Apresento aos leitores do Torto, o escritor Heitor Lima. Nosso Primo, neto do escritor cearense Wilson Vieira.
O Momento
Então, se foi. Na época em que melhor a escrevia, com suas diversas doses de egocentrismo indiscutível, resolveu por desistir de se explicar. Foi narrando seus batentes, até mesmo de uma forma despojada, algo que não fazia parte de sua personalidade singular, por ser um bicho abstrato, totalmente mal interpretado por seus atos, absorvendo nitidamente avalanches de sentimentalismo, rotulado pelo dom de ampliar seus medos, talvez uma dentre as muitas capacidades que não escolhemos ter até saber como lidar com ela e, como quebra de expectativa, se enforca na própria vontade de se livrar disto.
Exclamava para uma nudez auditiva, como se um corpo invisível refletisse aquilo que faria livre suas desilusões, morrendo novamente em sua verdade interminável de ser o mais preocupado de todos, lembrado por um rabisco ambicioso que reclamava, em sua presença, o “por quê”, aparentando um estado psicologicamente obscuro de consciência.
Por nada, animava-se, intacto, afagando seus inúmeros desesperos em corrimentos, esquecia seus sustos, mortos, sempre em um método sem fundamento, amparado somente nele e não entendido por explicações retas, expostas aos montes por tudo o que tivesse menos amor do que seu íntimo. Exercitando o dito anterior, humanamente, lembrou da carne que o apunhalou em curtos dias. Culpa da pressa que tem em mistificar tudo o que passa pela sua vida. Agora, dentro de um interminável abismo exposto em verde, caindo suavemente pela eternidade admirável das inquietações observadas, desta vez, dentro do infinito e, esquerdo, encontrando-se seco, onde as sensações saiam da pele, físicas, entortando na direção da íris em contraste com o resto do momento, quando pode ver seu próprio corpo, alinhado, em uma única união, oscilando distintamente como dois espelhos frente a frente. A medida em que caminhava em direção a recente epifania, ardeu seu olhar pleno diretamente a face total, movendo os lábios rubros entre os dentes, cultivando um espaço vazio, o qual não o permitia sair. Até que estava completamente parado, significando o próprio espírito, paciente, esnobando qualquer acaso que poderia acontecer a qualquer instante.
Algo como uma manifestação do inconsciente no mundo material, incrivelmente rápida, mas eterna, onde a pintura estática do acontecimento descrevido permaneceu congelada em seu ápice, dando continuidade ao trabalho do tempo, que redecora toda a vida mergulhada no destino.
Heitor de Lima.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
BOCAS
Era tarde quando Teófilo chegou a sua casa. O dia de trabalho na marcenaria de seu Tadeu fora muito difícil para o jovem tobiense de 25 anos. Naquele dia, o rapaz teve de trabalhar dobrado para atender as demandas da casa. Teófilo era filho único de dona Maria das Dores e de seu José da Silva. Este era um casal muito temente a Deus e as leis da terra. O humilde casal de agricultores criou seu filho segundo os costumes da Santa Igreja. Mas, apesar de uma educação cristã, o jovem Teófilo era um rapaz cheio de questões existenciais; perguntas que para ele eram irrespondíveis, pelo menos, segundo ele, nesse “mundão de Deus”. Depois que ele foi para Salvador visitar alguns parentes e presenciou o assalto de uma senhora idosa, e a forma violenta como os bandidos o realizaram; a crueldade humana apareceu nítida diante de seus olhos inocentes que refletiam o brilho de uma alma quase cândida crescida e criada na roça. Teófilo, então, passou a descrer da pessoa humana e se tornou um rapaz triste e angustiado.
- Teófilo, meu filho, por que você não tem uma namorada? O mundo está cheio de moças bonitas. Esta era uma pergunta que sua mãe insistia em fazer quando o via daquele jeito.
- Ah, mãe, pra que casar e ter filhos num mundo desses? Deixa pra lá! Teófilo entrou em seu quarto, fechou a porta, ligou o rádio e se pôs a ouvir o noticiário das seis. O âncora do programa dizia: “Hoje, em Aracaju, choveu o dia todo, alguns morros deslizaram, e algumas casas desabaram”. “Sobe para dez, o número de mortos na grande Aracaju”. O rádio prosseguia o relato das tragédias locais enquanto Teófilo adormecia na cama.
O dia na Vila de Campos acordou cinzento; uma frente fria vinda do sul cobriu o sertão de nuvens carregadas. Teófilo se levantou da cama e foi direto para a cozinha onde estavam seu pai e sua mãe.
- Ontem sonhei que o mundo estava cheio de bocas. E as bocas falavam sem parar, cada uma segundo seu mundo.
- Meu filho você está bem?
- Estou pai. Seu José estava com medo que seu filho estivesse a delirar.
- Então, a vida continua. Precisamos esquecer as coisas tristes e segui em frente.
- Mas, pra onde pai?
- Ora, Teófilo, fazer o que todos fazem: Trabalhar, casar, ter filhos.
- Pai, filho num mundo cheio de violência não é uma boa ideia. A vida continua pra mim, mas, sem filhos.
Enquanto Teófilo saía de casa rumo à marcenaria, seu José e dona Maria conversavam sobre ele:
- Mulher, o rapaz ficou caído com o roubo daquela dona.
- Num foi homem. Coitado!
Teófilo seguia calmamente para o seu trabalho. Ele gostava do que fazia, dá forma a madeira era sua especialidade; o povo dizia que Teófilo era um mestre em sua arte, ele era o melhor marceneiro da região. Próximo ao antigo Parque dos Missionários, uma moto surge de surpresa em alta velocidade assustando o moço distraído, Teófilo tropeça e cai no massapê de Campos. A pancada da queda o tira dos sentidos, e o povo que passava pensou que o rapaz estava morto.
- Ali num é o filho de Dores? Será que ele morreu?
- Deve ter sido. Vamos ver! O rapaz da moto tentou socorre-lo, mas, nada conseguiu. A situação estava ficando preta, Teófilo estava inconsciente. Chamaram uma ambulância e levaram o pobre marceneiro para o hospital local. Logo uma multidão de curiosos se formou defronte o prédio do hospital. O povo queria saber o que ocorrera com o filho de José da Silva e dona Dores.
- Estava drogado?
- Sei não, mas, o povo diz que ele andava meio estranho.
- Num é nada disso. É o rapaz que não gosta da fruta mulher e está em crise de consciência.
- Deixa disso, Alfredo, eita, que boca!
- Bem, é a boca do povo que diz. Respondeu a crítica o vendedor de chinelos de couro na feira municipal. Enquanto o povo fazia suas conjecturas, entram na sala de espera do hospital o pai e a mãe do rapaz.
- Olha, mulher, dona das Dores como está, coitada!
- E seu José? Coitado!
O casal queria saber de seu filho, Mas, nada entendeu do diagnóstico do médico plantonista: “Seu filho teve uma queda glicêmica muito acentuada e precisa de alguns minutos para voltar a si”. “E isso mata, doutor?” “Não, exceto, se ela estiver associada ao um pâncreas muito debilitado”. “Então, doutor, pelo o Cristo, ajude Teófilo!” O casal ficou na sala de espera, e do lado de fora a multidão aguardava mais notícias para atualizar a prosa do dia. Em Campos, o povo é muito preocupado com a vida dos outros.
O céu de Campos passou de cinzento para escuro, e com as nuvens escuras vieram raios e trovões, contudo, nada disso dissipou as pessoas à porta do hospital. Os primeiros pingos caíram muito timidamente, depois, veio a tempestade, e ela apavorou a Campos aquele dia. Nunca se viu uma trovoada daquela. Todo mundo foi se esconder em sua casa e logo esqueceram o rapaz do hospital. Teófilo descansava no leito 07 da enfermaria do Hospital de Caridade de Campos.
- Teófilo, acorde!
- Quem é?
- Sou eu.
- Quem? Uma boca muito bem cuidada falava com o jovem marceneiro.
- Eu. Teófilo levantou a cabeça em busca de uma pessoa e viu apenas uma boca.
- Mas que diabo é isso? Uma boca?
- Sim, eu sou uma boca e você também. Levante-se e olhe-se no espelho! O rapaz se ergueu da cama e foi em direção ao banheiro. Olhando-se no espelho, Teófilo viu apenas a imagem de sua boca. A boca que falava com ele disse com certa alegria: “Bem-vindo ao mundo das bocas”.
