O
SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO
“O
educando e o sentido”
Procurando
entender melhor o sujeito, e, principalmente, o sujeito educando, ou “aquele
que sofre a ação incisiva de discursos pedagógicos formadores de mentalidades e
construtores do senso de realidade legitimado pelas ciências e pelas sociedades”
que eu escrevo, meu caro Souza, estes rabiscos, desta feita, o foco está no
‘sujeito da enunciação’.
O
sujeito da enunciação é o mesmo sujeito da recepção. Os papeis são alternados
no transcorrer do dialogo ou na epifania de ambos. Contudo, o que os une é o
mesmo código, e a mesma realidade material. Pois, para que o circuito se
complete é necessário que os dois comunguem de uma mesma língua e que estejam
inseridos no mesmo contexto material. Não podemos, meu caro Souza, abrir mão do
fato de que as linguagens estão em constante relação com as condições
históricas e materiais da sociedade. O pensamento do sujeito é, portanto, em
grande parte, um constructo que reflete os modelos de produção e consumo
legitimados por uma sociedade num determinado tempo e espaço.
O
sintagma sujeito, no mundo da linguística foi usado pela primeira vez por
Benveniste. Parece que para o pensador Francês, o sujeito não é apenas portador
de um código, mas, é um enunciador, ou que o sujeito precisa dizer e o faz
enunciando a partir das estruturas de um código que lhe foi internalizado
durante o seu processo ontogênico.
Tanto
o enunciador como o receptor sofrem a coesão desse código que delimita sua
capacidade de expressão no mundo, e o instrumentaliza pela sua estrutura
estruturante e semiótica. O uso do código, portanto, não está amarrado ao seu
complexo lexical, mas, seu corpo semântico se transmuta pela necessidade
enunciativa. Assim, o sujeito diz por necessidade, e isso transcende a vontade
de dizer.
É
importante, meu caro Souza, observarmos que a necessidade de dizer pode ser
puramente instintual. O homem fala por hábito e quase sempre nem avalia o que
disse. Esse aspecto do enunciado deve ser estudado pelo campo da psicologia,
pois, nos ditos do sujeito devem estar os lampejos da atividade inconsciente
individual e coletiva. O sujeito que aqui se apresenta como foco, é apenas, o
sujeito educando que enuncia e recebe o enunciado.
O
sujeito educando está sobre o efeito do discurso da educação oficial. Logo cedo,
ele entra em crise, pois, os discursos que advém de sua casa não se harmonizam
com aqueles que ele encontra na escola. A realidade material de seu primeiro
lugar no mundo entra em conflito com a nova realidade apresentada. Nesse
contexto, o sujeito educando cessa a enunciação e entra em silêncio, ou, cria
admiração e vontade de enunciar, fazendo assim, o sujeito da enunciação se
integra a gigantesca malha enunciativa que constitui o fluido sociolinguístico
de nossa sociedade.
Mas,
qual é a força que pode calar o sujeito? O sujeito jamais se cala ou para de
receber a enunciação, meu caro Souza. O sujeito pulsa em palavras que podem
surgir de dentro de si mesmo e se dirigirem a si ou emergirem do seu entorno
rumo a um receptor, seja real ou não. Calar o sujeito, aqui, é fazê-lo um ser
monológico, isso é o mesmo que dizer que o sujeito não diz para o outro, pois,
o seu dizer já é o dizer do outro, uma vez que os discursos recebidos por ele
se constituíram em meros sinais sem a representação de um novo sentido. Dizer,
ou enunciar pode ser entendido como representar um novo sentido.
A
escola e a casa enunciam de forma diferente. Isso é o mesmo que dizer que o
aluno trará consigo os discursos de suas relações primarias. Assim, uma
sociedade com déficit de capital intelectual precisa de uma educação que
democratize o acesso a esse capital. No nosso caso, a educação do sertão, a
família também precisa ir à escola. Caso contrário, haverá um distanciamento
sempre maior entre escola e sociedade. Essa assimetria na capacidade de
representar o mundo faz com que a sociedade não perceba sua escola e a escola
não perceba a sociedade. Ambas nada dizem para o outro, ambas falam monólogos.
