casa. Assim como a casa, as coisas que nos rodeiam não existem por elas mesmas. Para que elas pudessem existir, cada um de nós necessitou organizar, selecionar, e justapor nossas idéias até chegarmos a uma opinião e uma afirmação dessas coisas a nossa volta.
O mais encantador nisso tudo é que todos nós podemos ser nossos próprios arquitetos e engenheiros das representações que fazemos das coisas. Cada um opta em fazer uso de seu próprio método para construir qualquer coisa, seja uma idéia, seja um objeto concreto. Não nego que existam técnicas que facilitam e padronizam os percursos na elaboração das coisas, mas querendo ou não, criamos nossos próprios procedimentos.
A interpretação é como esses tijolos que, articulados e justapostos um a um, terminam por dá vida a existência no mundo. Ao interpretar uma obra de arte, por exemplo, todos nós escolhemos os caminhos com os quais nos identificamos, projetando assim, nossas tramas de acordo com a nossa vontade. Uma obra de arte não faria sentido se ela não mexesse com a gente, e ela só mexe por que ela nos toca naquilo que nos interessa.
Vivemos em meio a uma cultura preocupada demasiadamente com a razão, com a verdade, com a objetividade e com a autoridade. O problema é que esses pontos se refletem também na arte e na forma como nós exigimos a interpretação do leitor acerca dela. Ao invés de nos libertamos, nos extrapolarmos em nossa liberdade interpretativa, ficamos aprisionados nos modelos e esquemas da arte.
Colocamos a razão na arte no instante em que exigimos um raciocinar logicamente sobre ela, deixando de lado o aspecto da sensibilidade estética. Buscamos a verdade no momento em que determinamos uma objetividade para ela, ou seja, exigimos do leitor uma interpretação igual ao do autor da obra. Queremos a autoridade quando nos submetemos covardemente a esperar que a nossa interpretação seja a interpretação do artista.
Acredito que existem condições externas imprescindíveis que devemos ter acerca de determinada manifestação artística. No entanto, essas condições dizem respeito apenas ao contexto em que a criação artística foi elaborada para que a gente tenha a noção e a visão crítica das reais situações políticas, sociais, culturais e estéticas dos contextos nos quais o artista estava situado e o reflexo da arte em meio a esse contexto.
Fora disso, eu acho que é do dever de todo artista, permitir aos leitores que expandam seus horizontes e construam sua própria casa. Acredito que não devemos deixar de lado o aspecto subjetivo de cada leitor, pois é nessa subjetividade em exercício que ele passará a criar sentidos para o seu mundo. Conquistando isso, o sujeito não temerá ter sua própria opinião e não ficará dependente da opinião de outro.
Quem insiste que a arte e o humano podem ser vistos como um modelo universal interpretativo, na certa nunca olhou o humano e a arte enquanto subjetividade. É essa subjetividade que deve ser estimulada. Não conheço caso algum de se ter ocorrido uma interpretação consensual acerca de algo. E mais: não estou nem falando da arte apenas; falo também acerca de escritos científicos.
O sujeito inevitavelmente ao se deparar com alguma textualidade, seja ela visual, auditiva, escrita, etc, inevitavelmente tende a construir sua opinião de forma singular do outro leitor. Ao fazermos um debate sobre qualquer coisa, percebemos que cada indivíduo vai trazer um ponto diferenciado acerca do que leu, assim como, cada leitor vai trazer elementos contidos na obra que o outro não conseguiu visualizar.
Os sujeitos são partes inacabadas deles mesmos. Até acredito que possam ser o todo, mas de forma circunstancial, pois o todo de cada um varia de momento para momento. Em cada nova situação o sujeito costura partes contidas nele e forma um novo todo, mas em outras situações, esse todo se desfaz dando lugar a uma nova teia composta de outras partes que termina por formar outro todo e assim sucessivamente.
Não é por acaso que o mesmo indivíduo pode se deparar com a mesma obra de arte e mudar de opinião sobre ela. É isso: temos que entender o sujeito como circunstância e a arte como tudo aquilo que reflete essa circunstância que nos define sem nunca nos definir por completo. O que há de errado nisso? Sinceramente, não vejo nada de nocivo. Ao contrário. Vejo nisso a possibilidade do sujeito lançar seu grito sobre o mundo.
A interpretação, portanto, é um inconstante desmembrar do sujeito, pois o sujeito é esse próprio desmembramento. Querer que o outro entenda o que nós queremos que seja entendido, é no mínimo intolerante e de uma ignorância inominável. Como dito, somos partes em instáveis recomposições incessantes. Não paramos. A arte é justamente esse sempre ir a algum lugar. É um construir desconstruindo e reconstruindo...
O mais encantador nisso tudo é que todos nós podemos ser nossos próprios arquitetos e engenheiros das representações que fazemos das coisas. Cada um opta em fazer uso de seu próprio método para construir qualquer coisa, seja uma idéia, seja um objeto concreto. Não nego que existam técnicas que facilitam e padronizam os percursos na elaboração das coisas, mas querendo ou não, criamos nossos próprios procedimentos.
A interpretação é como esses tijolos que, articulados e justapostos um a um, terminam por dá vida a existência no mundo. Ao interpretar uma obra de arte, por exemplo, todos nós escolhemos os caminhos com os quais nos identificamos, projetando assim, nossas tramas de acordo com a nossa vontade. Uma obra de arte não faria sentido se ela não mexesse com a gente, e ela só mexe por que ela nos toca naquilo que nos interessa.
Vivemos em meio a uma cultura preocupada demasiadamente com a razão, com a verdade, com a objetividade e com a autoridade. O problema é que esses pontos se refletem também na arte e na forma como nós exigimos a interpretação do leitor acerca dela. Ao invés de nos libertamos, nos extrapolarmos em nossa liberdade interpretativa, ficamos aprisionados nos modelos e esquemas da arte.
Colocamos a razão na arte no instante em que exigimos um raciocinar logicamente sobre ela, deixando de lado o aspecto da sensibilidade estética. Buscamos a verdade no momento em que determinamos uma objetividade para ela, ou seja, exigimos do leitor uma interpretação igual ao do autor da obra. Queremos a autoridade quando nos submetemos covardemente a esperar que a nossa interpretação seja a interpretação do artista.
Acredito que existem condições externas imprescindíveis que devemos ter acerca de determinada manifestação artística. No entanto, essas condições dizem respeito apenas ao contexto em que a criação artística foi elaborada para que a gente tenha a noção e a visão crítica das reais situações políticas, sociais, culturais e estéticas dos contextos nos quais o artista estava situado e o reflexo da arte em meio a esse contexto.
Fora disso, eu acho que é do dever de todo artista, permitir aos leitores que expandam seus horizontes e construam sua própria casa. Acredito que não devemos deixar de lado o aspecto subjetivo de cada leitor, pois é nessa subjetividade em exercício que ele passará a criar sentidos para o seu mundo. Conquistando isso, o sujeito não temerá ter sua própria opinião e não ficará dependente da opinião de outro.
Quem insiste que a arte e o humano podem ser vistos como um modelo universal interpretativo, na certa nunca olhou o humano e a arte enquanto subjetividade. É essa subjetividade que deve ser estimulada. Não conheço caso algum de se ter ocorrido uma interpretação consensual acerca de algo. E mais: não estou nem falando da arte apenas; falo também acerca de escritos científicos.
O sujeito inevitavelmente ao se deparar com alguma textualidade, seja ela visual, auditiva, escrita, etc, inevitavelmente tende a construir sua opinião de forma singular do outro leitor. Ao fazermos um debate sobre qualquer coisa, percebemos que cada indivíduo vai trazer um ponto diferenciado acerca do que leu, assim como, cada leitor vai trazer elementos contidos na obra que o outro não conseguiu visualizar.