O mundo das bocas não tinha cor, cheiro, vento, ou sol. Era um mundo escuro, turvo, e as coisas desse mundo nunca eram o que pareciam ser. Um cavalo podia, em questão de segundos, ser uma pessoa, ou um objeto, um ser humano, tudo dependia do que as bocas diziam. A boca amiga acompanhou Teófilo até a porta do Hospital: “Tenha um bom dia amigo!” Disse a boca amiga. Teófilo sorriu para a boca e ela sorriu para ele. O marceneiro de Campos caminha pela Avenida João Alves Filho em busca do caminho de volta ao trabalho. Chegando a primeira esquina ainda avistando o hospital havia um carro de frutas. Uma boca muito grande e silenciosa velava aquele estabelecimento comercial ambulante.
- Bom dia moço!
- Bom dia amigo. Respondeu Teófilo.
- Sua pessoa num quer uma fruta não? Perguntou a boca mostrando os dentes.
- Não. Na verdade, Teófilo queria chegar ao trabalho sem mais demora. Contudo, a boca insistiu:
- Uma laranja! Um abacaxi! Que tal?
- Não moço. Estou com pressa mesmo. A boca fechou os cantos e disse apertada: “Mão de figa”. Alguns passos adiante Teófilo olha para trás e vê o carro de frutas se transformar em um balcão de banco cheio de bocas aflitas. As bocas queriam a todo custo se livrarem de suas dívidas:
“Parcele, por favor!”
“Assim não dá pra mim”
“Lamento, mas, vamos empenhorar sua casa”. Muitas bocas saíram fechadas do lugar, outras saíram ainda mais desconsoladas. Essa imagem muito entristeceu o filho de Campos. Teófilo procura olhar-se no espelho de um carro azul estacionado do lado direito da avenida. O espelho refletia a imagem de sua boca. Para ele, não havia dúvidas que algo muito estranho estava acontecendo.
Embora triste com o que via Teófilo seguiu a Avenida João Alves. Esta estava cheia de bocas sentadas nas calçadas. Muitas coisas as bocas diziam, mas, nenhuma boca assumia a responsabilidade. Na verdade, as bocas sentiam a compulsão para dizer, sem, contudo, verem a consequência de seus ditos. Uma boca miúda aborda o marceneiro e lhe pergunta sobre seu estado:
- Moço está melhor?
- Sim.
- Moço, é verdade que você desistiu de viver?
- Não, em hipótese alguma. Amo a vida e quero continuar. Apenas não acredito mais na bondade humana.
- O que aconteceu com aquela senhora foi um caso isolado. E ela já estava mais pra lá de que pra cá.
- Não diga isso, pois, a idade da mulher não justifica a violência contra ela. Todos tem o direito à vida. A boca miúda deu uma risada com a expressão “direito a vida”.
- Moço, cá em Campos, as pessoas estão mortas vivas. Elas mal conseguem dizer o que pensam, e quando elas dizem alguma coisa, a coisa é um dito de outro o qual elas nem sabem por que o disseram. As bocas falam porque as palavras são doces ao seu paladar.
- Como assim, boca miúda; posso chamar-lhe assim?
- Sim, pode. Se sua pessoa não estiver apressada eu te levarei a um lugar e você entenderá o mundo das bocas. Teófilo estava atrasado para o trabalho, mas, devido à insistência da boca miúda, ele decidiu acompanhar a boquinha. Os dois seguiram juntos até a Avenida Sete de junho, a mais importante da cidade. Na altura do estabelecimento comercial de Zé Bacateiro, a sorveteria mais conhecida da cidade, eles descem pelo esgoto municipal.
Os esgotos de Campos formavam outra cidade debaixo da terra onde as leis eram as mesmas da cidade de cima, a diferença era que na cidade subterrânea o dito parecia mais autentico. As pessoas eram mais transparentes, e a escuridão parecia ter mais luz uma vez comparada a opacidade da cidade de cima. As bocas se sentiam à vontade para dizer o que pensavam. A boca miúda não saía de perto de Teófilo que ao caminhar pelos esgotos de Campos vivia sensações jamais experimentadas em toda sua vida. Tobias Barreto se mostrava despida ante seus olhos pela primeira vez. Teófilo segue calmamente até defronte o supermercado principal da cidade. A concentração de bocas nesse local era muito grande. Havia bocas de todos os tipos. As primeiras que estavam à porta do estabelecimento, eram as bocas da periferia que ficavam ali para mendigarem alguma coisa ou oferecerem algum serviço em troca de alguns trocados. Uma boca mal cuidada, com a dentição podre, inicia uma série de enunciações:
- Minha mãe está passando mal em casa e não tenho dinheiro para lhe comprar remédios, me ajude, por favor! Uma boca de classe média cuja dona tinha seu carrinho cheio de mantimentos lhe responde:
- Ah, meu filho me perdoe, não tenho trocados. Esse diálogo cotidiano soava na cidade subterrânea da seguinte maneira:
“Eu vou passar a perna nessa coroa abestada”.
“Vá se catar perdedor”.
Teófilo, ora ria, ora chorava com o que ouvia das bocas de baixo. A boquinha decide mostrar mais coisas para o grande marceneiro de Campos.
- Teófilo, vamos mais para frente, para onde as bocas grandes se encontram para discutirem Campos.
- Ah, sim, seria bem interessante. Os dois desceram a Avenida Sete até chegarem ao alto comercio da cidade. Ali, as bocas pareciam unidas num só propósito – fazer o progresso da cidade. Comerciantes e políticos conversavam na via pública:
- Chico esse negócio de pagar imposto num dá certo. O governo num faz nada!
- Num é o que rapaz, eu só declaro um por cento das vendas, e pronto!
- Pois é, eu faço o mesmo. Não tenho nada a ver com esse governo. Suas vozes chegavam lá em baixo assim:
“Eu quero esse ano é dobrar o faturamento, mesmo que passe a perna no imposto”.
“Eu quero ficar mais rico, dana-se a sociedade”. Dois políticos proeminentes de Campos abrem diálogo sobre as acusações contra o prefeito local:
- Rapaz, assim não dá, a roubalheira está grande demais. O interlocutor coça as virilhas e continua olhando para o céu.
- Campos nunca viu isso, é demais! O outro interlocutor responde ao enunciado do primeiro:
- É mesmo, amigo, mas quando Zé de Tico for eleito, a coisa muda, eita, macho honesto!
As falas dos dois chegam ao esgoto assim:
“Campos e o Brasil sempre foram assaltados, tomara que chegue nossa vez”.
“Mas quando chegar a nossa vez, vamos descontar o atrasado”. Teófilo, ora via, ora se recusava a ver as coisas do submundo. Contudo, o desejo pela verdade era maior. Teófilo decide perguntar a boquinha sobre os fatos.
- Minha cara boca, será sempre assim?
- Em vossa história, posso dizer que sim. A pobreza e a miséria não é um acidente. A potência das duas é a má gestão pública e o desvio da coisa pública historicamente consagrado. Olhe para os campos ao seu redor, eles destilam leite e mel, o sertão é viável.
- Mas, seu boca, não tem homens no sertão?
- O problema do sertão não é a falta de homens, e sim, de discursos coerentes com nossa realidade. O sertão é tratado como se não fosse um bioma com peculiaridades só suas. O sertão precisa de novas bocas que digam o que de fato deve ser dito, pois, o subterrâneo ressoa as contradições. Ademais, o homem político do sertão aprendeu que a coisa pública é privada. O privado e o público se misturaram nas mentalidades locais, e assim, virou “coisa nostra”. Teófilo chorou amargamente diante da boca amiga. E esta o confortou: “Amigo, não chore, pois, a terra produz novidade o ano todo, assim como nascem espinheiros, também nascem árvores frutíferas. O sertão é isso, um movimento constante”. Teófilo seguiu seu caminho para mais profundo no subterrâneo de Campos, a boca amiga lhe pediu desculpas dizendo-lhe que não podia mais continuar a viagem.
Onde hoje é a Praça do Cruzeiro, Teófilo percebeu uma grande quantidade de bocas; as bocas estavam eufóricas, pois, discutiam sobre o carnaval, ou o Carnatobias.
- Olha Rubenita, nesse carnaval, eu vou arrasar!
- Mulher, você merece toda a felicidade do mundo. Vá mesmo, pois, dizem que esse ano a coisa pega! Uma boca que trabalhava numa repartição pública entrou na conversa.
- Sabe pessoal, eu acho que nós não precisamos de carnaval. A cidade está mesmo é necessitada de educação. Teófilo ouvia a conversa do jeito em que ela se apresentava nos subterrâneos, ou seja, sua verdade velada atrás da mascara social. E isso o fazia sentir náuseas com muita frequência. A ânsia de vômito do rapaz tornou-se tão forte que ele desmaiou. No chão do subterrâneo de Campos Teófilo se encontra com um negro que carregava um rosário na mão:
- Meu filho eu vim por causa de tua saúde. Tens vomitado e perdido muito fluido, estou preocupado contigo. O velho era meigo e manso e suas palavras eram sabias e davam paz.
