* Este texto foi uma resenha do artigo "Os vasos comunicantes: escritura e psiquismo na poética surrealista" de Gisele Nery de Andrade. .
O surrealismo pretende ir de encontro à lógica racionalista do ocidente a qual separou a razão do universo marcado pela sensibilidade humana. Não é por acaso que o surrealismo vai propor uma reconciliação entre esses dois universos, ou seja, “propor a busca por um ponto de encontro, um espaço de cruzamento entre os dois domínios nos quais o homem se divide: racional e sensível” (ANDRADE; 2011, p.01).
Para o surrealismo, é só através da reconciliação entre esses dois universos que o humano poderia se reencontrar com o seu mundo interior, assim como, se enxergar como capaz de conduzir a sua vida exterior, afinal, ao romper com as barreiras, elas “deixariam de ser instâncias diferentes para se complementarem em um estado psíquico único, harmônico, que deixasse vir à tona a beleza, a magia, o fantasioso”. (ANDRADE; 2011, p.02)
Só através desse contato entre esses dois universos que o homem pode se constituir enquanto totalidade de si mesmo. Entretanto, mesmo acreditando na possibilidade dessa unificação dos dois universos, o surrealismo não acredita na idéia de uma garantia acabada do indivíduo em relação a si, afinal, essa “constituição é o que se deseja (re) encontrar o que está sempre a se realizar, mas nunca é alcançada”. (ANDRADE; 2011, p.02)
Não é do interesse do surrealismo encontrar um lugar definitivo para os humanos, até por que, por dialogar com a psicanálise acerca da compreensão dos sonhos, ele vai trafegar pelas linhas do desejo, ou seja, “assim como a teoria psicanalítica nos diz que o que move o psiquismo é a busca pela coisa perdida das Ding, que jamais é reencontrada, o objetivo do surrealismo é a busca do igualmente inalcançável”. (ANDRADE; 2011, p.06)
Como dito, para o surrealismo, a integração dessas duas dimensões influenciaria o homem em sua relação com o mundo exterior. Para os surrealistas, o homem encontraria a sua “realidade superior” por meio da unificação das instâncias psíquicas, pois só “a vivência do desejo que antes fora aprisionado nos porões do inconsciente pela racionalidade censora tornaria o homem finalmente livre e conhecedor de si” (ANDRADE; 2011, p.05)
É justamente por ir de encontro a essa racionalidade instrumental ocidental marcada pela lógica da razão negadora das subjetividades e dos sonhos que “o positivismo e o empirismo são rechaçados veementemente”. (ANDRADE; 2011, p.02). Essa negação se deve ao fato do surrealismo propor uma outra lógica a qual, antes de ser unicamente ligada à experiência, “vai ter de ceder lugar ao inconsciente e à imaginação”. (ANDRADE; 2011, p.02)
Porém, vale observar que o fato do surrealismo propor uma não-submissão do homem à razão, não significa dizer que essa corrente artística e estética vá de encontro ao processo lógico racional, buscando com isso uma fuga da realidade. Na verdade, o surrealismo pretende, em um primeiro momento, sobrepor a sensibilidade à racionalidade para que, por meio dela, o homem consiga se libertar das censuras impostas pela razão as quais inibem a expressão dos seus desejos mais profundos. (ANDRADE; 2011)
É por encontrar um novo caminho para a lógica proposta, que os surrealistas vão também questionar o estatuto interpretativo da arte. Ao invés de apoiar uma concepção de arte que perpetua o modelo da dimensão objetiva da representação, o surrealismo, por enveredar pelo caminho do onírico, “foge ao stablishment artístico de representação da natureza e da realidade exterior”.
A realidade exterior, uma interpretação produzida unicamente pela razão é negada pelo fato dos surrealistas acreditarem que o objeto artístico é articulado ao inconsciente, pois “tanto o sonho quanto a obra de arte surrealista teriam como objetivo levar o homem a entrar em contato com a própria subjetividade” (ANDRADE; 2011, p.08), uma vez que para o surrealismo “a arte, assim como o sonho, é território do símbolo”. (ANDRADE; 2011, p.05)
Não é por acaso que encontramos nas obras surrealistas os mesmos rompimentos com as lógicas conscientes, assim como nos sonhos. No surrealismo encontramos “os mesmos deslocamentos espaciais, temporais e contextuais” provocados pelos momentos oníricos (ANDRADE; 2011, p.05). É por isso que o surrealismo produz obras que apresentam imagens as quais promovem “um diálogo inadmissível por nossa lógica racional e totalmente pertinente ao plano onírico”. (ANDRADE; 2011, p.05)
Portanto, para o surrealismo, a criação artística se encontra diretamente ligada ao inconsciente, portanto, ao sonho, uma vez que o artista, assim como no sonho, termina por expressar um conteúdo latente, realizando “deslocamentos e condensações para comunicar uma mensagem que, ao mesmo tempo, diz respeito a uma inquietação pessoal”. (ANDRADE; 2011, p.08) Por isso que o surrealismo insiste na realização da arte enquanto escolha livre de elementos.