Os sujeitos são partes inacabadas deles mesmos. Até acredito que possam ser o todo, mas de forma circunstancial, pois o todo de cada um varia de momento para momento. Em cada nova situação o sujeito costura partes contidas nele e forma um novo todo, mas em outras situações, esse todo se desfaz dando lugar a uma nova teia composta de outras partes que termina por formar outro todo e assim sucessivamente.
Não é por acaso que o mesmo indivíduo pode se deparar com a mesma obra de arte e mudar de opinião sobre ela. É isso: temos que entender o sujeito como circunstância e a arte como tudo aquilo que reflete essa circunstância que nos define sem nunca nos definir por completo. O que há de errado nisso? Sinceramente, não vejo nada de nocivo. Ao contrário. Vejo nisso a possibilidade do sujeito lançar seu grito sobre o mundo.
A interpretação, portanto, é um inconstante desmembrar do sujeito, pois o sujeito é esse próprio desmembramento. Querer que o outro entenda o que nós queremos que seja entendido, é no mínimo intolerante e de uma ignorância inominável. Como dito, somos partes em instáveis recomposições incessantes. Não paramos. A arte é justamente esse sempre ir a algum lugar. É um construir desconstruindo e reconstruindo...
terça-feira, 17 de junho de 2014
A ESCOLA DE MANDALA II - O RETORNO
Com a morte de Plínio, a Escola Estadual Freitas de Matos voltou a ficar em paz. No início, o povo reclamou a falta do grande funcionário – ‘o homem que enfrentou a fera’, como diziam os outros funcionários concursados. Em Campos, se você não for concursado, você não é ninguém.
- Oh, dona Cotinha, Linderval que trabalha na Exatoria é concursado?
- Muier, sabe que não sei.
- Pois, tão dizendo que ele num é não!
- Num é o que muier?
- Concursado.
- Oia, dizem que Linderval foi posto lá pelo homem.
- Mas, o homem faz o que quer, ele pode.
- Não senhora, agora todo mundo tem de ser concursado.
- Tem mulher, mas não é assim. Lembra - se de Plínio do Freitas de Matos?
- Sim, me alembro muito bem. Aquele era um depravado, totalmente, fora da bitola. Ele era concursado, adiantou de que?
- Muier, cá entre nós duas. Há o boato que Mandala mandou matar o homem. A cova dele ainda num foi mexida e já passam de quatro anos.
- Olha, Cotinha, me arrepiei toda com essa história, deixa a alma de Plínio em Paz!
No Freitas de Matos tem de tudo. A eterna diretora, Maria Mandala fez uma reunião no final do ano passado para traçar algumas mudanças para o ano letivo vigente. A reunião foi na biblioteca da escola. O Freitas de Matos sempre teve pouco espaço para organizar suas coisas. Por isso, a biblioteca é mais umas dez coisas além de biblioteca. O resultado da reunião foi muito bom para a escola segundo diz o moto taxista Fernando, pai de uma aluna da 3a série. Segundo ele, o staff da escola foi reorganizado assim: A eterna diretora, Maria Mandala, eternamente indicada pelo prefeito, Dr. Aspeguetti; a secretária, dona Salvador, também indicada pelo Dr. Aspeguetti, a coordenadora, dona Tácia, também indicada pelo Dr. Aspeguetti. A coordenadora do turno vespertino, dona Isolda, também indicada pelo Dr. Aspeguetti. Esse era o time de feras da educação local. Todos os funcionários vinham da mais viva geração de alunos do Freitas de Matos, como diz dona Cotinha: “É um orgulho para Campos, os filhos da terra cuidando da educação de seu povo”.
O ano passou rápido. O mundo nunca viu uma coisa dessas, novembro chegou e o povo mal tirou os enfeites da árvore de natal do ano passado. De acordo com o profeta do Candial, seu Venceslau Feitosa, o tempo se encurtou por causa da vinda do Cristo. “Eu vi o Cristo andando em Campos, seu Nonato”. “E como era ele?” “Ele era a cara do finado Plínio, lembra – se dele?” “Quem num lembra?” “Num foi ele quem papou a fera do Freitas de Matos?” “Essa parte aí, eu num sei”. O Cristo de Venceslau de fato existia, mas, não era o messias da Galileia, era o proprietário do jazigo 277 do Cemitério Municipal de Campos. No dia 2 de novembro do ano corrente, Plínio foi encontrado desacordado ao lado do seu sepulcro. Sua barba e cabelos haviam crescido, bem como as unhas das mãos e dos pés. Foi um grande alvoroço em Campos. Contudo, quem não sabe que no sertão as coisas acontecem bem acontecidas? Plínio voltara, ou retornara para viver sua vida interrompida. Parece que o homem tinha mais uma vereda nesses sertões.
Plínio se levantou do sepulcro por volta das seis da tarde. Como era novembro, os dias estavam escurecendo mais tarde. Às 18h00min ainda tinha luz, Plínio saiu da terra santa limpando-se do resto de flores e coroas que haviam sido depositadas em seu túmulo. Plínio sacudiu os ombros e foi pra casa. Sua pele estava suja de terra e seu terno além de sujo todo rasgado. Sua casa na Avenida João Alves estava fechada. Somente dona América zelava do imóvel. A mulher gostava muito de Plínio, contudo, havia falecido no mês de setembro do mesmo ano vítima da dengue. Nenhum parente havia cobrado o imóvel, parecia até que estavam esperando o retorno do funcionário problema. Plínio entrou em casa e foi banhar-se. Em seguida, procura o que comer; a geladeira estava vazia. Plínio olha para o calendário pendurado na parede próxima ao fogão e lê: “2013”. “Como?” Perguntou o homem a si mesmo. O tempo havia passado, e Plínio fora deixado pra trás. Seu emprego no Freitas de Matos certamente poderia ser retomado, pensou ele. “Amanhã, irei ao Freitas de Matos, eu sou concursado, minha vaga deve estar lá”.
O dia 4 de novembro de 2013, Campos amanheceu debaixo de muita chuva. ‘A barra do tempo’ como as pessoas do sertão chamam estava escura como a noite, somente os raios iluminavam a terra do Poeta Tobias Barreto. Plínio fez a barba, vestiu sua melhor calça de tergal, vestiu meias de algodão cor azul, calçou sapatos pretos em perfeita harmonia com a calça e camisa social de listras azuis e brancas. No rosto, óculos escuros que combinavam com seu bigode grande e grosso. Plínio parecia um vendedor ambulante de loção de cânfora.
A Avenida João Alves estava deserta. As pessoas fugiam da tempestade que a qualquer momento podia cair furiosamente sobre o sertão de Campos. A escola estava em plena atividade, pois, mais um ano letivo estava chegando ao fim. O portão trancado como sempre, forçou o tobiense a bater o cadeado. Após alguns rápidos minutos, Maria Mandala aparece no segundo portão. A mulher espreme os olhos para ver quem é, em seguida, caminha na direção do portão principal com a chave na mão.
- Eu tenho a impressão que eu te conheço. O que é mesmo?
- Eu sou Plínio, voltei para meu posto. Você num se lembra não?
- De Plínio, sim. Mas, de sua pessoa não.
- Como assim? Eu sou Plínio.
- Amigo, o Plínio que trabalhava aqui, que, aliás, era um funcionário concursado nota mil, é falecido há quatro anos.
- Maria, deixa de história, eu sou Plínio.
- Lamento moço, mas, sua pessoa vai ter de provar que está vivo. Veja, sua pessoa parece com o finado, no entanto, sua pessoa usa bigode, e Plínio tinha a cara limpa. Quando Maria Mandala se referiu á aparência de Plínio, seu rosto ficou rosado.