- Quem é você?
- Sou um arquétipo da humanidade.
- O que é isso?
- É que minha humilde pessoa está em vós todos.
- Como assim?
- Quando vós sonhais com o bem, vós fazeis uso de vossos arquétipos milenares. Existem diferentes padrões para organizar vossos pensamentos. Este velho é um deles.
- E quando as pessoas sonham com o mal?
- Existem formas padrões para tudo, inclusive para o mal. Vosso bicho ainda precisa de domador.
- Como assim, meu velho?
- Disseste bem ao chamar-me de velho, pois, eu sou tão antigo quanto vossa história. Sonhais há muito tempo.
- Eu não entendo sua pessoa.
- Eu vim porque julgais o mundo e te esquecestes de que tu és parte dele; um pequeno microcosmo. Aquilo que vês no outro também está em ti. De forma súbita, Teófilo passou a ver suas contradições.
Era uma tarde de terça feira, dia de Ogun. Teófilo caminhava de volta do trabalho pelas dezessete horas quando um carro de luxo o para, dentro do veiculo estava uma senhora casada. A mulher era linda e pedia informações sobre o endereço de uma residência. A conversa entre os dois tomou, de forma inesperada, outro rumo. Teófilo teve um caso amoroso por três meses com a senhora de um comerciante muito conhecido em Campos. O rapaz havia esquecido isso, mas, o subterrâneo de Campos revela os mais escuros segredos. Ao se deparar com sua realidade, o jovem marceneiro busca se desculpar.
- Foi ela, senhor, quem se jogou. E eu sou homem.
- Sua pessoa compactuou com tudo. Os dois cometeram o mesmo erro.
- Mas, se ela não tivesse começado nada teria acontecido.
- Desde Adão que o outro leva a culpa. O homem de barro é um arquétipo de vossa fragilidade. Contudo, o barro é muito fácil de ser moldado de novo, você não acha?
- Olha moço, eu não entendo muito o que dizes.
- Os homens fogem da culpa como o diabo foge da cruz.
- Ah, sei. Mas, insisto: A senhora da sociedade recebeu o que pediu.
- Continue andando por esses subterrâneos, quem sabe a uma quadra adiante você se encontre. O velho pediu licença e saiu da presença do marceneiro. O seu rastro no chão enlameado dos tuneis deixou pegadas fluorescentes.
Agora Teófilo estava só naquele mundo debaixo do chão de Campos. Ele ouvia as bocas eufóricas falarem sobre diversas coisas. Uma boca muito grande não parava de reclamar da vida. Para ela nada bastava. Outra boca se queixava da solidão, mas, não conseguia se doar a ninguém. Teófilo tenta conforta-la, mas, sem sucesso, a boca não conseguia ouvi-lo. Perto de um banco Teófilo se encontra com duas bocas fazendo planos para o casamento.
- Amor, eu estou ansiosa para dividirmos o mesmo espaço.
- E eu também querida. Mas precisamos ajustar algumas coisas.
- Querido, que tal nós fazermos um empréstimo para a nova mobília? Disseram-me que aqui os juros são bem em conta. No subterrâneo, Teófilo ouvia a conversa de forma diferente. O casal não tinha certeza se o amor dos dois era o bastante para uma relação mais íntima. Ademais, a moça, como muitas filhas do sertão queria sair de casa, ela não suportava mais a castração infringida por seus pais. Já o rapaz, queria mesmo era continuar solteiro, a ideia de casamento foi apenas uma desculpa para conseguir a mulher de suas fantasias eróticas. A voz do moço ressoava nos subterrâneos dessa forma: “E agora como vou sair dessa?” Teófilo sabia que o amor existia e que muitos casais se uniam inspirados pelo autentico sentimento de amor, mas, os porões do subterrâneo eram implacáveis, nada passava em branco. Mais adiante, bem perto de uma igreja, Teófilo para e escuta as bocas religiosas:
- Gente! Gente! Gritava uma boca afeminada, mas, muito religiosa.
- Sim Arcanjo! O que foi dessa vez?
- Nosso novo padre é lindo!
- Eh, desta vez as mulheres da paróquia vão sofrer fortes tentações.
- E os meninos também! Não se esqueça! A conversa nos subterrâneos não foi traduzida, parece que o que disseram lá em cima ressoava do mesmo jeito embaixo. Um grupo de Calvinistas conversava baixinho:
- Precisamos converter Campos e o Brasil à fé verdadeira.
- É mesmo seu Lutero de Souza, esse país está entregue a sensualidade.
- Nem diga, quanto mais passa o tempo, mais os costumes se parecem com os de Babilônia.
- Olha, meu caro Lutero de Souza, o Brasil será de Cristo! As bocas serraram os dentes como se tivessem cheirado cada uma, cinco carreiras do pó maldito. Seus dentes trincaram uns nos outros tamanha foi a força que as mandíbulas fizeram. A conversa dos religiosos chegou aos subterrâneos assim: “Queremos o poder político do Brasil custe o que custar”.
Teófilo ao ver e ouvir o mundo subterrâneo das bocas teve náuseas e ânsias de vomito. O suco gástrico de seu estomago produzia uma acidez que lhe saia pelas ventas. Definitivamente, Teófilo estava exposto ao adoecimento por emoções fortes. Uma criança, ou melhor, sua boca sem dentes e de gengivas inchadas, se aproxima do mestre da marcenaria de Campos: “Minha mãe está sem leite no peito, moço, mas que fome!” Muitas crianças eram filhos sem pais, bocas desesperançadas e espalhadas pelo sertão. Dizem que o sertão é alvo dos exploradores de corpos, estes são os que ganham dinheiro agenciando a prostituição. Agora, não havia mais limites para Teófilo; as visões seriam muito mais pesadas. “Teófilo!” A voz saía das brechas das paredes do subterrâneo. A voz dizia: “Dancem todos, se divirtam todos!” “It’s a wonderful world; imagine! No war, no pain, every men marching together!” Teófilo acreditou nas palavras das bocas das brechas e sorriu por cinco minutos. Depois, ele tomou uma pílula que a boquinha lhe havia dado. A pílula fez efeito em 30 minutos, em seguida, Teófilo estava de volta à parte de cima da cidade.
- Teo! Oh, Teo! Dona das Dores chamava por seu filho com insistência. Enquanto isso, seu da Silva conversava com o enfermeiro Tomás. Das Dores insistia:
- Teófilo, menino, ande, vamos! O mancebo com um quarto de século abre os olhos e depois a boca.
- Mãe! Mãe e filho se abraçam na enfermaria da Casa de Caridade de Campos. Finalmente, das Dores tinha seu filho de volta, e a marcenaria de seu Tadeu seu funcionário de ouro. Teófilo ficou calado por muito tempo. Nada disse do que viu, e nada fez para mudar nada. Teófilo caminhou para a marcenaria durante longos vinte anos. Quando ele fez dinheiro e colocou sua oficina, Campos havia se transformado em uma cidade de pequeno/médio porte, ou seja, uns setenta mil habitantes. O homem da barraca de frutas estava no mesmo ponto. As pessoas faziam e diziam as mesmas coisas. Os políticos falavam de seu amor pelo sertão. As pessoas não importando quem fossem diziam sobre tudo com muita convicção...
- Teófilo, meu filho, por que você não tem uma namorada? O mundo está cheio de moças bonitas. Esta era uma pergunta que sua mãe insistia em fazer quando o via daquele jeito.
- Ah, mãe, pra que casar e ter filhos num mundo desses? Deixa pra lá! Teófilo entrou em seu quarto, fechou a porta, ligou o rádio e se pôs a ouvir o noticiário das seis. O âncora do programa dizia: “Hoje, em Aracaju, choveu o dia todo, alguns morros deslizaram, e algumas casas desabaram”. “Sobe para dez, o número de mortos na grande Aracaju”. O rádio prosseguia o relato das tragédias locais enquanto Teófilo adormecia na cama.
O dia na Vila de Campos acordou cinzento; uma frente fria vinda do sul cobriu o sertão de nuvens carregadas. Teófilo se levantou da cama e foi direto para a cozinha onde estavam seu pai e sua mãe.
- Ontem sonhei que o mundo estava cheio de bocas. E as bocas falavam sem parar, cada uma segundo seu mundo.
- Meu filho você está bem?
- Estou pai. Seu José estava com medo que seu filho estivesse a delirar.
- Então, a vida continua. Precisamos esquecer as coisas tristes e segui em frente.