A
recepção do discurso educativo da escola é precária porque o educando, na
fonte, foi vitimizado por uma sociedade ignorante e iletrada. Concluímos,
então, que o sujeito educando terá a educação que sua sociedade entende ou
deseja. O dito, dessa forma permanece mito, um mito sem decifração. A escola
fortalece os mitos sociais, ou seus ditos, e os mesmos integram o psiquismo da
escola. As duas não crescem, pelo contrário, se engessam no mundo mítico do
dizer sem saber, do representar o vácuo e do monólogo do discurso inoculado por
uma classe que avidamente locupleta vantagens dessa realidade inerte.
Sua
pessoa deve dizer que isso é algo que já foi dito e que não carece mais de
discursão. Mas, minha pessoa insiste em dizer novamente sobre a escola que é a
materialidade das ideologias de uma dada sociedade, sejam ideologias positivas
ou negativas, desculpe-me a classificação. Se uma determinada sociedade
reproduz um modelo de exclusão social no qual ela foi forjada historicamente,
inevitavelmente, a escola terá ressonâncias dessas ideologias e quase que
organicamente reproduzirá o mesmo modelo, pois, as ideologias ou enunciados que
possuem força social formam e sedimentam mentalidades, e as mentalidades se
transformam em materialidades, ou comportamento e estrutura social.
Vendo
a escola a partir da enunciação, podemos concluir que o professor é o primeiro
ator que deforma o processo de epifanização do sujeito; sua ação se limita a
sujeitar o sujeito à ordem consagrada pela força dos enunciados historicamente
legitimados. O professor assim como o educando são vítimas de uma mentalidade
que se reproduz de forma quase natural pelos mecanismos de convencimento
social, e um deles é a escola.
Então,
será que devemos acabar com a escola?
Certamente
que não! Precisamos, pois, entendê-la melhor. O educador possui o discurso que
pode transformar realidades. Veja que a grade curricular possui informações que
podem fazer qualquer encéfalo enxergar melhor sua realidade e tonar-se um
enunciador mais consciente de seu mundo. Isso lhe oferece, não apenas,
ferramentas epistemológicas para desvelar o real e ou exercer funções sociais
melhores remuneradas elevando seu status social, mas, também, a capacidade de
produzir novos enunciados que transformem as mentalidades. Uma geração pode ser
sucedida por outra diferente, basta que os atores do processo vejam e desejem que
ela surja. Esse é o grande milagre do poder dizer diferente!
O
sujeito da enunciação é o sujeito da representação do real. O real é invenção
do sujeito. Tudo fora da representação é natureza, é água, fogo, ar e terra. O
representar o real, portanto, o criar realidades é a epifania do sujeito. O
sujeito não criou o planeta, mas, tenha certeza que foram os homens que criaram
o mundo. Enunciar pode ser visto como representar ou dar sentido ou entender o sentido
ou perceber o sentido de outrem. Fabricamos realidades e somos engolidos por
elas. São os nossos enunciados que dizem qual é a nossa escola!
A
escola do sertão é a materialidade da mentalidade formada pelos enunciados
históricos de nossa colonização e como representamos historicamente nossa
realidade de produção e consumo. Isso é
o mesmo que dizer que o gado estará atrás da cerca e ninguém perceberá que gado
é dinheiro, é poder político, é formação de opinião. O educando do sertão não
dialoga com a paisagem ao seu redor, pois, sua capacidade de perceber as
representações constituídas não lhe permite ir além das cercas. Assim o homem e
o gado formam a mesma paisagem.
O
sujeito da enunciação somente se epifaniza quando sua voz, embora, cheia de
ecos de outros se constitui seu enunciado, seu momento único de dizer e
representar seu mundo, seu sertão. Assim, meu caro Souza, a escola do sertão
não diz o novo – é uma velha caduca, uma caixa de ecos daqueles que enunciaram
no passado. Nossas crianças estão caladas, falam por instinto, e dizem o dizer
do outro.
Então,
como acabar o monólogo e iniciarmos um diálogo no sertão?