Plínio retorna a sua casa onde passa pouco tempo. Ele queria andar pela cidade de Campos. Tudo estava quase do mesmo jeito. Poucas pessoas haviam mudado de vida. As que tinham mais alguma coisa eram aqueles protegidos pelo Dr. Aspeguetti. Aspeguetti, embora, corrupto, ajudou a muitos amigos se fazerem na vida. Quase defronte ao restaurante Trindade, no antigo posto de ‘BAL’, Plínio merendava coxinha com caldo de cana. Seus pensamentos queriam se organizar, mas, ele não conseguia. No dia de sua morte ele tinha voltado da escola. Fazia alguns dias que ele sentia um amargo na boca e um embrulho no abdômen. Assim ele ficou por quase cinco dias até que decidiu ir para a Casa de Caridade. Somente no hospital foi que ele viu que estava morrendo por envenenamento. A questão é: “Quem o envenenou?” Essa pergunta passou a habitar a mente do homem.
O Freitas de Matos, logo, ficou apavorado com a história que sua diretora Maria Mandala lhe contara: “Tem um fulano se fazendo passar pelo finado Plínio para pegar um emprego concursado”. “Mas, Mandala, num se preocupe não, porque o dito cujo terá que provar cientificamente quem é”. “Olha, Isolda, eu adorei essa parte ‘cientificamente’”. A conversa fluía, mas, o dever era mais urgente. “Pessoal, vamos fazer um mutirão para pormos as cadernetas em dia”. “Mandala, acredito, que isso pode se configurar desvio de função”. Disse um funcionário de serviços gerais que usava brinco na orelha esquerda e óculos escuros tipo Steve Wonder. “Olha, é difícil lidar com gente!” Exclamou Maria Mandala. A mulher foi para sua sala e segundo lar. A conversa sobre a identidade do novo funcionário durou o dia todo. Todo mundo queria conhece-lo, mas, ninguém ousava ir ao cemitério para ver o que houve mesmo. Contudo, o destino não poupa ninguém. O coveiro do Cemitério Municipal tinha uma filha que estudava no Freitas de Matos. Isso o forçou a ir lá naquela manhã.
- Bom dia, eu sou o pai da pequena Edineia.
- Ah, eu queria mesmo falar com sua pessoa. Respondeu Maria Mandala com voz forte.
- O que houve senhora? Edineia fez algo errado?
- Não! Vocês é que estão fazendo com ela!
- Como assim? Perguntou o coitado do campo da morte. “Nós não fazemos nada de errado com nossa filha não senhora!” O homem estava com as maçãs vermelhas e os olhos arregalados. Sua mão tremia ante as duas forças que lutavam contra ele aquele momento. A primeira tinha natureza etílica, e a segunda vinha da ousadia de Maria Mandala. A mulher, na verdade, não deixava escapar nada.
- Sua filha, este ano inteiro, tem chegado atrasada.
- Nós acordamos cedo. Minha mulher trabalha na fábrica, e eu tenho o cemitério.
- Ah, então dê um jeito para cumprir o regulamento da escola senão não vou renovar matricula dela, e esse ano ela começa na última semana de dezembro.
- Mulher pergunte a ele sobre o jazigo 277. Sugeriu dona Salvador Hortelina do Amaral, aquela que desconfia de todos e não aceita críticas. O pobre Aldezinho ficou apavorado com a pergunta feita à sua pessoa. Antes de dizer qualquer coisa, o homem gaguejou muito, até que de sua boca alguém escutou algo coerente: “Eu limpava o canteiro do Jazigo de dona Aurea quando levantei a cabeça e vi aquela mão saindo de dentro da cova”. “Eu corri e me escondi atrás da imagem de São Gabriel”.
- Mas, como foi rapaz?
- Sim, senhora, o defunto saiu inteirinho da cova e era seu Plínio. No ato da ressurreição, a jega de seu Olegário, lembra-se de Olegário?
- Sim, senhor. Responderam em coro as duas especialistas em educação.
- Pois, seu Plínio se levantou, se sacudiu todo e enquanto isso a tal jega pinotava pelos quatro cantos da terra santa.
- Oxente, e você num teve medo não?
- Num fiquei o que, homem? Até hoje a mulher num viu mais jeito pra minhas calças. Mandala e sua amiga estavam de olhos arregalados.
- Salvador, mulher, o que há de ser do Freitas de Matos? Esse homem tem parte com o cão!
- Mulher, se aquiete, pois, num há impossível para o nosso bom Deus. Além do mais, é sabido que Ele dá o frio conforme o cobertor.
As autoridades de Campos foram investigar o ocorrido e comprovaram que a cova onde Plínio fora sepultado tinha resíduo de um produto químico não conhecido pela química atual. Seu Rivas, investigador de carreira, ficou muito intrigado com o fato.
- É muito suspeito. Uma pessoa ressuscitar por foça química. Geralmente, é Deus ou Nossa Senhora que faz isso.
- É seu Rivas, mas, o sertão é cheio de mistérios. Disse Francisco, um dançador de Funk sertanejo.
- E agora, o que será dele, para todos os efeitos, ele encontra-se morto.
- Oxente, mas o homem num tá aí, respirando e andando na rua?
- No estado de direito, seu funkeiro, as coisas não são tão fáceis. A Plínio cabe o ônus da prova de que está vivo, afinal, ele é portador de uma certidão de óbito.
Foi essa a desculpa que a escola Freitas de Matos apresentou para não readmitir o antigo funcionário. Plínio, então, procura seus direitos contratando o advogado do povo, o Dr. Peixoto, ou, Peixotão como os meninos do Aranhas futebol club costumava chama-lo. Peixotão adorava ajudar aos moços nos dias de campeonato.
- Mas, doutor Peixoto que lei é essa? Então, quer dizer que mesmo vivo, com dezenas de testemunhas de minha condição de vivo, para o estado eu preciso resolver a papelada. E o que é que eu vou fazer? Peixoto tira um cigarro de dentro da carteira que estava sobre seu birô, acende-o, gagueja um pouco e traz a mão trêmula até sua boca. O ar letal lhe enche os pulmões enquanto a brasa do cigarro ficava mais viva. Peixoto parecia assustado com o morto-vivo.
- Sabe, Plínio, o estado é burocrático. Já pensou uma sociedade sem burocracia?
- Como assim?
- A burocracia é uma indústria rentável. Se retirássemos do mercado os soldos pagos pela burocracia a economia quebrava. Ademais, sem o documento escrito e juramentado, nada feito. Ninguém vai crer na palavra de ninguém.
- É, mas, no meu caso eu voltei, qual é a culpa que eu tenho?
- Nenhuma, então, espere os processos legais para reaver seu cargo. Traga-me sua certidão de óbito, que vou providenciar um encontro seu com o Dr. Afonso Santos. Afonso era o juiz da comarca de Campos. Plínio se retira da presença de seu advogado e o deixa ao telefone. Peixoto conversa com Maria Mandala.
- Peixoto, meu filho, hoje ao conversar com dona Florinda, lembra-se de Florinda, ela foi sua professora na terceira série?
- Sim, lembro-me muito bem, Mandala. Em que posso ajuda-la?
- Meu filho, estamos organizando as fichas dos ex-alunos. Queremos em dezembro agora homenagear alguns que se destacaram e você é o nosso escolhido para receber o prêmio excelência da Escola Freitas de Matos.
- Mas, professora, eu fui um péssimo aluno. Por quê?
- O que conta agora é que você é um grande advogado. Sim, Plínio esteve aí?