- Mas, pra onde pai?
- Ora, Teófilo, fazer o que todos fazem: Trabalhar, casar, ter filhos.
- Pai, filho num mundo cheio de violência não é uma boa ideia. A vida continua pra mim, mas, sem filhos.
Enquanto Teófilo saía de casa rumo à marcenaria, seu José e dona Maria conversavam sobre ele:
- Mulher, o rapaz ficou caído com o roubo daquela dona.
- Num foi homem. Coitado!
Teófilo seguia calmamente para o seu trabalho. Ele gostava do que fazia, dá forma a madeira era sua especialidade; o povo dizia que Teófilo era um mestre em sua arte, ele era o melhor marceneiro da região. Próximo ao antigo Parque dos Missionários, uma moto surge de surpresa em alta velocidade assustando o moço distraído, Teófilo tropeça e cai no massapê de Campos. A pancada da queda o tira dos sentidos, e o povo que passava pensou que o rapaz estava morto.
- Ali num é o filho de Dores? Será que ele morreu?
- Deve ter sido. Vamos ver! O rapaz da moto tentou socorre-lo, mas, nada conseguiu. A situação estava ficando preta, Teófilo estava inconsciente. Chamaram uma ambulância e levaram o pobre marceneiro para o hospital local. Logo uma multidão de curiosos se formou defronte o prédio do hospital. O povo queria saber o que ocorrera com o filho de José da Silva e dona Dores.
- Estava drogado?
- Sei não, mas, o povo diz que ele andava meio estranho.
- Num é nada disso. É o rapaz que não gosta da fruta mulher e está em crise de consciência.
- Deixa disso, Alfredo, eita, que boca!
- Bem, é a boca do povo que diz. Respondeu a crítica o vendedor de chinelos de couro na feira municipal. Enquanto o povo fazia suas conjecturas, entram na sala de espera do hospital o pai e a mãe do rapaz.
- Olha, mulher, dona das Dores como está, coitada!
- E seu José? Coitado!
O casal queria saber de seu filho, Mas, nada entendeu do diagnóstico do médico plantonista: “Seu filho teve uma queda glicêmica muito acentuada e precisa de alguns minutos para voltar a si”. “E isso mata, doutor?” “Não, exceto, se ela estiver associada ao um pâncreas muito debilitado”. “Então, doutor, pelo o Cristo, ajude Teófilo!” O casal ficou na sala de espera, e do lado de fora a multidão aguardava mais notícias para atualizar a prosa do dia. Em Campos, o povo é muito preocupado com a vida dos outros.
O céu de Campos passou de cinzento para escuro, e com as nuvens escuras vieram raios e trovões, contudo, nada disso dissipou as pessoas à porta do hospital. Os primeiros pingos caíram muito timidamente, depois, veio a tempestade, e ela apavorou a Campos aquele dia. Nunca se viu uma trovoada daquela. Todo mundo foi se esconder em sua casa e logo esqueceram o rapaz do hospital. Teófilo descansava no leito 07 da enfermaria do Hospital de Caridade de Campos.
- Teófilo, acorde!
- Quem é?
- Sou eu.
- Quem? Uma boca muito bem cuidada falava com o jovem marceneiro.
- Eu. Teófilo levantou a cabeça em busca de uma pessoa e viu apenas uma boca.
- Mas que diabo é isso? Uma boca?
- Sim, eu sou uma boca e você também. Levante-se e olhe-se no espelho! O rapaz se ergueu da cama e foi em direção ao banheiro. Olhando-se no espelho, Teófilo viu apenas a imagem de sua boca. A boca que falava com ele disse com certa alegria: “Bem-vindo ao mundo das bocas”.
O mundo das bocas não tinha cor, cheiro, vento, ou sol. Era um mundo escuro, turvo, e as coisas desse mundo nunca eram o que pareciam ser. Um cavalo podia, em questão de segundos, ser uma pessoa, ou um objeto, um ser humano, tudo dependia do que as bocas diziam. A boca amiga acompanhou Teófilo até a porta do Hospital: “Tenha um bom dia amigo!” Disse a boca amiga. Teófilo sorriu para a boca e ela sorriu para ele. O marceneiro de Campos caminha pela Avenida João Alves Filho em busca do caminho de volta ao trabalho. Chegando a primeira esquina ainda avistando o hospital havia um carro de frutas. Uma boca muito grande e silenciosa velava aquele estabelecimento comercial ambulante.
- Bom dia moço!
- Bom dia amigo. Respondeu Teófilo.
- Sua pessoa num quer uma fruta não? Perguntou a boca mostrando os dentes.
- Não. Na verdade, Teófilo queria chegar ao trabalho sem mais demora. Contudo, a boca insistiu:
- Uma laranja! Um abacaxi! Que tal?
- Não moço. Estou com pressa mesmo. A boca fechou os cantos e disse apertada: “Mão de figa”. Alguns passos adiante Teófilo olha para trás e vê o carro de frutas se transformar em um balcão de banco cheio de bocas aflitas. As bocas queriam a todo custo se livrarem de suas dívidas:
“Parcele, por favor!”
“Assim não dá pra mim”
“Lamento, mas, vamos empenhorar sua casa”. Muitas bocas saíram fechadas do lugar, outras saíram ainda mais desconsoladas. Essa imagem muito entristeceu o filho de Campos. Teófilo procura olhar-se no espelho de um carro azul estacionado do lado direito da avenida. O espelho refletia a imagem de sua boca. Para ele, não havia dúvidas que algo muito estranho estava acontecendo.
Embora triste com o que via Teófilo seguiu a Avenida João Alves. Esta estava cheia de bocas sentadas nas calçadas. Muitas coisas as bocas diziam, mas, nenhuma boca assumia a responsabilidade. Na verdade, as bocas sentiam a compulsão para dizer, sem, contudo, verem a consequência de seus ditos. Uma boca miúda aborda o marceneiro e lhe pergunta sobre seu estado:
- Moço está melhor?
- Sim.
- Moço, é verdade que você desistiu de viver?
- Não, em hipótese alguma. Amo a vida e quero continuar. Apenas não acredito mais na bondade humana.
- O que aconteceu com aquela senhora foi um caso isolado. E ela já estava mais pra lá de que pra cá.
- Não diga isso, pois, a idade da mulher não justifica a violência contra ela. Todos tem o direito à vida. A boca miúda deu uma risada com a expressão “direito a vida”.
- Moço, cá em Campos, as pessoas estão mortas vivas. Elas mal conseguem dizer o que pensam, e quando elas dizem alguma coisa, a coisa é um dito de outro o qual elas nem sabem por que o disseram. As bocas falam porque as palavras são doces ao seu paladar.
- Como assim, boca miúda; posso chamar-lhe assim?
- Sim, pode. Se sua pessoa não estiver apressada eu te levarei a um lugar e você entenderá o mundo das bocas. Teófilo estava atrasado para o trabalho, mas, devido à insistência da boca miúda, ele decidiu acompanhar a boquinha. Os dois seguiram juntos até a Avenida Sete de junho, a mais importante da cidade. Na altura do estabelecimento comercial de Zé Bacateiro, a sorveteria mais conhecida da cidade, eles descem pelo esgoto municipal.
Os esgotos de Campos formavam outra cidade debaixo da terra onde as leis eram as mesmas da cidade de cima, a diferença era que na cidade subterrânea o dito parecia mais autentico. As pessoas eram mais transparentes, e a escuridão parecia ter mais luz uma vez comparada a opacidade da cidade de cima. As bocas se sentiam à vontade para dizer o que pensavam. A boca miúda não saía de perto de Teófilo que ao caminhar pelos esgotos de Campos vivia sensações jamais experimentadas em toda sua vida. Tobias Barreto se mostrava despida ante seus olhos pela primeira vez. Teófilo segue calmamente até defronte o supermercado principal da cidade. A concentração de bocas nesse local era muito grande. Havia bocas de todos os tipos. As primeiras que estavam à porta do estabelecimento, eram as bocas da periferia que ficavam ali para mendigarem alguma coisa ou oferecerem algum serviço em troca de alguns trocados. Uma boca mal cuidada, com a dentição podre, inicia uma série de enunciações:
- Minha mãe está passando mal em casa e não tenho dinheiro para lhe comprar remédios, me ajude, por favor! Uma boca de classe média cuja dona tinha seu carrinho cheio de mantimentos lhe responde:
- Ah, meu filho me perdoe, não tenho trocados. Esse diálogo cotidiano soava na cidade subterrânea da seguinte maneira:
“Eu vou passar a perna nessa coroa abestada”.
“Vá se catar perdedor”.