Em
tempo idos já expusemos ao nosso ilustre sociólogo que entendemos que a
condição natural dos homens é de diálogo. Ninguém foge dele! Conversamos
conosco ou dialogamos conosco, com as coisas, e com os animais. O homem sempre
será um ser em relação a outro. Foi essa posição que nos constituiu
animais dialógicos desde os primeiros tempos de nossa história. Olhamos sempre
para o outro que, ora somos nós mesmos, ou um ser virtual, ou um ser real. O
outro ou o receptor fecha o circuito conosco e ambos se moldam em função do que
dizem e da posição que os dois têm ao dizer. A assimetria ao dizer é
inevitável, pois, é também condição natural a dominação do outro pelo discurso,
nem sejamos nécios! O animal ainda sobrevive na civilização dos homens. As
relações geopolíticas, as relações sociais, ou até mesmo o cotidiano das praças
e ruas de nossas cidades atestam que o homem tende ao convencimento e dominação
do outro. A nossa relação com o outro é santa e profana, é divina e diabólica e
tudo isso se traduz em humanidade.
Usamos
o termo monólogo acima para deixar claro que o dizer sem um contra-dizer
é como se fosse um monólogo, uma realidade de uma única dimensão, um olhar numa
só perspectiva. Ora, se enunciar pressupõe um ‘outro’, ou um receptor, então,
naturalmente, nossa condição é de diálogo. Posto isso, acabar o monólogo não
existe de fato, pois, este não existe. O que é preciso é aproximar os
interlocutores, dar-lhes condições de barganha, dar-lhes sentidos que gerem
mais sentidos para que as relações entre os homens se tornem mais humanas.
Dialogar é humanizar a fera que urge pela carniça que está no campo.
O
diálogo só é possível se as partes possuem competências para enunciar o
novo. Caso contrário, os homens tem a impressão que dizem algo, mas, na
realidade, sua voz é a voz de alguém que o domina e o sujeita a uma ordem
consagrada pela historia das relações matérias de determinada sociedade.
Ocorrendo isso o sujeito é um sujeitado, o ser sujeito
único se dilui no discurso do outro. O sujeito não se epifaniza; torna-se
gado, o gado além das cercas do sertão.
A
epifania do sujeito enquanto sujeito único é a epifania de sua unicidade. A epifania de suas marcas
compartilhadas com o todo social, e de sua unicidade enquanto sujeito único no
mundo. O enunciar para ter o sentido aqui apresentado não é o dito das
conversas triviais das ruas e becos das cidades, mas, deve ser o ato único,
sublime, o lampejo de consciência que ilumina toda a malha que o envolve. A
unicidade do sujeito lhe garante marcas próprias que são só suas. Essas
peculiaridades ocorrem porque o sujeito enquanto um “devir histórico” é auto
transcendente; o sujeito transcende no eixo das diacronias e se epifaniza nas
coordenadas sincrônicas do ato enunciativo. Desta forma, o enunciar é um ato único do ser
de ser ao dizer, de se diferenciar ou se distanciar das marcas do outro
mesmo que este continue implacavelmente sendo seu hospede.
A
substância do sujeito enquanto sedimento ideológico; construção semiótica e
psíquica de uma personalidade que externa furtivamente sua identidade não
poderia se expressar de uma forma melhor do que por meio das linguagens, e
entre elas está a língua, principalmente, enquanto parole. No entanto, não
devemos desprezar as outras, pois, o sujeito sempre buscará uma forma de
expressão no mundo. Ele é massa-sentido e produtor de
sentidos.
Mais
uma vez, minha angustia toma conta de mim, meu caro Souza. Pois representar o
mundo é tão necessário para o homem como ar que o mesmo respira. Ligamo-nos, de
forma tão visceral ao material ideológico formador de nossa subjetividade que
esse pode inervar-se e psicossomatizar doenças, até letais, na nossa máquina
biológica. Sua pessoa, Mestre das Ciências Sociais e psicanalista sabe muito mais
de que esse humilde pedagogo sobre os efeitos dos sentidos na maquina
fisiológica.
Alhures,
falamos sobre o enunciar enquanto representação de mundo ou sentido de
realidade. O sujeito ao se epifanizar surge por trás de uma máscara na qual ele
esconde seu animal, ou sua verdadeira face. O sujeito, sem consciência disso no
momento epifânico, o faz de forma natural, é a amnésia necessária para que o seu
psiquismo se adeque a realidade social. Assim, dizer da racionalidade é dizer
de uma centelha de luz em um recorte no tempo enunciativo. Dizer da consciência
é a mesma coisa. Essas duas irmãs trabalham juntas para negar o que somos
realmente: Mamíferos falantes; animais perigosos e belicosos. Somos a mais
mortal criatura sobre a terra. Assim, humanizar o animal é preciso. Essa é uma
das funções éticas da Educação.