Se apropriando de todos os debates vigentes da psicanálise sobre o inconsciente, o surrealismo buscava reencontrar perspectivas interpretativas libertas dos modelos externos, e por isso mesmo “pregava a comunicação das ideias e das imagens que surgissem na alma humana sem que se permitisse qualquer intervenção dos mecanismos censores da consciência”. (ANDRADE; 2011, p.03). Além disso, propunha ao artista conceber uma obra completamente livre da censura da razão (ANDRADE; 2011, p.04)
Por propor a arte e a libertação do homem, o surrealismo nega a idéia da arte enquanto um modelo previamente acabado de sentidos, acreditando na “perspectiva de o homem vir poder dispor verdadeiramente de si mesmo” (BRETON, 1924a, p. 258 apud ANDRADE; 2011). Ou seja, ao invés de uma obra de arte reduzida a sentidos acabados, “o que se valoriza na linguagem são os elementos individuais, particulares do subjetivismo de cada indivíduo”. (ANDRADE; 2011, p.04)
O surrealismo propõe que o homem busque seus próprios caminhos e que “esteja munido para viajar para dentro de si (...) dissecando, elaborando a própria história” (ANDRADE; 2011, p.08). A proposta é que “o homem se permita uma entrega um pouco maior à própria sensibilidade, recuperando o contato com a inspiração, a intuição, a fantasia, a criatividade” (ANDRADE; 2011, p.04); acreditando na onipotência do sonho e no desempenho desinteressado do pensamento.
É por esse interesse em fazer o leitor passar a ser dono de suas próprias elaborações através da obra de arte que o surrealismo também não prioriza a formalidade das regras gramaticais, pois acha que a arte deveria ser uma espécie de força criativa e ilimitada do inconsciente o qual não poderia se submeter essas regras, ou seja, “o que importava era a libertação do espírito via pensamento e imaginação”. (ANDRADE; 2011, p.04)
Portanto, as palavras, antes de se resumirem às regras gramaticais e se encontrarem reduzidas à meras estruturas e preocupadas com a imagem e o som unicamente, passam a ser acolhidas pelos sentidos e abertas à re-significação. Como bem expõe Andrade, “a palavra teria a missão indelével de transformar a realidade interior e exterior, servindo como munição do verdadeiro sentido do Surrealismo: transformar”. (2011, p.04)
Como se nota, a partir do instante em que o surrealismo propõe um estilo interpretativo mudando a direção do consciente para o inconsciente, o leitor da obra de arte, antes de se apropriar de um sentido acabado, passa a re-significar os códigos “que orientam e confundem em direção à falta causada pela coisa perdida desde sempre que buscamos, sem sucesso, reencontrar”. (ANDRADE; 2011, p.07)
É por partir da perspectiva a qual se adentra no universo onírico que o surrealismo propõe que o leitor da obra de arte não deixe “que os planejamentos do devaneio sejam costurados pela linha da lógica da linguagem” (ANDRADE; 2011, p.07). Ao contrário. O que o surrealismo propõe é uma realidade que, sem a censura da razão, expressaria os conteúdos velados até então abrindo espaços para a falta que constitui o homem.
Em outras palavras, o surrealismo, a partir do reconhecimento da sensibilidade, tem como finalidade, a libertação do homem das amarras da razão. É pelo fato da cultura ocidental se encontrar habituada em se situar diante da obra de arte estrutural e preocupada com a reprodução dos sentidos, que o surrealismo termina desarmando o leitor da obra por “romper com os sistemas e as regras aprisionantes”. (ANDRADE; 2011, p.04)
Para o surrealismo, a partir do instante em que o homem abandona a restrição provocada pela lógica racional, além dele se encontrar em meio a um campo de realização em sua plenitude por diluir as fronteiras entre o imaginário e o real, “o espírito do homem que sonha se satisfaz plenamente com o que lhe acontece. A angustiante questão da possibilidade não está mais presente” (BRETON, 1924a, p. 45 apud ANDRADE; 2011)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Gisele Nery de. Os vasos comunicantes: escritura e psiquismo na poética surrealista. XII Congresso Internacional da ABRALIC, Curitiba, pgs: 01-08, jul. 2011
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