Teófilo, ora ria, ora chorava com o que ouvia das bocas de baixo. A boquinha decide mostrar mais coisas para o grande marceneiro de Campos.
- Teófilo, vamos mais para frente, para onde as bocas grandes se encontram para discutirem Campos.
- Ah, sim, seria bem interessante. Os dois desceram a Avenida Sete até chegarem ao alto comercio da cidade. Ali, as bocas pareciam unidas num só propósito – fazer o progresso da cidade. Comerciantes e políticos conversavam na via pública:
- Chico esse negócio de pagar imposto num dá certo. O governo num faz nada!
- Num é o que rapaz, eu só declaro um por cento das vendas, e pronto!
- Pois é, eu faço o mesmo. Não tenho nada a ver com esse governo. Suas vozes chegavam lá em baixo assim:
“Eu quero esse ano é dobrar o faturamento, mesmo que passe a perna no imposto”.
“Eu quero ficar mais rico, dana-se a sociedade”. Dois políticos proeminentes de Campos abrem diálogo sobre as acusações contra o prefeito local:
- Rapaz, assim não dá, a roubalheira está grande demais. O interlocutor coça as virilhas e continua olhando para o céu.
- Campos nunca viu isso, é demais! O outro interlocutor responde ao enunciado do primeiro:
- É mesmo, amigo, mas quando Zé de Tico for eleito, a coisa muda, eita, macho honesto!
As falas dos dois chegam ao esgoto assim:
“Campos e o Brasil sempre foram assaltados, tomara que chegue nossa vez”.
“Mas quando chegar a nossa vez, vamos descontar o atrasado”. Teófilo, ora via, ora se recusava a ver as coisas do submundo. Contudo, o desejo pela verdade era maior. Teófilo decide perguntar a boquinha sobre os fatos.
- Minha cara boca, será sempre assim?
- Em vossa história, posso dizer que sim. A pobreza e a miséria não é um acidente. A potência das duas é a má gestão pública e o desvio da coisa pública historicamente consagrado. Olhe para os campos ao seu redor, eles destilam leite e mel, o sertão é viável.
- Mas, seu boca, não tem homens no sertão?
- O problema do sertão não é a falta de homens, e sim, de discursos coerentes com nossa realidade. O sertão é tratado como se não fosse um bioma com peculiaridades só suas. O sertão precisa de novas bocas que digam o que de fato deve ser dito, pois, o subterrâneo ressoa as contradições. Ademais, o homem político do sertão aprendeu que a coisa pública é privada. O privado e o público se misturaram nas mentalidades locais, e assim, virou “coisa nostra”. Teófilo chorou amargamente diante da boca amiga. E esta o confortou: “Amigo, não chore, pois, a terra produz novidade o ano todo, assim como nascem espinheiros, também nascem árvores frutíferas. O sertão é isso, um movimento constante”. Teófilo seguiu seu caminho para mais profundo no subterrâneo de Campos, a boca amiga lhe pediu desculpas dizendo-lhe que não podia mais continuar a viagem.
Onde hoje é a Praça do Cruzeiro, Teófilo percebeu uma grande quantidade de bocas; as bocas estavam eufóricas, pois, discutiam sobre o carnaval, ou o Carnatobias.
- Olha Rubenita, nesse carnaval, eu vou arrasar!
- Mulher, você merece toda a felicidade do mundo. Vá mesmo, pois, dizem que esse ano a coisa pega! Uma boca que trabalhava numa repartição pública entrou na conversa.
- Sabe pessoal, eu acho que nós não precisamos de carnaval. A cidade está mesmo é necessitada de educação. Teófilo ouvia a conversa do jeito em que ela se apresentava nos subterrâneos, ou seja, sua verdade velada atrás da mascara social. E isso o fazia sentir náuseas com muita frequência. A ânsia de vômito do rapaz tornou-se tão forte que ele desmaiou. No chão do subterrâneo de Campos Teófilo se encontra com um negro que carregava um rosário na mão:
- Meu filho eu vim por causa de tua saúde. Tens vomitado e perdido muito fluido, estou preocupado contigo. O velho era meigo e manso e suas palavras eram sabias e davam paz.
- Quem é você?
- Sou um arquétipo da humanidade.
- O que é isso?
- É que minha humilde pessoa está em vós todos.
- Como assim?
- Quando vós sonhais com o bem, vós fazeis uso de vossos arquétipos milenares. Existem diferentes padrões para organizar vossos pensamentos. Este velho é um deles.
- E quando as pessoas sonham com o mal?
- Existem formas padrões para tudo, inclusive para o mal. Vosso bicho ainda precisa de domador.
- Como assim, meu velho?
- Disseste bem ao chamar-me de velho, pois, eu sou tão antigo quanto vossa história. Sonhais há muito tempo.
- Eu não entendo sua pessoa.
- Eu vim porque julgais o mundo e te esquecestes de que tu és parte dele; um pequeno microcosmo. Aquilo que vês no outro também está em ti. De forma súbita, Teófilo passou a ver suas contradições.
Era uma tarde de terça feira, dia de Ogun. Teófilo caminhava de volta do trabalho pelas dezessete horas quando um carro de luxo o para, dentro do veiculo estava uma senhora casada. A mulher era linda e pedia informações sobre o endereço de uma residência. A conversa entre os dois tomou, de forma inesperada, outro rumo. Teófilo teve um caso amoroso por três meses com a senhora de um comerciante muito conhecido em Campos. O rapaz havia esquecido isso, mas, o subterrâneo de Campos revela os mais escuros segredos. Ao se deparar com sua realidade, o jovem marceneiro busca se desculpar.
- Foi ela, senhor, quem se jogou. E eu sou homem.
- Sua pessoa compactuou com tudo. Os dois cometeram o mesmo erro.
- Mas, se ela não tivesse começado nada teria acontecido.
- Desde Adão que o outro leva a culpa. O homem de barro é um arquétipo de vossa fragilidade. Contudo, o barro é muito fácil de ser moldado de novo, você não acha?
- Olha moço, eu não entendo muito o que dizes.
- Os homens fogem da culpa como o diabo foge da cruz.
- Ah, sei. Mas, insisto: A senhora da sociedade recebeu o que pediu.
- Continue andando por esses subterrâneos, quem sabe a uma quadra adiante você se encontre. O velho pediu licença e saiu da presença do marceneiro. O seu rastro no chão enlameado dos tuneis deixou pegadas fluorescentes.
Agora Teófilo estava só naquele mundo debaixo do chão de Campos. Ele ouvia as bocas eufóricas falarem sobre diversas coisas. Uma boca muito grande não parava de reclamar da vida. Para ela nada bastava. Outra boca se queixava da solidão, mas, não conseguia se doar a ninguém. Teófilo tenta conforta-la, mas, sem sucesso, a boca não conseguia ouvi-lo. Perto de um banco Teófilo se encontra com duas bocas fazendo planos para o casamento.
- Amor, eu estou ansiosa para dividirmos o mesmo espaço.
- E eu também querida. Mas precisamos ajustar algumas coisas.
- Querido, que tal nós fazermos um empréstimo para a nova mobília? Disseram-me que aqui os juros são bem em conta. No subterrâneo, Teófilo ouvia a conversa de forma diferente. O casal não tinha certeza se o amor dos dois era o bastante para uma relação mais íntima. Ademais, a moça, como muitas filhas do sertão queria sair de casa, ela não suportava mais a castração infringida por seus pais. Já o rapaz, queria mesmo era continuar solteiro, a ideia de casamento foi apenas uma desculpa para conseguir a mulher de suas fantasias eróticas. A voz do moço ressoava nos subterrâneos dessa forma: “E agora como vou sair dessa?” Teófilo sabia que o amor existia e que muitos casais se uniam inspirados pelo autentico sentimento de amor, mas, os porões do subterrâneo eram implacáveis, nada passava em branco. Mais adiante, bem perto de uma igreja, Teófilo para e escuta as bocas religiosas:
- Gente! Gente! Gritava uma boca afeminada, mas, muito religiosa.
- Sim Arcanjo! O que foi dessa vez?
- Nosso novo padre é lindo!
- Eh, desta vez as mulheres da paróquia vão sofrer fortes tentações.
- E os meninos também! Não se esqueça! A conversa nos subterrâneos não foi traduzida, parece que o que disseram lá em cima ressoava do mesmo jeito embaixo. Um grupo de Calvinistas conversava baixinho:
- Precisamos converter Campos e o Brasil à fé verdadeira.
- É mesmo seu Lutero de Souza, esse país está entregue a sensualidade.
- Nem diga, quanto mais passa o tempo, mais os costumes se parecem com os de Babilônia.