Ora,
meu amigo, se a epifania do sujeito via linguagem, e no caso deste breve
ensaio, via enunciado esconde a realidade do mesmo, então, afinal, onde
encontrar o sujeito? A resposta a essa pergunta é fundamental para que o
educador exerça seu trabalho com ética e objetividade. Pois, se não conheço o
homem que pretendo educar; como educa-lo, então? Para que? Qual o modelo?
A
história da educação humana é a historia de teorias, de propostas, de modelos, de
filosofias, enfim, a história dos mais diversos conceitos de homem que já
conseguimos produzir. Portanto, infere-se pelo testemunho da história da
educação humana que o homem educa as gerações em função de um sentido
de realidade, e este está culturalmente ligado à malha de sentidos de
uma determinada sociedade, em um determinado tempo e espaço. Estou dizendo que
as relações materiais concretas dos homens é que dizem qual o sentido da
realidade, assim, elas inspiram as mais diversas teorias sobre a Educação
humana.
As
religiões, os mitos, os heróis, os vilões, os super-heróis, os monumentos, as
instituições, os títulos, as insígnias, os brasões, enfim, todos os símbolos e
criação humana falam de sua relação objetiva com os meios de produção e consumo
de riquezas. A divisão do trabalho, as hierarquias, as estruturas sociais e
tudo mais que criamos são sentidos oriundos de nossa relação com a matéria ou
com a sobrevivência. Num sentido mais amplo, com a nossa relação com as
riquezas e sua distribuição. Portanto, educar é sonhar e fazer sonhar. Pois, se
não há um conceito único de homem, se não há uma substância concreta, se não
temos uma pista para encontrar o sujeito, então, tudo que dizemos sobre ele pode
ser um sonho ou um sentido dado em um dado momento; uma atividade onírica em
estado de vigília. Nossa espécie precisa acreditar que existe um sentido além
da matéria, ou o sentido UNO. Quanto a este, não é propósito
deste ensaio discuti-Lo.
Assim,
meu caro Souza, a epifania do sujeito é um sonho para si e para o outro.
Enunciar o mundo é dizer de nossos sonhos num primeiro momento. Todavia
enunciar é criar na matéria pela matéria pensante, ou a vontade do homem um
mundo objetivo onde nele os homens jogam o jogo da realidade, ou de sua
conjuntura socioeconômica. A relação do homem com a natureza produziu uma
realidade ideológica que embora sonho nos afeta objetivamente. Cabe ao educador
sonhar com o educando, mantê-lo sonhando, pois, a civilização precisa
continuar, todavia, é, também, um fim ético da educação fazer o sujeito
perceber que não há sentido em toda a malha de sentidos, cabe, então, a ele, unicamente
a ele, produzir os seus sentidos dentro das possibilidades do jogo que já está
posto. Sonhar é também escolha e escolher faz parte do jogo da vida.
À
percepção dessas coisas deve o educador estimular seus pupilos. Isso é possível
sem comprometer a proposta conteudista das instituições de educação. Somente
percebendo que sonhamos é que acordamos, e quando isso ocorre nos encontramos a
sonhar novamente.
Reduzir
as assimetrias discursivas entre os interlocutores; aproximá-los, e garantir ao
educando a capacidade de sonhar, e de despertar para sonhar de novo, é o fim
último da missão de um educador. O educando precisa saber que não existe um
modelo real de sujeito, mas, que existem diferentes olhares, ou sonhos sobre o
mesmo. O sujeito só pode ser percebido no ato único da enunciação.
Meu
caro Souza, as crianças do sertão sonham. Há uma geração chegando mais uma vez.
Minha angustia aumenta a cada passo que vejo entre nossos colegas a falta de
percepção da realidade. Muitos acreditam no real como se ele merecesse plena
confiança. Muitos dos companheiros estão presos a uma visão mítica de um sujeito
que pode ser visto, ou tocado; de uma substância constituinte do mesmo, de uma
epifania plena do ser. Esquecem os homens que somos um sendo; um perpétuo
movimento de sentidos, um devir na busca do UNO.
Para
concluir, meu amigo sociólogo, na natureza não há sentido. Todo sentido é
criação do homem, exceto, o UNO. Não quero te excitar falando
Dele, apenas digo que na matéria o verdadeiro sentido é a falta de sentido.
Educando assim, libertarás a ti mesmo e aos teus discípulos. Muita paz e Luz!
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