terça-feira, 23 de dezembro de 2014

E eu não vi

Que a chama do amor aqueça meu peito.

Que a paixão se apiede de mim e me faça reviver entre os escombros das cidades.

Que a mão da caridade me possua como um gênio do bem.

Que meu bicho adormeça no mais profundo inconsciente acorrentado em minhas entranhas.

Alguém disse: “Há uma pedra no caminho, no caminho há uma pedra”.

Eu não disse isso!

Eu sempre digo: “Há um bicho no caminho, no caminho há um bicho”.

Não tiraram a pedra.

Não tiraram o bicho.

Mudaram o caminho.

A pedra foi com ele, o bicho também.

Aprenderam outros rumos.

Os antigos travestiram-se na modernidade dos tempos.

Em uma gruta se esconde uma serpente.

Uma serpente, uma gruta.

Sinto cheiro de gente.

Tem gente no caminho, no caminho tem gente.

E eu não vi...
                     

domingo, 21 de dezembro de 2014

Querido Leonardo

Querido Leonardo,

A verdade é fruto das dúvidas. Se a verdade é resultante delas, é por isso mesmo que, mesmo conseguindo encontrar argumentos aparentemente sólidos e lógicos, essa verdade "descoberta" se dissolve em novas dúvidas. A vida não existe por ser vida. A vida pensa em buscar existir para tentar a qualquer custo achar algum sinônimo longínquo que exprima de uma vez por todas o que é viver. Viver é prática de espantos diante da nossa existência de cada dia. Somos um universo estranho a nós mesmos maquiado de nuvens.

Triste daquele a quem devota a verdade e a coloca em um patamar inquestionável. Triste daquele que a tem como resultado irreversível diante das sedentas variáveis que reinam em nossa cabeça-astronauta. Coitados daqueles que definem o amor enquanto um Ideal de vida e que se desmoronam por entre remédios psiquiátricos por qualquer obstáculo que passa despercebido em suas vidas. Quem clama que o amor é a Verdade, na certa será incapaz de amar a quem diz que ama, caso um dia se acabe esse amor. Amar, assim como as mágicas que permeiam nosso mundo, nosso existir, é um buscar-ser-alguma-coisa. Amar é sentir prazer e gozar pela lacuna que preenche o coração despovoado e desajustado de tantos sentidos semeados pela razão.

Somos um acúmulo de fantasmas que se manifestam em nossas escolhas, isto é, em nossos objetos eleitos por nós. Somos apenas um descanso em meio a um intervalo atemporal de suspiros. Escolhemos gestos, afetos, ódios. Apenas os escolhemos, pois cada um deles responde a uma de nossas infinitas inquietudes que carregamos dentro da alma. Eu não posso ser nada a não ser sonho. Se bem que eu sequer posso ser sonho, afinal, o sonho é uma nomeação que faço daquilo que quero responder o que é, mas... o que é não é o que tenho! O que é, significa a carência de significados, sendo apenas um mísero gesto de tentativas de buscar ser o que não se tem por certo. Atrás de mim, dentro de mim, fora de mim, à minha frente, só recorro a caminhos que talvez me prometam a paz que quero, mas que não tenho.

A sociedade anda atormentada por no fundo reconhecer que os códigos que a orienta e a direciona em sua existência não passam de probabilidades reticentes do que pensamos ter. A sociedade anda cuspindo no vácuo, sem querer reconhecer que possui o vácuo. Não quer reconhecer que a própria cultura é resultado do vácuo que busca a todo tempo se preencher em uma realidade na qual o preenchimento não passa de buscas vãs de mais e mais palavras. A sociedade está apodrecendo por querer ser eternamente viva. Mas de que vale essa vida feita de desenhos projetados, mas incapazes de se ajustarem ao tremor dos ecos do pensamento e das mãos rabiscadas que traçam desnorteadamente essas linhas tortas? Querer unicamente a forma é morrer enquanto processualidade. O vir a ser, esse sim, é o encantamento mais fecundo do humano justamente por desencantá-lo da terrível covardia de acreditar estar sempre no aconchego do alvo certo. Estamos em uma sociedade que teme a morte, mas que está enterrada em seu caixão chamado vida. As aventuras e os riscos são negados por provocarem turbulências na alma, ou seja, por encontrarem com a alma, que, apesar de aparentemente escondida no depósito das nossas falcatruas, revela-se constantemente em todo e qualquer ato que exercemos e executamos diante do outro e do mundo que nos rodeia.

A arte está marginalizada enquanto catarse, pois estamos em um mundo atolado de agendas e compromissos e incapaz de negociar seus afetos com um mercado de símbolos e inflações interplanetárias. A arte da potência-vida está se dissipando, pois estamos em meio a uma sociedade que teme a incerteza, afinal, é carregada de tanta informação! Deus não morreu, mas ficou brocha. O grito, o impulso, o atrevimento, a performatividade, a ganância em escavar a errância do universo foi deixada de lado. Até mesmo os ditos aptos a vivê-la como os filósofos e artistas, por exemplo, vivem a deixá-la em uma lata de lixo ou a empurra em qualquer arquivo morto para viverem o conforto seguro e infeliz das departamentalizações burocráticas das grades curriculares do sistema educacional.e profissional.