- Olha, meu caro Lutero de Souza, o Brasil será de Cristo! As bocas serraram os dentes como se tivessem cheirado cada uma, cinco carreiras do pó maldito. Seus dentes trincaram uns nos outros tamanha foi a força que as mandíbulas fizeram. A conversa dos religiosos chegou aos subterrâneos assim: “Queremos o poder político do Brasil custe o que custar”.
Teófilo ao ver e ouvir o mundo subterrâneo das bocas teve náuseas e ânsias de vomito. O suco gástrico de seu estomago produzia uma acidez que lhe saia pelas ventas. Definitivamente, Teófilo estava exposto ao adoecimento por emoções fortes. Uma criança, ou melhor, sua boca sem dentes e de gengivas inchadas, se aproxima do mestre da marcenaria de Campos: “Minha mãe está sem leite no peito, moço, mas que fome!” Muitas crianças eram filhos sem pais, bocas desesperançadas e espalhadas pelo sertão. Dizem que o sertão é alvo dos exploradores de corpos, estes são os que ganham dinheiro agenciando a prostituição. Agora, não havia mais limites para Teófilo; as visões seriam muito mais pesadas. “Teófilo!” A voz saía das brechas das paredes do subterrâneo. A voz dizia: “Dancem todos, se divirtam todos!” “It’s a wonderful world; imagine! No war, no pain, every men marching together!” Teófilo acreditou nas palavras das bocas das brechas e sorriu por cinco minutos. Depois, ele tomou uma pílula que a boquinha lhe havia dado. A pílula fez efeito em 30 minutos, em seguida, Teófilo estava de volta à parte de cima da cidade.
- Teo! Oh, Teo! Dona das Dores chamava por seu filho com insistência. Enquanto isso, seu da Silva conversava com o enfermeiro Tomás. Das Dores insistia:
- Teófilo, menino, ande, vamos! O mancebo com um quarto de século abre os olhos e depois a boca.
- Mãe! Mãe e filho se abraçam na enfermaria da Casa de Caridade de Campos. Finalmente, das Dores tinha seu filho de volta, e a marcenaria de seu Tadeu seu funcionário de ouro. Teófilo ficou calado por muito tempo. Nada disse do que viu, e nada fez para mudar nada. Teófilo caminhou para a marcenaria durante longos vinte anos. Quando ele fez dinheiro e colocou sua oficina, Campos havia se transformado em uma cidade de pequeno/médio porte, ou seja, uns setenta mil habitantes. O homem da barraca de frutas estava no mesmo ponto. As pessoas faziam e diziam as mesmas coisas. Os políticos falavam de seu amor pelo sertão. As pessoas não importando quem fossem diziam sobre tudo com muita convicção...
O SUJEITO ENTRE O SINAL E O SIGNO
Por
Roosevelt Vieira Leite[i]
Meu amigo Souza,
Estivemos recentemente
em Aracaju e pudemos discutir um pouco sobre a diferença entre a sinalização da
realidade e a sua significação. Eu acredito que nossa conversa deva ter sido
muito edificante para nós. Parece que os enunciados de nossas proposições
despertaram em nós outros sentidos que, por sua vez, produziram mais sentidos e
significações sobre a educação. É sobre essas coisas que minha humilde pessoa
deseja compartilhar com o nobre mestre das Ciências Sociais.
Sua pessoa é
conhecedora de nossas angústias na cadeira de Pedagogo da escola pública do
sertão sergipano. Juntos nós produzimos dois artigos sobre o uso da estética
musical “brega” em sala de aula com o intuito de melhorar a leitura e a
produção textual de nossos educandos. Utilizamos, na época, os textos de Freire
e a teoria da linguagem de Bakhtin. Este segundo autor será o foco de nosso
modesto ensaio daqui pra frente. Contudo, acho pertinente, revisar uma ou duas
proposições de nosso trabalho de coautoria com sua ilustre pessoa.
Para nosso amado
Pedagogo Paulo Regulus Freire, o sujeito precisa de sua fala de volta para
poder negociar com o mundo. Freire viu seus alunos como sujeitos castrados de
seus discursos pela força da coerção social. Freire entendeu que isso parece um
monólogo imposto pela escola. Em Freire, meu caro Souza, assim como para
Althusser e Bourdie, a escola não é um espaço neutro, um espaço de discursos
simétricos, de espaçamentos equidistantes entre seus interlocutores. Para
Freire, a escola se tornou o lugar das contradições e, sobretudo, o lugar da
reprodução da realidade de dominação; onde os dois polos do fenômeno se
transmutam em opressor e oprimido antes, durante e depois de enunciarem.
Para Freire, o
carro-chefe da educação é a linguagem, principalmente, na versão saussuriana
chamada parole. O sujeito freireano é histórico porque produz linguagem,
cultura, constrói uma teoria para a sua práxis. O sujeito de Freire se
epifaniza pela fala ou pela escrita. Esses tipos de expressão do sujeito são os
mais poderosos já confeccionados pela natureza, e pode, segundo ele, provocar
uma revolução epistemológica no mundo. A revolução epistemológica do sujeito o
afirma no mundo como tal.
Freire faz uso de
termos que só podem ser entendidos no contexto de sua obra. Termos como “temas-geradores”,
“palavras-geradoras”, “palavra-mundo”, e outros. Mas, em momento algum, os
termos usados por nosso pedagogo apontam para a necessidade da sinalização da
realidade. Pois, mesmo sem ler Bakhtin, Freire não concebia o fenômeno da
sinalização entre falantes nativos de uma dada língua. A citação abaixo de “A
importância do ato de ler” ilustra muito bem o que pensamos:
[...],
processo que envolvia uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota
na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se
antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a
leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da
continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica
implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensaiar
escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado, até
gostosamente a reler momentos fundamentais de minha prática guardados na
memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha
adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão critica da importância do
ato de ler se veio em mim constituindo. (Freire, 1989, p. 9).
A proposta, no momento apresentada, de
Freire concorda plenamente com a proposição de Bakhtin sobre a diferença entre
o sinal linguístico e o signo linguístico.
[...],
Não, o essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma
utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua
significação numa enunciação particular. Em suma, trata-se de perceber seu
caráter de novidade e não somente sua conformidade à norma. Em outros termos, o
receptor, pertencente à mesma comunidade lingüística, também considera a forma
lingüística utilizada como um signo variável e flexível e não como um sinal
imutável e sempre idêntico a si mesmo. (Bakhtin, 2006, pg. 86)
Para os dois pensadores, a comunicação
linguística só ocorre quando os termos linguísticos não são sinais, ou seja,
uma entidade linguística fora de um contexto e de uma situação enunciativa
concreta, ou mera identificação da forma linguística. Para Freire o
descodificar exige a presença de outros textos, textos que fazem parte do
cotidiano, e da história do sujeito. A leitura para Freire não é uma primeira
leitura, mas, um fenômeno engendrado numa rede contextual de diversas leituras
precedentes.
O que me causa, no momento, pesar, meu
caro Souza, é trabalhar com crianças que não conseguem ler os signos de seu
próprio caderno. Que não conseguem dizer nada razoável sobre o menor fragmento
de texto escrito com seu próprio punho, e que eles inevitavelmente serão os
futuros educadores do sertão, reproduzindo a mesma lógica de produção de mão de
obra na educação. Pensando assim, meu amigo das letras, eu ponho a problemática
da leitura e da escrita para o futuro, para o questionamento que faremos amanhã
sobre as causas da deficiência da educação do sertão sergipano.
A sinalização do texto
lido é o fenômeno de decodificar o código linguístico, mas, sem acessá-lo como
sua língua mãe. Pasme meu caro Souza, mas, é isso que ocorre com nossos
pequenos leitores do sertão! Algo lhes aconteceu na escola que desenvolveu-se
neles a habilidade de decodificar sem entender, o que indica um problema de
valor cognitivo e de aprendizagem. Considero cognitivo porque vejo no
decodificar sem entender uma lacuna, uma falha no processo de cognição do real,
pois, apreendem suas formas, mas, não conseguem delas partir para a
metacognição, ou o signo como suporte do signo. A sinalização somente
identifica a forma da palavra, mas, sua ideia e suas relações com as outras
ficam a margem do processo.
O que provocou esse fenômeno certamente
não está no componente fisiológico do educando, pois, salvo as determinantes
naturais nossa espécie desenvolveu a capacidade de ler o mundo e nele escrever
sua história. Portanto, sua causa deve estar nas metodologias de ensino da
leitura e da escrita. Dizendo assim, meu caro Souza, é bem cedo que o sujeito
perde sua fala e, portanto, sua epifania no mundo, e o mais agravante, é na
escola que isso ocorre.