- Os assuntos com meus clientes são todos confidenciais.
- Meu filho, esse homem é um bandido, um tarado sexual. Ajude-nos a mantê-lo fora da escola. Mandala estava mesmo decidida a prejudicar Plínio mais uma vez.
Apesar dos clamores de Mandala, o advogado preferido dos filhos de Campos ajudou o finado ressurreto Plínio. A escola não pode fazer nada, Plínio estava de volta à suas funções. Contudo, se antes as pessoas o evitava, agora, muito mais, pois, a suspeita do mal estava sobre ele. Para todos os efeitos, Plínio vivia no Freitas de Matos como se não existisse. As pessoas o ignoravam, e faziam questão de mostrar-lhe o desprezo. Tudo porque Mandala não gostava dele. “Mamãe, reze por mim, agora, terei de conviver com aquele maníaco”. Maria era muito apegada a sua mãe. Na verdade, o povo comentava que Maria era a mãe mais nova. “Mandala faz tudo que a mãe quer”.
Plínio foi para sua sala que também era depósito, e em certas ocasiões, biblioteca. Entre, livros velhos e novos, tralhas e freezers velhos, Plínio retoma sua vida. Ninguém, nenhum funcionário ousava lhe dirigir a palavra. Inevitavelmente, o velho Plínio era um execrado da comunidade escolar. Mandala estava muito feliz em saber que seus subalternos a obedecia prontamente. Todavia, algo muito curioso acontecia nos horários de trabalho do funcionário defunto. Um pé de mandacaru nasceu em sua sala. A cactácea rompeu o cimento do piso e rumou para cima heliotropicamente: “Meu Deus do céu, um pé de mandacaru na sala do homem?” “Como?” Esse milagre da natureza chamou a atenção de todos, contudo, o medo do desconhecido provocou maior evitamento. Agora, Plínio era um homem com a arte do demônio.
Quanto mais Mandala cortava a planta, ela surpreendia a todos, no outro dia, ele estava verde e forte. Mesmo que a arrancasse do chão, no outro dia, ela se erguia e tornava ao mundo dos homens. Chamaram, então, Frei Anacleto. “Mulher creio muito na reza de Anacleto”. “Por que comadre?” “Anacleto é um homem tão santo que sua voz é bem fininha”. “Ah, sim. E num é mesmo mulher; ele só anda com os meninos da paróquia”. A reza do Frei de nada serviu. Mandala decide fazer outro piso. O prefeito Aspeguetti providenciou de imediato o material. Seu lema sempre foi: “Aspeguetti, a educação em primeiro lugar”. No entanto, em sete dias o mandacaru insistente estava forte e firme. Plínio decide analisar o ser vivo. Segundo sua apreciação se tratava de uma cactácea plenamente adaptada à vida semiárida. Todavia, ele retornou com uma forma fálica, na verdade, depois que a diretora mandou arrancar a planta; ela ganhou a forma de um pênis bem crescido. Era um falo de mais de metro. Com o tempo, as moças, as mulheres e os efeminados foram ver o mandacaru pênis. O professor de biologia do ensino médio tinha uma teoria: “Os pensamentos coletivos provocaram a anomalia”. O caro docente era da corrente junguiana. Nada contra a planta lograva sucesso, da mesma forma era com Plínio. Fizeram de tudo para implica-lo em alguma coisa. Plínio e o mandacaru, pela força das circunstancias, se tornaram amigos. Foi num sábado de sol muito quente que tudo começou. Plínio fora designado para trabalhar num sábado letivo. Quando os mestres se foram, Plínio permaneceu até chegar o outro staff. Entre meio dia e uma hora da tarde, Plínio escuta um assobio vindo da planta sertaneja. Ele, a princípio pensou ser uma ilusão auditiva, mas, depois, na terceira vez, a planta moveu-se.
- Ei moço, dá pra dá uma coçadinha aqui.
- Eu? Rapaz num dá não.
- Por que?
- Rapaz, você parece...
- O que moço?
- Um..., o órgão dos homens.
- E dai? Qual é o problema em ser fálico nesse mundo?
- O povo num gosta não.
- Bem, eu vejo que as mulheres adoram minha aparência.
- Mas, Mandala, mandou corta-lo inúmeras vezes.
- Você se refere a afrodescendente de pele branca?
- Sim, amigo.
- Às vezes queremos nos livrar do que nos seduz.
- Ah, sei. A conversa entre os amigos tornou-se hábito. Agora Plínio tinha um amigo de verdade nos sertões de Campos.
- Psiu!
- Sim?
- Plínio, muito cuidado com a fera, o desejo também pode ser ódio e o ódio desejo.
Mandala não desistia do que queria. Sempre firme a seu credo e a sua fé passou a provocar o tarado do Freitas de Matos. Algumas pequenas que faziam vida foram arrebanhadas para comprometerem a vida de Plínio: “Eu sei que ele num suportará umas pernas trabalhadas”. As meninas passaram a frequentar a sala de Plínio no horário de trabalho e câmeras ocultas faziam o serviço sujo, mas, nada foi flagrado, a ficha de Plínio continuava limpa; as meninas gostaram muito dele e do respeito que ele tinha por elas.
- O danado é sem vergonha, agora, faz o papel de homem de bem.
- Calma, calma, Mandala. É como diz o ditado: “Um dia atrás do outro e a noite no meio”. Mas, cedo ou mais tarde, ele revelará seu íntimo. Disse a pedagoga Márcia que fez o curso por correspondência e com a ajuda da comunidade. Mandala passou a provocar os nervos de Plínio. Quando a mesma chegava a sua sala, ela abria as gavetas com violência. Muitas foram as vezes que as professoras deixaram suas turmas para ver o que acontecera no depósito da escola. Com o tempo o povo se acostumou, quando se ouvia uma reclamação ou zoada de pancadas raivosas nos móveis, todos sabiam que era a guerreira do Freitas de Matos. “Eita, que Mandala está que tá”. Pensou seu Rodrigo, um velho funcionário, que trabalhou até os oitenta anos para se aposentar com o salário mínimo menos o desconto de R$ 270,00 do sindicato.
A vida de Plínio no Freitas de Matos não lhe dava vontade de permanecer lá. Mas, o velho funcionário da educação sergipana não tinha outra coisa pra fazer. Certo dia, conversando com seu amigo mandacaru, no horário de troca de turno, ele descobre algo que lhe intrigou a mente por muito tempo.
- Eu não queria fazer intriga, mas, foi Mandala que matou você.
- E como ele fez isso?
- Foi a comida envenenada. Ela te serviu a comida e você nem desconfiou.
- Como você sabe disso?
- Simples, as cactáceas observam a tudo no sertão.
- E por quê?
- Você é tudo que ela abomina.
- Rapaz, mas, que sorte a minha.
- Em Campos, destruir o próximo é máxima social.
- Mas, por quê?
- No sertão, quando alguém escolhe sua vereda deve se lembrar de que as coisas não mudam devido à relação promíscua das mentalidades. A mentalidade local não aceita o novo, o diferente, e você é diferente. No sertão, os homens estão a serviço da moral, e esta é ferramenta de amansamento do gado local.
- Seu mandaca, eu posso chamá-lo assim?
- Pois, não.
- Como a moral se torna uma ferramenta? O mandacaru pediu um momento para se coçar, e depois, retoma sua fala:
- Por meio dos paradigmas morais, a classe dominante, assim como o clero, pode estabelecer uma relação meritória com a realidade. Os homens de bem, são os que cumprem as regras consagradas, sendo que essas regras, na sua grande maioria, nada de ético tem, são apenas costumes locais, inventados, e forjados para tornar a vida das pessoas ainda pior. O seu boné é abominável em Campos. Para Mandala, usar boné é coisa de bandido. Seu cachimbo é um escândalo, pois, em Campos, cachimbo é coisa de macumbeiro, e macumbeiro em Campos é coisa do demo. Seus costumes, como tomar banho de rio com essa idade é, também, uma afronta à sociedade local, pois, o lugar de se tomar banho em Campos é o banheiro, ou o clube social.
