sexta-feira, 14 de junho de 2013

DO OUTRO



Cartas Pedagógicas


O outro está em algum lugar fora de mim. O outro não sou eu. Contudo compartilhamos das mesmas ideologias que nos moldam, nos constroem, nos direcionam a um dado objeto. O objeto do outro pode ser diferente do meu, mas, a força que o impele na direção do ato é a mesma presente em mim – a vontade. No princípio era o instinto que me arrastava sobre a crosta terrestre, agora são os instintos modificados pela força psíquica que me insere na teia das relações discursivas e semióticas. De alguma forma o abstrato se torna concreto e o concreto se torna abstrato, uma ideia na minha mente. Houve um enervamento da ideia que se materializa pela força de minha vontade transformada em ação. A minha ação na forma de trabalho mudou a natureza na sua forma, entretanto, a natureza modificada permanece natureza – não há como descriar[1] a natureza, pois, o homem que é a natureza a manipula pelo trabalho dando-lhe uma nova organização, mas, os átomos construtores da matéria permanecem. A natureza é matéria.

O outro construído num sistema organizado e igual ao meu tende a olhar para mim como o outro que se apresenta. Assim eu sou o outro em um dado momento para alguém. Essa relação que individualiza os sujeitos foi fundamental para que nossa espécie construísse a civilização. Ela foi o motivo do fundamento de códigos para que a relação entre os sujeitos fosse organizada e regulada. Isso garantiu a continuação do homo sapiens até os dias atuais.

Mas, a civilização não desanimalizou o homem, ou, os sujeitos; ele traz consigo, em suas células, a lembrança do animal instintual – aquele onde a Id reina. A construção do sujeito social não destruiu o sujeito animal. Digo então, que o real enquanto sentido é um sonho, uma história, que os sujeitos enquanto atores atuam e realizam o seu papel possível. Digo possível, porque o real é o animal puro e concreto; sua existência enquanto acidente está sujeita as contigencialidades. O homem sabe disso, e pensa que seu animal é pré – histórico. Mas que engano! O outro, quase sempre é o algoz de seu irmão, se isso não fosse real não precisaríamos do Estado Organizado. O Estado nasce da necessidade de uma ordem entre os animais psiquificados. Ele é a força que tanto dá a vida como a tira em nome da Ordem Social.
O Estado funciona como o Outro muito mais forte do que Eu. O Estado exige do indivíduo a sujeição. Ser sujeito é estar em sujeição as regras impostas pelo Estado Organizado. Assim o Estado é inimigo da Id e amante do super ego. Se o outro e o eu não se reproduzissem pelas ideologias, a humanidade teria que recomeçar tudo de novo a cada geração. O que ocorre são mudanças de ideologias, mas, o método de sujeitar é o mesmo – A Educação – uma ferramenta de sujeição ao Estado. Devo acrescentar que o estado mesmo tendo sua função reguladora, apresenta as pulsões da Id como os seus cidadãos.
O pai, a mãe, um irmão mais velho é o outro agindo sobre mim. O outro que sanciona; que aprova; que cria uma natureza meritória. Para que haja uma relação pacífica entre os sujeitos criaram o merecimento ou o mérito. Só a nossa espécie merece alguma coisa. As demais vivem sem precisarem merecer nada, pois, a criação do Estado é a criação de uma pequena parte da natureza chamada de homon sapiens. O homo sapiens entendeu que a carniça, a colheita, a coleta, etc., precisava de uma ordem, um regulamento, pois, o outro se acha, na maioria dos casos, melhor de que seu irmão. O egoísmo é coisa nossa e do outro.

Educar, punir, castigar, recompensar são paradigmas fundantes do grande sonho chamado civilização. A relação entre o eu e o outro criou um mundo, embora natural, mas, constituído de valores, de representações simbólicas que muitas vezes não se sustentam diante do olhar atento da razão. Com todo respeito aos juristas, aos cientistas da justiça: “Existem leis que não são justas; são apenas legitimações da exploração de uma classe sobre a outra”. Há 500 anos atrás a sociedade achava justa e certa a escravidão negra. Os advogados, os juízos e os doutores da jurisprudência serviram de atores para que o sistema escravagista continuasse e tivesse legitimação legal, assim, podemos entender que o real ocorre num dado momento, como um sonho ou um pesadelo. “Quem pode me garantir que esse mundo é o que deve ser, ou, que essas ideologias são justas para todos?” Se indignar é um direito do homo sapiens.