O fenômeno de sinalização, de
identificação da forma linguística em detrimento de seu signo impede que o
educando continue produzindo em seus estudos. O carro-chefe do aprendizado em
qualquer cultura é o se vernáculo, assim, sem o acesso ao signo linguístico com
habilidade, e racionalidade, o educando produzirá uma falsa formação
intelectual, falsa porque seu título, ou moeda de prestígio social não
corresponde ao seu verdadeiro acúmulo de conhecimento e capacidade de
expressá-los socialmente. Veja o que diz Bakhtin sobre a sinalização:
O
processo de descodificação (compreensão) não deve, em nenhum caso, ser
confundido com o processo de identificação. Trata-se de dois processos
profundamente distintos. O signo é descodificado; só o sinal é identificado. O
sinal é uma entidade de conteúdo imutável; ele não pode substituir nem
refletir, nem refratar nada; constitui apenas um instrumento técnico para
designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) ou este ou aquele
acontecimento (igualmente preciso e imutável)1. O sinal não pertence
ao domínio da ideologia; ele faz parte do mundo dos objetos técnicos, dos
instrumentos de produção no sentido amplo do termo. (Bakhtin, 2006, pg. 86)
A abordagem do real na dimensão da
identificação da forma linguística se assemelha a produção intelectual da
chamada massa amorfa – Os “alienados”, aqueles que por motivos vários não
conseguem abstrair o fenômeno de suas aparências. Não digo com isso, meu caro
sociólogo da cultura, que a educação fora da escola, ou informal, não possa
desenvolver encéfalos que produzam leitura consciente de mundo, mas,
considerando a importância da educação na história humana, nesse ensaio,
coloquemos nossas conjecturas dentro do ambiente escolar.
Caminhando na contramão da sinalização,
muito comum a estudantes de línguas estrangeiras segue a significação do real. Esta
depende da palavra signo, ou seja, algo que nos remeta aos “sentidos” presentes
no mundo. Segundo Dorne, em um de seus trabalhos – “DE SINAL A SIGNO: A
“PALAVRA” (DISCURSO) EM BAKHTIN”, o termo ‘palavra’ em Bakhtin comporta dois
sentidos: Discurso e palavra (vocábulo).
[...]
conforme Paulo Rogério Stella (2005) em “Palavra”. Para o autor, o vocábulo
sofre dificuldade de conceitualização por dois motivos: problemas de tradução e
por estar disperso e construído ao decorrer da obra de Bakhtin. Stella (2005) explica que, em decorrência dos
textos serem traduzidos numa ordem diversa da produção do Círculo, determinados
termos diferem de um livro para o outro, seja pelas escolhas do tradutor ou
pelo público para o qual a publicação se dirige. [...]. Dessa forma, segundo
Stella (2005), o vocábulo “palavra” possui duplo significado em russo: Pode ser
empregado tanto como correspondente direto do termo “palavra” no português,
como do termo “discurso”. (Dorne, 2009, p.1)
Essa ambiguidade do termo palavra em
russo vem a casar muito bem com a totalidade do pensamento do mestre de Praga.
Para ele, a palavra é uma unidade ideológica, e os homens a usam em situações de
enunciações concretas para expressarem suas subjetividades, portanto, é a
palavra a maior via da epifania do sujeito no mundo. Isso torna o seu domínio
não apenas um recurso psicológico e linguístico provido pela natureza, mas, uma
ferramenta política de rupturas e mudanças sociais.
É
devido a esse papel excepcional de instrumento da consciência que a palavra
funciona como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica, seja
ela qual for. A palavra acompanha e comenta todo ato ideoló- gico. Os processos
de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (um quadro, uma peça musical,
um ritual ou um comportamento humano) não podem operar sem a participação do discurso
interior. Todas as manifestações da criação ideológica – todos os signos
não-verbais – banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem
totalmente separadas dele. (Bakhtin, 2006, 36)
A
citação acima nos põe um valor ainda maior da leitura para a formação
psicológica e intelectual do sujeito. A leitura faz o encéfalo trabalhar para
decodificar e compreender o código, é, portanto, um processo de desconstrução
do real. A leitura deve ser compreendida como um processo cognitivo que
transcende a dimensão do texto linguístico. Ler para Feire é muito mais que
isso; é ler o mundo.
na
verdade, aquele mundo especial se dava a mim, como o mundo de minha atividade
perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras. Os
textos, as palavras, as letras daquele contexto – em cuja percepção eu
experimentava e, quando mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber –
se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu
ia aprendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais
velhos e com meus pais. (Freire, 1989, p.9)
É a faculdade perceptiva e critica da
realidade que o ato de ler deve produzir no leitor. Eis aí sua importância para
produção do conhecimento humano! O processo inverso é a escrita. A escrita é a
arte de enunciar no texto. É trabalhar a estrutura, ou as estruturas desse
processo enunciativo. O discurso escrito é tão poderoso quanto o oral. Em muitos casos, muito mais poderoso. O ato
de escrever é um ato de codificar. Meu caro Souza, vejo a escrita e a leitura
como processos complementares e interdependentes. Um pressupõe o outro. Dessa
forma, podemos ver que o texto escrito está para uma leitura, uma resposta aos
seus enunciados. A leitura e a escrita são processos compartilhados. Estamos
lendo com o mundo e sendo lidos por ele.
daquele
contexto – o do meu mundo imediato – fazia parte, por outro lado, o universo da
linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus
receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu
mundo imediato e de cuja existência eu não podia sequer suspeitar. (Freire,
1989, p.10)
Meu caro Souza até aqui ficou posto a
importância do ato de ler e grafar o real, ademais, nós já mostramos o que
entendemos por sinalização e significação. O segundo termo é fundamental, não
apenas, para a o expressar do sujeito no mundo das formas, mas, para sua
própria constituição enquanto processo ontogênico. Assim como para Vygotsky o
materialismo de Bakhtin coloca o sujeito como filho da palavra. Qual o material
que constitui a substância do sujeito? O material constitutivo do sujeito é
semiótico, e em seu núcleo está o vocábulo, o gene do discurso dotado de
sentido, ou ideia, ou ideologia.
Que
tipo de realidade pertence ao psiquismo subjetivo? A realidade do psiquismo
interior é a do signo. Sem material semiótico, não se pode falar em psiquismo.
Pode-se falar de processos fisiológicos, de processos do sistema nervoso, mas
não de processo do psiquismo subjetivo, uma vez que ele é um traço particular
do ser, radicalmente diferente, tanto dos processos fisiológicos que se
desenrolam no organismo, quanto da realidade exterior ao organismo, realidade à
qual o psiquismo reage e que ele reflete, de uma maneira ou de outra. Por
natureza, o psiquismo subjetivo localiza-se no limite do organismo e do mundo
exterior, vamos dizer, na fronteira dessas duas esferas da realidade. É nessa
região limítrofe que se dá o encontro entre o organismo e o mundo exterior, mas
este encontro não é físico: o organismo e o mundo encontram-se no signo. A
atividade psíquica constitui a expressão semiótica do contato entre o organismo
e o meio exterior. Eis porque o psiquismo interior não deve ser analisado como
uma coisa; ele não pode ser compreendido e analisado senão como um signo.
(Bakhtin, 2006, p.48)
O que Bakhtin diz, meu caro Souza, nessa
singela citação de sua Filosofia da Linguagem é que o signo existe apenas como
estrutura constitutiva da consciência individual e coletiva (totalidade das
consciências). Somos o social internalizado, a materialização de suas
ideologias. Será que pensando assim a educação dialogista tende a uma resposta
mecânica ao meio? Certamente que não! O que sustenta nossa tese é a relativa
autonomia do sujeito, pois, só interessa educar um ser que pode, mesmo muito
relativamente, reescrever sua história; esse é um sujeito subversivo, um
sujeito Freireano, o sujeito que rompe com a epistemologia vigente e
re-significa seu real, e faz escolhas.
O sujeito que apresentamos aqui é aquele
que transita entre as dimensões do sinal da palavra - uma abordagem
instrumental e lexical, e o sujeito da significação - um permanente
conceitualizar o real. Dizer do real ou enuncia-lo; é poder dizer dele e para ele.
É o sujeito em erupção. Essa é a proposta de uma educação dialogista!
Considerar essas afirmações como lógica
válida é o mesmo que considerar o ato de ler um ato de construção do sujeito, é
dizer que o sujeito se constrói a cada leitura que efetua.