- Bem, seu mandaca, então, eu estou mal em Campos.
- Não senhor, do mesmo jeito que eles execram o novo, eles amam ao mesmo. A relação é ambígua.
- Eu não entendo, seu mandacaru.
A conversa estava boa, entretanto, Plínio precisava deixar a escola para fazer algumas compras. Ao longo de seu trajeto, nenhum ser humano se aproximou do homem. Nenhuma conversa, apenas, algumas palavras com o doutor Peixoto defronte ao mercadinho local.
- Rapaz por que você num sai do sertão?
- Eu vim pra cá novo, agora é tarde, eu amo essas terras.
- Mas, o sertão não ama você. Estão fazendo um abaixo assinado para te por pra fora do Freitas de Matos.
- Mas, como doutor?
- Sim, eles já têm cem assinaturas e vão enviar para o secretário na capital.
- Mas, o que foi que eu fiz?
- Não precisa fazer. O advogado do sertão se despede de Plínio desejando-lhe paz.
O ano letivo comporta muitos sábados letivos. Dizem que o programa do governo é pôr algo redondo num buraco quadrado, pois, com os feriados, e imprensados ao longo do ano é impossível cumprir a carga horária. Aquele seria um sábado letivo cheio de novidades para Plínio. Mandala o recomendou que ficasse na escola até a chegada dos funcionários da tarde. Plínio tentou negociar com a mulher, mas, a mesma foi austera com o moço: “O expediente só termina às treze horas”. “Mas, é um sábado”. “É treze horas e pronto”.
Os professores terminaram suas atividades por volta das dez. O portão principal da escola foi fechado às dez e quinze. Plínio aguarda terminar seu turno no depósito como era costume há muito tempo. Próximo das onze horas, o seu Mandaca reclama ao seu amigo Plínio que estava sentido umas coceiras estranhas em seus espinhos e que alguns deles estavam muito desidratados. Plínio explica-o que seus conhecimentos de botânica eram muito escassos. O mandacaru diz que compreende, mas, isso não aliava seu mal estar. Às onze e sete minutos, Plínio percebe que a planta havia amarelado. O mandacaru, amigo de tanto tempo, havia falecido misteriosamente. Plínio chega perto da planta e percebe que havia sangue saindo de sua casca, a cactácea, em vez de seiva, tinha sangue.
A morte de seu mandaca preocupava a mente de Plínio aquele fim de expediente. O silêncio na escola era absoluto. O vento do sertão, de vez em quando, soprava e assobiava um som sinistro. Era a morte que havia visitado o depósito do Freitas de Matos mais uma vez. Um som de cadeado bem suave é ouvido por Plínio. “Quem será?” “Deve ser alguém da escola”. “Pois, se não fosse teria chamado”. O portão interno range. Plínio se levanta para verificar. A ninguém viu, exceto, os pardais a comer restos de merenda escolar. “Mas, que?” Ao retornar para sua sala, Plínio encontra a guerreira do Freitas de Matos.
- Então, você tem parte com o satanás!
- Como Mandala?
- Você precisava ouvir umas verdades. Eu não suporto você. Seu depravado! Mandala ao dizer depravado corou o rosto.
- Mandala eu não sei o porquê que sua pessoa me odeia tanto.
- Se olhe no espelho coisa nojenta! Plínio se aproximou da eterna diretora de sua escola. Ao fazer isso, a respiração da mulher ficou ofegante. Os dois frente a frente a quase quarenta centímetros de distância fez Mandala baixar a voz.
- Mandala nunca eu te entendi. Nunca encontrei uma explicação para teu ódio por mim. O que eu te fiz? Mandala tenta se recompor e responde ao moço.
- Não é nada pessoal. Apenas defendo a comunidade.
- Mas, não sou bandido, ou coisa assim. Os olhos de Plínio estavam cheios de lágrimas. As gotas escorriam pela face. Mandala nunca havia visto um homem chorando, aquela era a primeira vez. Sem consciência do que fazia, Mandala estende a mão e toca a face de Plínio. Seus dedos se molham de água e sal. Mandala encontra os olhos de seu adversário finalmente. Sua respiração volta a ficar ofegante, sua pele recebe uma descarga elétrica vindo de seu encéfalo que segregara substancias progesterônicas. Mandala sentia, novamente, o mesmo calor de quatro anos atrás. “Nós já vivemos isso”. Disse Plínio. “E depois, eu morri”. Continuou Plínio. Mandala permanecia em silêncio, contudo, suas mãos falavam muito aquele final de manhã. Mandala tira a roupa de Plínio como se estivesse em um transe agudo, seus olhos não perdiam o foco – os olhos de seu adversário. O funcionário concursado Plínio permanecia imóvel. A mulher lhe beija o peito repetida vezes, passa-lhe a mão pelo corpo suado que também se aquecia com o toque da senhora. Os dois estavam sós, a escola agora nada significava, o que movia a mulher era uma força interna muito maior que seu bom senso. A mesa do depósito biblioteca foi rapidamente adaptada para cama, o casal gemia sobre ela, o barulho chamou a atenção das aves que logo começaram a cantar e a celebrar o maior sentido de vida. Beijos são trocados, alternados com palavras de carinho, uma troca constante de afeto acorria sem planejamento. O casal repetiu a mesma coisa até suas forças não suportarem. O portão bate novamente. Plínio sai para ver quem é. Não era ninguém, ele retorna a biblioteca e ela estava vazia. “Pra onde foi Mandala?” Pensou o homem. De repente, Plínio sente uma pancada na cabeça, seu corpo cai sobre o chão frio da escola Freitas de Matos. Seus olhos veem o brilho do aço da lâmina que lhe corta o pênis. Seu coração lentamente para.
- Plínio! O amigo mandacaru o aguardava do outro lado.
- Onde estou, onde está Mandala?
- Ela se safou dessa de novo.
- Como?
- Ela te matou. Não te lembras?
- Não.
Mais uma vez enterraram Plínio. Ninguém de sua família reclamou o corpo. Plínio foi parar no Campo Santo da mesma forma como da outra vez. A polícia investigou o caso. O sangue encontrado no mandacaru era o mesmo de Plínio. Uma coisa intrigou muito a perícia policial: “Como o sangue do funcionário concursado foi parar no interior da cactácea e quem levou o pênis da vítima”. A escola Freitas de Matos estava em Paz novamente.
Arte de vanguarda e o reencontro com um mundo perdido
Como forma de atingir uma organização e um funcionamento enquanto estrutura, a sociedade cria várias convenções e a linguagem é uma delas. A linguagem tem como finalidade estabelecer a comunicação entre os indivíduos, isto é, fazer com que esses indivíduos possam se relacionar. Essa capacidade dos indivíduos se relacionarem acontece pelo fato da comunicação estabelecer padrões de significados convencionados capazes de gerar entendimento em comum entre eles.
Com isso podemos entender que a linguagem antes de tudo é um sistema de sinais convencionados que tem como finalidade estabelecer a comunicação entre os indivíduos na sociedade. Os sentidos encontrados na linguagem são construídos culturalmente. Os modos de ver, pensar, sentir e agir, ou seja, as formas como os grupos e os indivíduos se representam e são representados, é fruto das cargas de valores, isto é, dos valores de mundo contidos nos discursos produzidos socialmente.