Durante muito tempo meditei sobre as formas de dominação. E vi que elas se expressam em forma de múltiplas linguagens. Desde o olhar sisudo de meu pai, ou um sorriso de aprovação estamos em processo de sujeição às regras que nós não construímos, elas estão na lógica dos que nos antecederam. Falando como Paulo, o apostolo: “Que tenho a ver com isso?” Tudo! Nossa relação com o outro foi a gêneses do Estado como disse alhures, e é a possibilidade das rupturas e mudanças de paradigmas. A história nos diz muito bem sobre isso mesmo sendo ela amante das hegemonias dos grandes Estados. A dominação se torna natural porque o outro vive dentro de nossa casa. A criança percebe com o tempo que ela é ela e ele é ele que existe uma relação hierárquica no seio familiar – eis o começo da sujeição, ou construção do sujeito submisso; todavia, na família também existe o subversivo, a transgressão! Pode-se, então inferir que a vontade de dominar, e a condição de dominado são tão naturais como tudo que há na natureza. A democracia plena é um sonho, uma gravura em alguma parede da pré – história, a Id sempre resistirá à dominação do superego. Portanto, nossa verdadeira condição psíquica é a de neurose.

Tudo isso é natural! É uma espécie animal que se organizou e construiu no seio da natureza pura, uma natureza humanizada, mas, que ainda é natureza; pensar o mundo fora desse olhar, como disse minha pessoa em outros textos, foi um grande erro!

O distanciamento do homem da natureza o fez produzir um tipo de metafísica. A metafísica do humano super-humano que vive até sem comer como os irmãos da índia por acharem que a comida os torna pecaminosos. No campo das ciências, o distanciamento da natureza produziu técnicas e modelos de vida que em pouco tempo fez o homem um ser mais individualizado – “O outro particularizado” que dependente das técnicas e está distante das relações humanas concretas do dia- a- dia. A Pós – modernidade tem um grande abacaxi para descascar – ‘a desumanização[2] do homem sem torna-lo uma besta como antes fora’. A ciência se voltou muito mais para a realização do sonho das grandes corporações de que servir ao sujeito, a pessoa humana. Isso me diz que o outro quando diz do progresso, ele não está sendo totalmente consciente de seus enunciados – O progresso nunca foi para todos!

Quanto mais o homo sapiens se racionalizou, mais ele aprimorou seus modos de dominação. O fármaco, o narco, a mídia, a religião que resolve tudo. Os aparelhos de dominação raramente são percebidos pelo vulgo. O olhar do outro nunca sai de sobre mim. Eu sou seu objeto e ele o meu! Foi nessa relação de tensão, uma relação assimétrica, e de desigualdade que nossa psique foi formada. A educação do Brasil reproduz os modos de produção da época da colonização; para provar isso eu preciso falar sobre o olhar do outro no eixo diacrônico.

O que é a filosofia, a arte, a estética, a ética senão um olhar de alguém no seio da mãe natureza! O que o homem disse de si; o que o homem fez com o outro, o que os Estados fizeram a outros Estados durante séculos de civilização foi um olhar para o outro! Esse olhar nasceu do olhar para si. Olhar para o outro exige um olhar para si, pois, eu sou um pequeno fragmento do outro. Se vejo o outro é por que vejo a mim mesmo! Essa besta carnívora chamada homem é um lobo pronto a devorar o outro. Nossa história e nossos heróis nos contam da mortandade, da desgraça que no discurso histórico dos vencedores os responsáveis foram imortalizados. A história do homem é também um olhar sobre si. Nossa memória tem caráter seletivo; existe a valoração dos fatos históricos. A história que sabemos é a que “devemos saber”. A história de um povo ou de um determinado período de tempo é a narração dos vencedores. Por essa razão, a maior função do estudo da história é poder dizer dela como um discurso proferido por um agente com prestígio para dizer, e dizer na sua época.