Não pretendo isso, não quero me lambuzar do veneno dessa alegria fajuta e inescrupulosamente procriada e reproduzida pela sociedade do consumo. Não pretendo me encaixar em modelos com regras engessadas e protecionistas para uma vida horrenda de carnavais falidos e adormecidos. Quero estar solto e cambaliante diante de uma aventura feita de incógnitas, afinal, sou humano, e por isso mesmo, carrego o segredo e o infinito. Quero me adentrar pra fora e me extrapolar pra dentro, angariar todas as lamas que me pertencem, jogá-las nos quadros rigidamente disciplinadores de uma sociedade que se enfeita de ordem e se detona em seu caos mal resolvido. Sou o caminho que me serve de passos, não de orientações que se finalizam em si mesmas. Quero brincar de errar e me estrepar de amor por justamente eu ter amor para dá, mas que esse amor seja eterno, assim como é a minha mísera provisoriedade infinita.

Quero adormecer em minha cama e me assustar por não ter chão. Quero me assustar por não ter nada e por isso mesmo agregar meus fantasmas à minha companhia. Quero contar os meus segredos para todos os meus olhos traidores, pois preciso aprender a chorar por mais que me doa, mas preciso chorar, do contrário, estarei inerte a uma vida cheia de magoas e frustrações. Que eu me traia a todo instante, que eu me encarregue de me colocar contra a parede para me socar e me dá baculejos. Ao me ver no espelho quero ser apenas retrato difuso, quero ser a ininteligibilidade que me aguarda e que me protege, pois sem ela não me vejo apto em sonhar, e, portanto, em exercer a única condição que talvez ainda me reste para essa grandiosa e dolorosa proposta que é existir.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

ENCANTO


A fria cidade de pedra encanta quem passa e até, quem trapaça; seduz as mocinhas com todas as gracinhas.
Seus corredores de asfalto, os prédios altos; as casinhas como pombais é um encanto em todo canto da urbes  de ferro, de concreto, e árvores cheias de pardais.
Quem mora lá jamais está quieto. É só fascinação, orgulho de nossa geração, quem sabe a outra só conheça uma caverna.
O encanto dos homens quase sempre destila pranto; é coisa pontiaguda, é aço, é vergalhão, e no final do dia, depois que todos seguiram seu guia, só restaram ruas vazias, uma imensa solidão.
- O que foi que eu fiz?
- Onde errei?
- O que não fiz?
- Ninguém é sábio o bastante para decifrar o que está na pintura dos homens.
A bruxaria da cidade arregala os olhos de todas as idades.
Contudo, é magia negra, é feitiço, é ebó arriado na beira do precipício.
Não te permitas que ela saiba teu nome. Esconda-se nela e dela, mas não feche a sua janela. Sempre haverá uma estrela no céu a brilhar.
Na cidade que encanta, os homens são coisinhas, são pedaços de carne e couro curtido assando ao sol escaldante.
No entanto, lamento teu pranto!
Os que nascem nessa terra viram plástico, papel, ou qualquer coisa que ela consuma.
Não chore o doravante, nem romantize o passado, as coisas também são tempo, e as pessoas se tornam retratos.
Ah, lembranças!
Os homens sonham; não há quem segure esse transito de engarrafamento, de sofrimento, de lucro e exploração, alternados com breves momentos de riso, carinho e paixão.
Ah, lembranças!
As praças, as avenidas, os teatros, os esgotos e as fezes escorridas.
Sim!
A tua e a minha!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

É vero amigo Veras?

Dedicado ao meu querido ex aluno e amigo Gabriel Veras

A nossa existência é dolorosa, e por isso mesmo criamos zonas de conforto para amenizarmos a grande merda que já é a nossa própria condição de existir. Não é de se espantar que nós criamos classificações, etiquetas, hipocrisias, aparências, pois elas são como tampas que impedem que a água transborde da panela e façam com que os nossos fantasmas venham a se revelar. Isso é cruel? É vero Veras!!! É muito doloroso.

Por que não morrer? Ora meu caro amigo, simplesmente para vivermos a experiência do que se é estar morto enquanto acreditamos que vivemos! Engana-se ao pensar que a morte é o fim. Ao contrário! A morte é estar vivendo, pois ela é o processo, o vir a ser, o devir. Morrer é estarmos sempre tendo provisoriamente menos um pedaço de alma enquanto achamos existir. Talvez aceitando isso, passamos a entender o que é viver para morrer e morrer para viver.O morrer continuamente cheira vida, ele liberta, é só você aceitá-lo como uma condição inevitável do existir.

Se você mantém a morte como armadilha, você morre de forma ruim por desejar um Ideal que não existe enquanto vida. Morra de forma boa, renascendo, aceitando que se ama porque se trai, que se é feliz porque se chora. Isso garante forças a você, afinal, ser forte não é ter a potência da força, mas sim, a incansável capacidade de ir à lama e reencontrar meios para readquirir essa força, nem que para isso a gente a readquira cheio de hematomas e cicatrizes. Isso é a vida que rejuvenesce e que nos leva. É apenas mais um sonho bom que nos aparece, nos dá afago, nos dá colo, nos consola, mas que mais adiante nos larga e ri do fato da gente se estrepar por ter sonhado.