Portanto, não há como vivermos em uma sociedade humana dotada de culturas se não soubermos fazer uso do sistema de funcionamento da língua utilizada por nosso meio social. Porém, é importante notarmos que essa ferramenta que nos possibilita compreender as coisas a nossa volta que é a linguagem, é apenas uma construção social e que nos serve única e exclusivamente como mera intermediária para nos situarmos no mundo. As coisas em si mesmas não têm significação alguma.
Vejamos: nenhum indivíduo nasceu utilizando a linguagem. Na verdade, ao longo de sua vida ele vai vivendo uma série de experiências que vai agregando ao longo dos seus contatos com a realidade. Nos primeiros instantes esse indivíduo balbucia algumas letras, posteriormente começa a articular sílabas a partir dessas letras, mais a frente passa a formar palavras, adiante se encontra capaz de conectar essas palavras a outras formando frases, para por fim, construir discursos mais complexos.
Nossos primeiros contatos com o mundo foram meramente sensoriais. Só depois é que nos adentramos no universo simbólico da linguagem. Antes de sermos essa aparente capacidade de ordenar as coisas ao nosso redor, somos unicamente intraduzíveis. Ao mesmo tempo em que a linguagem busca nomear as coisas, somos incapazes de significá-las enquanto essência já que antes da tradução dela, somos um vácuo carente de qualquer significado codificado a partir dessa linguagem.
Portanto, antes de nos apropriarmos da linguagem, nós éramos meros animais sem qualquer capacidade comunicativa para partilharmos códigos estabelecidos culturalmente e para vivermos em sociedade. Esse lado se refere à nossa condição enquanto natureza. No entanto, para vivermos em sociedade, esse nosso lado aparentemente foi tirado de nós. Porém, como dito anteriormente, ele apenas foi expurgado aparentemente, pois em nossa essência, essa natureza continua a borbulhar.
A sociedade moderna, como forma de manter a convivência social, busca reprovar qualquer manifestação dos nossos instintos. A ampliação dessa proibição se acentua no instante em que a razão proposta pelo ocidente passa a negar qualquer condição que venha a implicar uma trava à finalidade produtiva objetivada pelo sistema vigente. Em meio a uma cultura racional, tudo que venha a se aproximar dos instintos e até mesmo da sensibilidade, da imaginação e da intuição passa a ser excluído.
É devido a essa exclusão do nosso mundo sensorial e sensível que a arte de vanguarda entra em cena. Para essa arte, a cultura racional e produtivista do capitalismo burguês chegou a um nível de exigência no que diz respeito à eficácia e aos resultados objetivos, que a razão humana terminou por se submeter a uma mera funcionalidade, tornando-se pragmática e reduzida meramente a tudo que diz respeito à função das coisas. Os sonhos, a imaginação, a sensação foram considerados inúteis.
Para a arte de vanguarda, faz-se necessário o nosso reencontro com esse mundo que foi retirado de nós. O humano não pode viver escravizado pelas atrocidades racionais pragmáticas e utilitárias. É de grande importância que os humanos rompam as travas que os sufocam e consigam se dá o direito de flutuar, ir além do mero perceptivo e do que simplesmente se considera objetivo e real. O humano não pode se esquecer desse seu lado intraduzível. É necessário também o sentir sem pensar.
A arte de vanguarda acredita que o humano precisa navegar em seu mundo caótico também. Limitar-se a viver na esfera dos sentidos, das convenções, da normatividade, é se sujeitar a uma pobreza de olhar. O humano precisa se afogar nos mares revoltosos da não-razão para se transfigurar de si mesmo, para transbordar seus limites. Sem dialogar com as sensações e as sensibilidades forjadas pela razão instrumental o humano deixa de criar por matar sua possibilidade de imaginar e de sonhar.
Aquela criança dotada de criatividades e de liberdade para extrapolar o limite dos sentidos reais acerca das coisas passa a ser valorizada. Aquela criança sedenta em fantasiar e colorir o mundo e que foi obstruída pela maquina obsessiva de um sistema produtivista preocupado com a racionalidade, com a objetividade, deve ressuscitar no espírito de todos os humanos. Reaprender a sentir o prazer pela descoberta e pelo encanto com o não-acessível é objetivo da arte de vanguarda.
Ao se deparar com uma obra de vanguarda, o leitor tem que se deixar levar pelo esquecimento da norma e de qualquer tipo de verdade imposta. Transitar na arte de vanguarda é deixar de lado qualquer intenção premeditada e qualquer espécie de pressuposto lógico. Naufragar é preciso e flutuar também. Cabe ao humano se deleitar em si mesmo e em tudo aquilo em que ele não se compreende. Reaprender a se transfigurar, a se descontextualizar, a se desestabilizar, a se desestruturar.
O que importa é criar novas verdades estando convicto de que essas verdades assim como se criam, se destroem e se recriam; alcançar um mundo desconhecido e saber se deliciar com esse não-entendido, esse não-visto. É saber se libertar dos padrões que definem certezas e modelos premeditados e criar suas próprias linhas; deixar o fluxo da inconstância criar novos traçados, novos ângulos, novas paisagens. Nada melhor do que sermos donos da nossa própria interpretação e da nossa criação.
Ser livre e autônomo; ser crítico e se dá o direito de perder o controle. Está consciente de que a razão, antes de se reduzir às verdades e esquemas, é tão-somente uma superfície mínima que nos garante apenas uma mínima parcela de lógica em nossa convivência com o outro. Antes dela, somos andantes sem destino, pois a razão cria justamente o nos falta, ou seja, o sentido, o tempo, a lógica, a ordem, as regras. Antes de qualquer coisa somos a sombra de nossas próprias convicções.
Com isso podemos entender que a linguagem antes de tudo é um sistema de sinais convencionados que tem como finalidade estabelecer a comunicação entre os indivíduos na sociedade. Os sentidos encontrados na linguagem são construídos culturalmente. Os modos de ver, pensar, sentir e agir, ou seja, as formas como os grupos e os indivíduos se representam e são representados, é fruto das cargas de valores, isto é, dos valores de mundo contidos nos discursos produzidos socialmente.
Portanto, não há como vivermos em uma sociedade humana dotada de culturas se não soubermos fazer uso do sistema de funcionamento da língua utilizada por nosso meio social. Porém, é importante notarmos que essa ferramenta que nos possibilita compreender as coisas a nossa volta que é a linguagem, é apenas uma construção social e que nos serve única e exclusivamente como mera intermediária para nos situarmos no mundo. As coisas em si mesmas não têm significação alguma.
Vejamos: nenhum indivíduo nasceu utilizando a linguagem. Na verdade, ao longo de sua vida ele vai vivendo uma série de experiências que vai agregando ao longo dos seus contatos com a realidade. Nos primeiros instantes esse indivíduo balbucia algumas letras, posteriormente começa a articular sílabas a partir dessas letras, mais a frente passa a formar palavras, adiante se encontra capaz de conectar essas palavras a outras formando frases, para por fim, construir discursos mais complexos.
Nossos primeiros contatos com o mundo foram meramente sensoriais. Só depois é que nos adentramos no universo simbólico da linguagem. Antes de sermos essa aparente capacidade de ordenar as coisas ao nosso redor, somos unicamente intraduzíveis. Ao mesmo tempo em que a linguagem busca nomear as coisas, somos incapazes de significá-las enquanto essência já que antes da tradução dela, somos um vácuo carente de qualquer significado codificado a partir dessa linguagem.