Para Bakhtin, o sujeito não é nem uma
amalgama do mundo externo, muito embora o reflita, nem o mundo interno,
orgânico, fisiológico. O sujeito, segundo ele, encontra-se na fronteira entre o
orgânico e o externo. O material constitutivo do psiquismo do sujeito é o
material semiótico, o signo, a palavra. Assim, as representações semióticas e
simbólicas do sujeito fazem a intermediação entre este e as estruturas sociais.
Tanto a superestrutura como a infraestrutura social está representada na
interioridade do sujeito. Fazer o sujeito ler o mundo é abrir vias para que
este se manifeste com mais potência transformadora.
Não
é tanto a pureza semiótica da palavra que nos interessa na relação em questão,
mas sua ubiquidade social. Tanto é verdade que a palavra penetra literalmente
em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base
ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter
político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios
ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.
É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas
as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não
tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos
estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas
acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir
uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma
forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases
transitórias mais íntimas mais efêmeras das mudanças sociais. (Bakhtin, 2006,
p.40)
Acredito que aqui, com a força dessa
citação fica de uma vez por todas clara a preciosidade de uma leitura
consciente da palavra, ou da palavra que é mundo e suas relações com a
construção dialética do sujeito Pós Moderno. Esse deve ser o foco de nossa ação
pedagógica!
Mas, afinal, o que faz uma criança
sinalizar no ato de ler em vez de significar? Qual a causa desse fenômeno? No
início desse ensaio a colocamos no reino das metodologias, e parece que é nele
que a potência desse fenômeno reside. No nosso sertão quando ensinamos uma
criança a ler separamos um processo interdependente como se ler e escrever não
“fossem farinha do mesmo saco”, desculpe a expressão. Dessa forma alienamos o
educando de seu contexto imediato, sua leitura não é a leitura de uma
palavra-mundo, ou de uma palavra conhecida e que pode ser grafada. A criança que
não associa uma palavra a sua realidade imediata usa palavras que não são de
seu mundo, portanto, um termo estrangeiro para ele.
Quando ensinamos uma criança a escrever no
sertão nos preocupamos com a morfologia da palavra em detrimento de seu sentido
para seu mundo imediato, a forma se torna uma entidade fraca na mente do
educando e logo fenece, pois, não tem lugar no seu psiquismo que aos poucos vai
se constituindo.
Quando ensinamos os filhos do sertão a
leitura, nos preocupamos em impor a forma sobre o sentido. A correção
linguística contempla a estrutura externa do texto, a norma em detrimento de
seu conteúdo ideológico imediato. Além do mais, o material usado para isso não
considera o sujeito em seu locus existencial – falamos para o sertão como se
este não tivesse suas peculiaridades próprias.
Quando ensinamos a leitura e a escrita
aos filhos do sertão invertemos o processo natural; erigimos o reinado da
langue (estruturalismo e o formalismo) em detrimento da parole (a dinâmica
linguística social). A língua embora código social não deve tomar o lugar das
situações enunciativas concretas (as falas, os dizeres, seus mitos, sonhos,
desejos). Está nelas o milagre da leitura e da escrita. O homem só aprende com
prazer aquilo que faz parte de seu mundo. Está nos enunciados de uma dada
comunidade o léxico de seus filhos.
Além dessas coisas cabe ressaltar que a
didática de nossas aulas objetiva com muita regularidade a resposta homogenia
de uma determinada turma, ou seja, considera-se que todos devem aprender numa
mesma velocidade o conteúdo proposto assim como foi planejado; o educador do
sertão trabalha com metas e o ser humano com muita frequência foge dessas
coisas. A resposta ao conhecimento é subjetiva, pois, o sujeito tem sua
história (hereditária, cultural, ontogênica) e autonomia.
Mas, meu caro sociólogo, até que ponto
podemos dizer que somos seres portadores de liberdade? Pois, sem esta, educar
se transforma num processo de aprisionamento do sujeito. Educar aves que não
podem voar é ensina-las a viver o cativeiro até o óbito. Educar é transformar
sujeitos livres, autônomos, sujeitos que podem voar, sonhar e construir um novo
mundo. A análise dos processos históricos humanos atesta que nossa espécie
experimenta a experiência de conservação do modelo e de rupturas dos mesmos. As
revoluções, as rupturas filosóficas, e epistemológicas nos dizem de um ser que
embora engaiolado num estrutura maior que ele, por meio do sonho, das
significações do real ele consegue evoluir para condições melhores de vida e de
existência social. O sujeito cartesiano é real? Até certo ponto. O sujeito
freudiano é real? Até certo ponto. Todos os olhares para o sujeito sempre nos darão
um pequeno fragmento dele. Não se pode negar que o sujeito epistêmico de
“Regras para direção do espírito” de Descartes é real. Para esse recorte do
mundo, o filósofo viu a imagem ideal de alguém que com diligência segue as
estradas do método científico. Quem duvidará que nós precisamos dizer do
fenômeno tudo que é ele e disso abstrair o que não é? Eu e o objeto somos
diferentes, embora ligados pelo olhar da admiração filosófica.
O sujeito freudiano se perde no
inconsciente, possui uma estrutura topográfica, mas, não pode se conhecer a si
mesmo, pois, este sempre estará submerso em meio as suas resistências e
recalques. É um sujeito que transita entre o ideal e o real de sua condição
humana. Será que alguém nunca viu em sua vida a veracidade das proposições
freudianas? Um sujeito que ora sabe e ora não sabe, um sujeito que ora tem um
núcleo bem definido, e ora transita por instancias topográficas do psiquismo
humano é no mínimo maravilhoso!
Meu caro Souza, o sujeito castrado de
Freud e o sujeito nuclear de Descartes me dizem da liberdade do ser. Observe
que no eixo diacrônico das transformações sociais o ser se desloca. De
experiência, em experiência, de aprendizado e aprendizado, de despertar de
consciências, a despertar de novas consciências caminha o ser rumo ao
progresso![ii]
Meu caro Souza, nossa história atesta
que a ignorância é uma condição passageira dos homens. Assim, o deslocamento do
sujeito, ou melhor, o deslocamento epistemológico do sujeito é sua liberdade. O
sujeito possui uma liberdade relativa às condições materiais de vida e as
condições fisiológicas. Em nosso locus existêncial somos escravos e príncipes.
Chegando ao final desse breve ensaio me
apresenta a seguinte pergunta: Sinalizar alcança apenas o ato de ler textos
escritos? Meu caro Souza a relação professor/aluno é, sobretudo, uma relação
linguística, portanto, semiótica. Aprender alguma coisa é fazer uma leitura
semiótica dessa coisa. Nossos alunos das séries posteriores do ensino
fundamental e médio pecam novamente na compreensão do conteúdo colocado pelo
educador porque não conseguem fazer uma leitura do mesmo. A fragilidade da
leitura textual incide sobre a leitura do
texto oral do mestre. Esse lhe parece estranho, pois, em seu encéfalo não há
termos remetentes. O conteúdo ensinado
se apresenta num primeiro momento para o educando como um sinal linguístico.
Uma forma relacionada a alguma coisa. Quantas vezes a pergunta do mestre o
educando responde: “Eu sei o que é, mas, não sei dizer”. Ele sente uma intuição
como se estivesse diante de uma língua estrangeira, mas, não consegue enunciar
sobre. O discurso do educador foi recebido como um sinal para o educando.
Então, qual a causa desse segundo fenômeno?
Aprender a ler é um processo permanente,
ininterrupto. Ler o mundo é um ato contínuo. A continuidade da leitura produz
letramento, ou armazenamento de sentidos linguísticos no encéfalo (essas formas
linguísticas não são sinais), sem isso não conseguimos relacionar os novos
sentidos com os sentidos já existentes que lhe são afins. Portanto, a carência
de letramento potencializa ainda mais a sinalização nas escolas e é a nosso ver
um dos maiores problemas da educação superior do Brasil. Paz e Luz!
Referências das citações:
Freire, Paulo. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São
Paulo, Editora Cortez, 1989.
Bakhtin, Mikhail. Filosofia da Linguagem. HUCITEC. 23oedição. 2006.
Dorne[iii]
,Vinícius Durval. DE SINAL A SIGNO: A
“PALAVRA” (DISCURSO) EM BAKHTIN. http://www.fecilcam.br/nupem/anais_iv_epct/PDF/linguistica_letras_artes/06_DORNE.pdf.
[i]
Roosevelt Vieira Leite é Graduado em Teologia pelo Seminário Teológico
Evangélico do Nordeste. Graduado em Pedagogia pela Universidade estadual Vale
do Acaraú. Apresentou dois artigos sobre educação. O primeiro na UFBA-Ba, e o
segundo na UFS-se.
[ii]
Progresso, máxima de Allan Kardec em suas obras. O ser caminha rumo ao
progresso, ou evolução.
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