O Brasil foi, e é o foco do olhar de Estados que criam discursos assimétricos para nossa sociedade. O primeiro foi o português, depois vieram os outros – a lógica ainda é a mesma! O Brasil, enquanto foco do olhar do outro, é uma quase – nação, mas, é muito mais uma grande mina de ouro a espera da extração de riquezas legitimada dentro e fora de nossas fronteiras. Para o mundo, ainda somos seres civilizando – um civilizando brasileiro! Coisificar essa terra foi preciso, assim como foi o civilizar o mestiço. É pena que tenha de dizer que a igreja foi e continua sendo a maior responsável pela inercia mental do povo[3]. A igreja tira os olhos do povo do concreto onde estão as contradições e o joga no mar das crenças onde a lei não pode ser testada. O discurso enquanto moral serve ao bem estar social, mas, a ideologia implícita em seus sintagmas; em suas crenças, e seus rituais formam a consciência entorpecida, infantilizada ou ingênua do fiel.

Nosso povo, gente passiva, e inerte, foi educado para isso; interiorizou o olhar do outro como sendo o seu. Agora a necessidade exógena é prioridade nacional. Todos acreditam que isso é real. É esse o limite de nossa existência; a possibilidade de nossas escolhas. Pensar assim é preciso, pois, o outro precisa que eu veja os seus interesses como sendo os meus. Esse foi um trabalho contínuo ao longo da história.

A lógica do meu discurso e do outro é a exploração. O meu instinto animal de comer carne fresca está mim. A Id sabe disso muito bem. Os discursos proferidos pelo sujeito sempre o defendem, salvo os do que se dissociaram da estrutura psíquica coletiva. Precisamos, então, conhecer o sujeito no implícito de seus enunciados. O outro diz de si como amigo. E eu me sinto amigo do outro. O implícito presente nos atos falhos do diálogo mostra que isso não é sempre verdade. Há em nós a tendência animal de criar uma realidade “cover”, ou mascara social. A história, embora necessária é a mascara do herói no rosto do vilão. Pensemos nos “cesares”, na expansão do Império Romano, e o processo de romanização do mundo, muitos dizem: “Mas que magnifico!” O cidadão romano falou no dito[4] do sujeito atual nesse enunciado. A expansão do Império Romano, e de todos os outros impérios nada mais foram de que a expressão da ganancia e egoísmo humano. Para alguém viver não é preciso um império!

O animal humano não nasce assim – um lobo. É fato que os instintos estão presentes. Mas, o maior responsável pela criação do sujeito egoísta é a malha discursiva de sua sociedade. A mente social é a interiorização dos valores de certa sociedade. É a dominação do outro sobre o sujeito. O signo linguístico é o gene que modifica o “homem natureza pura” em “homem natureza humanizada”. Esses dois tipos de homem estão em conflito permanente. Esse é o objeto da Psicanálise: “O conflito entre o ser e o devia ser”. O animal psiquificado tende a imitar os comportamentos de seu grupo. A grande massa humana entende ser certo o que uma minoria diz ser certo. Isso ocorre porque há uma diferença entre o ‘falar cotidiano’ e o ‘discurso enquanto representação de uma vontade imperiosa’. O consumismo da massa deixa essa assertiva muito clara. É aqui que o outro se torna ainda mais violento.

Uma das maiores verdade das ciências humanas é entender que o homem é um animal social e que as relações sociais dependem dos modos de produção. O capitalismo, por exemplo, esbarrará na falta de matéria prima. O planeta tem um limite. A sociedade que se inspira no capitalismo olha para o outro como uma possibilidade de bons negócios ou uma concorrência inevitável, ou um consumidor de bens, serviços, alimentos, etc;. A acumulação de capital fez o outro ser ainda mais complexo. O outro e o eu se encontram quando os interesses se afinam. As relações sociais tem sua gênese nas necessidades anteriores, quando o homo sapiens principiava seus primeiros passos. Contudo, o olhar entre os dois trará sempre um brilho de estranheza, pois, os grupos humanos se rivalizam desde os tempos primitivos.