Portanto, antes de nos apropriarmos da linguagem, nós éramos meros animais sem qualquer capacidade comunicativa para partilharmos códigos estabelecidos culturalmente e para vivermos em sociedade. Esse lado se refere à nossa condição enquanto natureza. No entanto, para vivermos em sociedade, esse nosso lado aparentemente foi tirado de nós. Porém, como dito anteriormente, ele apenas foi expurgado aparentemente, pois em nossa essência, essa natureza continua a borbulhar.
A sociedade moderna, como forma de manter a convivência social, busca reprovar qualquer manifestação dos nossos instintos. A ampliação dessa proibição se acentua no instante em que a razão proposta pelo ocidente passa a negar qualquer condição que venha a implicar uma trava à finalidade produtiva objetivada pelo sistema vigente. Em meio a uma cultura racional, tudo que venha a se aproximar dos instintos e até mesmo da sensibilidade, da imaginação e da intuição passa a ser excluído.
É devido a essa exclusão do nosso mundo sensorial e sensível que a arte de vanguarda entra em cena. Para essa arte, a cultura racional e produtivista do capitalismo burguês chegou a um nível de exigência no que diz respeito à eficácia e aos resultados objetivos, que a razão humana terminou por se submeter a uma mera funcionalidade, tornando-se pragmática e reduzida meramente a tudo que diz respeito à função das coisas. Os sonhos, a imaginação, a sensação foram considerados inúteis.
Para a arte de vanguarda, faz-se necessário o nosso reencontro com esse mundo que foi retirado de nós. O humano não pode viver escravizado pelas atrocidades racionais pragmáticas e utilitárias. É de grande importância que os humanos rompam as travas que os sufocam e consigam se dá o direito de flutuar, ir além do mero perceptivo e do que simplesmente se considera objetivo e real. O humano não pode se esquecer desse seu lado intraduzível. É necessário também o sentir sem pensar.
A arte de vanguarda acredita que o humano precisa navegar em seu mundo caótico também. Limitar-se a viver na esfera dos sentidos, das convenções, da normatividade, é se sujeitar a uma pobreza de olhar. O humano precisa se afogar nos mares revoltosos da não-razão para se transfigurar de si mesmo, para transbordar seus limites. Sem dialogar com as sensações e as sensibilidades forjadas pela razão instrumental o humano deixa de criar por matar sua possibilidade de imaginar e de sonhar.
Aquela criança dotada de criatividades e de liberdade para extrapolar o limite dos sentidos reais acerca das coisas passa a ser valorizada. Aquela criança sedenta em fantasiar e colorir o mundo e que foi obstruída pela maquina obsessiva de um sistema produtivista preocupado com a racionalidade, com a objetividade, deve ressuscitar no espírito de todos os humanos. Reaprender a sentir o prazer pela descoberta e pelo encanto com o não-acessível é objetivo da arte de vanguarda.
Ao se deparar com uma obra de vanguarda, o leitor tem que se deixar levar pelo esquecimento da norma e de qualquer tipo de verdade imposta. Transitar na arte de vanguarda é deixar de lado qualquer intenção premeditada e qualquer espécie de pressuposto lógico. Naufragar é preciso e flutuar também. Cabe ao humano se deleitar em si mesmo e em tudo aquilo em que ele não se compreende. Reaprender a se transfigurar, a se descontextualizar, a se desestabilizar, a se desestruturar.
O que importa é criar novas verdades estando convicto de que essas verdades assim como se criam, se destroem e se recriam; alcançar um mundo desconhecido e saber se deliciar com esse não-entendido, esse não-visto. É saber se libertar dos padrões que definem certezas e modelos premeditados e criar suas próprias linhas; deixar o fluxo da inconstância criar novos traçados, novos ângulos, novas paisagens. Nada melhor do que sermos donos da nossa própria interpretação e da nossa criação.
Ser livre e autônomo; ser crítico e se dá o direito de perder o controle. Está consciente de que a razão, antes de se reduzir às verdades e esquemas, é tão-somente uma superfície mínima que nos garante apenas uma mínima parcela de lógica em nossa convivência com o outro. Antes dela, somos andantes sem destino, pois a razão cria justamente o nos falta, ou seja, o sentido, o tempo, a lógica, a ordem, as regras. Antes de qualquer coisa somos a sombra de nossas próprias convicções.
segunda-feira, 16 de junho de 2014
Música original?
Na produção de uma obra musical e na inspiração do artista, não existe originalidade em si mesma, nem a falta dela de forma absoluta. As duas condições se encontram entrelaçadas. Essa classificação rígida traz algumas conseqüências negativas como a dificuldade de se fazer uma leitura mais ampla do artista ou do contexto no qual a sua obra foi produzida. Classificar rigidamente uma condição da arte ou do artista significa negar a transitoriedade - elemento fundamental de todo o processo histórico.
Comumente encontramos afirmações que tendem a relegar certas músicas, gêneros musicais, artistas de determinados momentos históricos a um plano inferior. Exemplos não faltam. Percebemos o alto valor dado a bossa nova, o baixo valor ao samba-canção e às músicas aboleradas dos anos 40 e 50. Percebemos um imenso valor a dita MPB, uma repulsa a Jovem Guarda. Podemos perceber essa repulsa também no rock anos 80, como encontramos um excessivo valor aos sambas do início do século XX.
Os argumentos possuem justificativas como o fato de certas músicas, artistas ou gêneros musicais em determinados contextos não terem produzido nada que pudesse ser considerado original, ou ao contrário, ou seja, o alto valor por serem considerados originais. Mas será que existem músicas ou artistas menos ou mais originais? Existem contextos históricos que podem ser considerados sem originalidade? Será que em algum contexto, os artistas não produziram nada que se diferenciasse de outras épocas?
Para tentar responder a essas indagações, discutirei a relação da cultura com a conservação. O interesse por essa relação vai servir para a construção de uma abordagem acerca da não originalidade contida em todos os artistas e obras musicais. Tentarei também buscar compreender a relação da cultura com a transformação com o intuito de encontrar atalhos capazes de proporcionar um debate sobre a originalidade. Por fim, a relação da cultura com o processo histórico e seus fluxos temporais.
Para falar sobre cultura enquanto conservação é necessário compreender a cultura como um conjunto de conhecimentos materiais e não-materiais acumulados ao longo da história da sociedade. Nesse sentido, a cultura é vista como uma herança de valores que são transmitidos de geração a geração. Sob esse aspecto, a cultura passa a ser incorporada pelo indivíduo de acordo com os valores apreendidos em seus grupos. Em se tratando da música, os indivíduos sofrem influências dos seus meios sociais.
Por outro lado, a cultura, além das heranças acumuladas que fazem dela algo fortemente marcado pela conservação; a própria cultura, por se encontrar em meio a um fluxo constante de trocas entre diversos indivíduos e atores sociais, transforma-se a todo instante. Portanto, além de manter traços provenientes das experiências vivenciadas por gerações antecedentes, a cultura está inserida em uma rede complexa de relações compostas por diversos outros grupos com outros valores.
Pensando a música em meio a essa cultura que conserva e que ao mesmo tempo transforma, nenhum artista é por todo original, assim como nenhum artista é completamente sem originalidade. Se por um lado, todo e qualquer artista, por viver experiências com outros grupos, termina por agregar novas formas estilísticas em seu trabalho musical, por outro, nenhum artista foge da condição histórica e social que o faz inevitavelmente se encontrar em meio a valores externos de seus meios.
Mesmo que o compositor de uma música tenha a intenção de assemelhar sua composição com a de outro artista, tanto um quanto o outro possuem referências e ao longo de suas experiências eles tendem a agregam outras referências. Além do mais, o compositor é um indivíduo, isto é, ele é indivisível. Em outras palavras, mesmo tendo as influências totalmente iguais, cada compositor tem sua própria subjetividade e essa subjetividade se refletirá na construção de sua obra.
Por outro lado, mesmo que o artista queira a originalidade plena em seu trabalho, não há como ele fugir das referências que são incorporadas aos seus valores estéticos e musicais ao longo de sua vida. Nenhum artista é capaz de produzir uma determinada obra musical sem ao menos ter tido uma rede de influências anteriores capazes de levá-lo a construção de sua música. Além do mais, todo artista também é produto de uma cultura, logo, ele está diretamente submetido aos valores de seus meios.
Agora que fizemos uma análise bastante breve acerca da relação com a cultura enquanto conservação para entendermos o porquê que nenhum artista pode ser considerado apenas original em seu trabalho, e a cultura enquanto transformação com o intuito de reconhecer a impossibilidade de classificarmos um artista como sem originalidade, a pergunta a tentar ser respondida é a seguinte: quais são os efeitos que poderemos ter ao insistirmos em classificar o artista como original e não-original?
Os efeitos podem ser extremamente nocivos, uma vez que, ao reduzirmos a cultura enquanto original e não-original, tendemos a negar o fluxo da história na qual essa cultura se encontra diretamente vinculada. Ao negarmos o fluxo da história, além de não reconhecermos a importância das trocas de valores que se constroem na sociedade, nós passamos a julgar a cultura pelo prisma do preconceito, deixando de lado um olhar mais abrangente e mais disposto a entender a diversidade.
Além da dificuldade em saber lidar com a multiplicidade de uma sociedade que se quer plural, o fato de classificarmos os artistas e suas músicas, leva a nos esquecermos de questionar a quem interessa essas classificações. Esse questionamento é muito importante, pois faz com que nosso olhar não caia no equívoco de deixar de lado as relações de poder que existem em meio à cultura. O importante é que possamos reconhecer o diverso e as intenções de exclusão que coexistem em meio a ele.
Quem classifica não percebe que certos artistas e gêneros musicais entendidos como não-originais, posteriormente passaram a ser vistos como importantes. O próprio samba do início do século XX, a música caipira, as marchinhas de carnaval, o baião em Luiz Gonzaga, são alguns exemplos. O ser original e importante é uma questão histórica e esta varia de acordo com o interesse de grupos que têm o prestígio e poder de incluir e excluir o que interessa aos seus critérios estéticos e políticos.
Comumente encontramos afirmações que tendem a relegar certas músicas, gêneros musicais, artistas de determinados momentos históricos a um plano inferior. Exemplos não faltam. Percebemos o alto valor dado a bossa nova, o baixo valor ao samba-canção e às músicas aboleradas dos anos 40 e 50. Percebemos um imenso valor a dita MPB, uma repulsa a Jovem Guarda. Podemos perceber essa repulsa também no rock anos 80, como encontramos um excessivo valor aos sambas do início do século XX.
Os argumentos possuem justificativas como o fato de certas músicas, artistas ou gêneros musicais em determinados contextos não terem produzido nada que pudesse ser considerado original, ou ao contrário, ou seja, o alto valor por serem considerados originais. Mas será que existem músicas ou artistas menos ou mais originais? Existem contextos históricos que podem ser considerados sem originalidade? Será que em algum contexto, os artistas não produziram nada que se diferenciasse de outras épocas?
Para tentar responder a essas indagações, discutirei a relação da cultura com a conservação. O interesse por essa relação vai servir para a construção de uma abordagem acerca da não originalidade contida em todos os artistas e obras musicais. Tentarei também buscar compreender a relação da cultura com a transformação com o intuito de encontrar atalhos capazes de proporcionar um debate sobre a originalidade. Por fim, a relação da cultura com o processo histórico e seus fluxos temporais.
Para falar sobre cultura enquanto conservação é necessário compreender a cultura como um conjunto de conhecimentos materiais e não-materiais acumulados ao longo da história da sociedade. Nesse sentido, a cultura é vista como uma herança de valores que são transmitidos de geração a geração. Sob esse aspecto, a cultura passa a ser incorporada pelo indivíduo de acordo com os valores apreendidos em seus grupos. Em se tratando da música, os indivíduos sofrem influências dos seus meios sociais.
Por outro lado, a cultura, além das heranças acumuladas que fazem dela algo fortemente marcado pela conservação; a própria cultura, por se encontrar em meio a um fluxo constante de trocas entre diversos indivíduos e atores sociais, transforma-se a todo instante. Portanto, além de manter traços provenientes das experiências vivenciadas por gerações antecedentes, a cultura está inserida em uma rede complexa de relações compostas por diversos outros grupos com outros valores.
Pensando a música em meio a essa cultura que conserva e que ao mesmo tempo transforma, nenhum artista é por todo original, assim como nenhum artista é completamente sem originalidade. Se por um lado, todo e qualquer artista, por viver experiências com outros grupos, termina por agregar novas formas estilísticas em seu trabalho musical, por outro, nenhum artista foge da condição histórica e social que o faz inevitavelmente se encontrar em meio a valores externos de seus meios.
Mesmo que o compositor de uma música tenha a intenção de assemelhar sua composição com a de outro artista, tanto um quanto o outro possuem referências e ao longo de suas experiências eles tendem a agregam outras referências. Além do mais, o compositor é um indivíduo, isto é, ele é indivisível. Em outras palavras, mesmo tendo as influências totalmente iguais, cada compositor tem sua própria subjetividade e essa subjetividade se refletirá na construção de sua obra.
Por outro lado, mesmo que o artista queira a originalidade plena em seu trabalho, não há como ele fugir das referências que são incorporadas aos seus valores estéticos e musicais ao longo de sua vida. Nenhum artista é capaz de produzir uma determinada obra musical sem ao menos ter tido uma rede de influências anteriores capazes de levá-lo a construção de sua música. Além do mais, todo artista também é produto de uma cultura, logo, ele está diretamente submetido aos valores de seus meios.
Agora que fizemos uma análise bastante breve acerca da relação com a cultura enquanto conservação para entendermos o porquê que nenhum artista pode ser considerado apenas original em seu trabalho, e a cultura enquanto transformação com o intuito de reconhecer a impossibilidade de classificarmos um artista como sem originalidade, a pergunta a tentar ser respondida é a seguinte: quais são os efeitos que poderemos ter ao insistirmos em classificar o artista como original e não-original?
Os efeitos podem ser extremamente nocivos, uma vez que, ao reduzirmos a cultura enquanto original e não-original, tendemos a negar o fluxo da história na qual essa cultura se encontra diretamente vinculada. Ao negarmos o fluxo da história, além de não reconhecermos a importância das trocas de valores que se constroem na sociedade, nós passamos a julgar a cultura pelo prisma do preconceito, deixando de lado um olhar mais abrangente e mais disposto a entender a diversidade.
Além da dificuldade em saber lidar com a multiplicidade de uma sociedade que se quer plural, o fato de classificarmos os artistas e suas músicas, leva a nos esquecermos de questionar a quem interessa essas classificações. Esse questionamento é muito importante, pois faz com que nosso olhar não caia no equívoco de deixar de lado as relações de poder que existem em meio à cultura. O importante é que possamos reconhecer o diverso e as intenções de exclusão que coexistem em meio a ele.
Quem classifica não percebe que certos artistas e gêneros musicais entendidos como não-originais, posteriormente passaram a ser vistos como importantes. O próprio samba do início do século XX, a música caipira, as marchinhas de carnaval, o baião em Luiz Gonzaga, são alguns exemplos. O ser original e importante é uma questão histórica e esta varia de acordo com o interesse de grupos que têm o prestígio e poder de incluir e excluir o que interessa aos seus critérios estéticos e políticos.
Assinar:
Postagens (Atom)