Mais uma vez podemos por em dúvida a razão. A história escava o passado e quando faz isso cria uma escada no tempo onde os acontecimentos se desencadeiam. Esse procedimento nos revela os diferentes discursos da ciência e o que lá encontramos são linguagens e nelas diversas formas de expressão da racionalidade humana. A cadeia de pensamento coletivo por ser inconsciente não percebe a aridez de seu discurso no senso comum, contudo, esse árido discurso é quase uma coluna para a descoberta de uma grande verdade. O outro sempre tem a nos ensinar. A nossa cadeia de signos não está no encéfalo do individuo em sua totalidade, o sujeito tem um limite de representações da realidade e da capacidade de decodifica-la, e de interpreta-la, ou indo mais longe – torna-la parte de seu dicionário semântico e, sobretudo, de seu psiquismo. O individuo interioriza a língua de se contexto social e material. Não se pode entender o código linguístico de uma sociedade se não ouvirmos as suas diversas expressões, e sem levar em conta o tempo e o espaço onde ocorrem os enunciados. A diacronia de uma língua está intimamente relacionada às transformações materiais da sociedade. Encontramos aqui certo funcionalismo – a língua para um eixo diacrônico; o conjunto dos eixos nos dá uma visão mais totalitária da linguagem humana.

A fundação do signo fez o homem sentir-se Deus. O sagrado está verticalmente relacionado ao material, ao objetivo. A objetivação da realidade na mente do homo sapiens corresponde a significação, ou a representação do mundo que constitui a sua mente social. A interfase entre o simbólico e o orgânico encontra-se na natureza dos dois elementos que estão em relação. O processo de representar o mundo, o ato em si de pensar, e todas as sinapses relacionadas às representações são ligações eletroquímicas realizadas na máquina neurológica, portanto, o pensar e o pensamento possuem massa e gastam energia. A natureza criou diversas linguagens e uma delas é a língua humana, porem a totalidade de seus códigos não pertence a um único indivíduo. O léxico da língua num corte sincrônico está na totalidade dos seus falantes, assim, não podemos enunciar tudo, existe um limite de dizer que dura somente o momento da criação de mais uma palavra. O termo ‘língua’, nesse trabalho, é a “língua no momento concreto, no discurso, no diálogo, no texto, etc”. O outro interage comigo por meio de muitas linguagens, mas, é a língua a conecção mais perfeita criada pela natureza.

No entanto, a língua não é neutra, nem se expressa por mim ou pelo outro sem uma posição; na verdade quando enunciamos tomamos uma posição no espaço e no tempo. O eu e o outro se comunicam por meio de uma malha de signos constituídos historicamente e que se expressam no ato concreto da fala e dos enunciados escolhidos pelos interlocutores. A escolha é uma intenção; a intenção no mundo do discurso nos remete ao convencimento do eu ou do outro para que a estrutura material da realidade se reproduza naturalmente. Desta forma, a realidade sendo constituída de ideologias que mudam no eixo diacrônico é, de certa forma um par com as mudanças linguísticas da mesma, ou seja, assim como os meios de produção, e as relações materiais mudam na sociedade, a língua também muda as estruturas. Portanto, a realidade é uma estrutura que se reestrutura – um ser ‘estruturante’[5]; e esse mover dialético nunca cessará, exceto, se nossa espécie desaparecer do mundo.

Notas finais:
Foi olhando para o outro e este para mim que nossa espécie constituiu o tecido social e nele os códigos que fundaram a civilização. O outro foi tão necessário quanto eu, na verdade os dois se completam no olhar dialogista na forma do ‘eu-tu’. A humanidade só pode ser considerada na sua totalidade, e seu surgimento foi tão natural quanto as papoulas do jardim da casa de meu pai. O signo, o mito, os arquétipos foram surgindo a partir da relação entre o sujeito e o meio e o outro. A presença do eu-tu no mundo implica a presença de um terceiro elemento, o ele. As ações pedagógicas meu caro Souza devem considerar, em minha opinião, essas verdades. Um grande abraço!
          










   









[1] O termo descriar se refere a impossibilidade do homem de desfazer a matéria. O que ele pode pela ciência é transforma-la, contudo, a matéria permanece.
[2] Desumanizar nesse texto refere-se a um olhar para nós enquanto parte do ecossistema e que se o quebrarmos pereceremos.
[3] O termo povo não se refere a totalidade da sociedade brasileira, mas,  a massa acéfala.
[4] O termo dito refere-se ao hábito de falar sem pensar. O enunciado humano é contaminado de ditos.
[5] O termo estruturante significa no texto uma estrutura que não é cristalizada, inerte. A estrutura estruturante é viva e dinâmica, imprevisível como o humano.

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