Caminhos seguros? Isso é vero amigo Veras? Aceite a condição movediça de sermos o que não queremos ser e de não sermos aquilo que dizemos que somos. Brinque de ilusão. A regra é fácil: não há competição, nem vencedor. O que existe são circunstâncias que antes de se definirem enquanto tais, desfazem-se feito areia em nossas mãos. Em nossa frente sempre enxergamos mais água, mas não é água que nós temos, mas temos sede... mas... sede de quê?? Pergunta de miragens. Você nunca irá querer o que tem, mas sim, o que lhe escapa. O lance é aprender a brincar, é aceitar que, apesar da seriedade toda da vida, estamos em meio a uma ilusão que é a própria vida. Crie! Se o que é dito real é ilusão; o que é criado por nós é uma ilusão com cheiro de real.

Você quer respostas? Isso é vero amigo Veras? Mas as respostas levam a dúvidas e dúvidas levam respostas e respostas a mais duvidas... Aceite o seguinte: justamente por ser racional é que você jamais alcançará o real. O real foi distanciado de todos nós a partir do instante em que nós o abstraímos tentando nomeá-lo com uma coisinha chamada linguagem a partir disso que chamamos de razão. É por isso que todos dizem verdades, mas ninguém as tem. O que resta é apenas um buraco negro rondando em todas as almas que se multiplica progressivamente ao infinito. Volto a dizer: brinque, do contrário, vai se definhar em meio a uma vida-cavalo de tróia que te deram sem ao menos você permitir.

Sei que é doloroso reconhecer que não existe porto seguro, nem âncora, mas é a condição rizomática da vida que nos revela o inesperado! Temos que aceitar isso para evitarmos frustrações, excessos de cargas dolorosas na alma por uma coisa que não existe. Não existe isso ou aquilo; o que existe é estar por estar... e nem isso, pois se assim fosse, estaríamos sempre onde pensamos, no entanto, estamos sempre com os pés adiante e nunca satisfeitos com o que temos e com o que somos! É meu caro Veras, no final das contas apenas nomeamos mais um objeto a nossa volta, não por ele representar a verdade, mesmo que assim pensemos, mas por esse objeto ser uma válvula que nos possibilita descarregar toda a angústia resultante do imenso vazio enraizado em nossas almas fruto do existir. É por isso que eu não vejo nenhuma diferença entre um evangélico, um ateu, um maconheiro ou uma criança brincando de boneca. Só muda a apropriação de cada objeto.

Sente-se culpado e angustiado por não cumprir o que muitas vezes promete? Isso é vero amigo Veras? Saiba que a culpa foi mais uma convenção criada e legitimada como lei, porém, quem me garante qualquer pressão em um solo qualquer se estamos em um lugar que convencionalmente nomeamos como planeta terra que é apenas mais um entre as bilhões de infinitas galáxias de uma coisa que nomeamos como universo? Criamos gravidade para evitarmos a imensa dor do vazio que vivemos a pisar. Aí alguns sonham em ter um filho para mostrar aos amigos e para os seus pais; aí alguns sonham em ter e viver para sempre um grande amor, mas tendo tudo isso, tem-se a re-atualização de novas forças e novas potências engendrando novos sonhos e de um filho se quer dois, de um amor se quer três.

Você me pergunta se é dessa insaciável falta que surge a arte? Sim, mas não só ela meu caro Veras. Da falta surge a arte, a filosofia, a punheta, a religião e tudo mais que houver. A gente cria rituais e sonhos para sustentar uma existência que não se sustenta. Só isso. Somos desejantes. Colocamos o pé na frente e o que temos é apenas um adiante pedindo pra ser pisado com sua cara de nostalgia pelo que passou. Reconhecendo isso terminará por exterminar de uma vez por todas as distribuições de valor que a cultura nos obriga a reconhecer hierarquicamente.

Com isso, abdicará de se anular frente aos heróis, pois saberá que não somos heróis em momento algum, a não ser um misto de poder e de privilégio que vive a se afundar na lama. Não passamos de Reis Bostas. Tornar os outros heróis e autoridades, faz com que a gente se compare a eles, e por esquecermos que, apesar de serem referências, são humanos, a gente se fode sozinho sem lembrar que os heróis cagam, fazem merda e vivem uma realidade carente de sentidos como de qualquer detento ou mendigo. Volto a dizer: não existe o melhor ou o pior; o verdadeiro ou o falso, mas sim, os que agem de forma diferente em circunstâncias diferentes.

Sofre com as reprovações que os outros fazem acerca de suas escolhas? Isso é vero amigo Veras? Saiba que esse outro é cheio de frustrações e lacunas na alma e necessita meter o cacete em você para amenizar a grande dor que ele tem por meter o cacete nele próprio todo dia por estar vivo. Tanto você quanto o outro estão à procura da verdade. Portanto, relaxe, portanto, goze, portanto, aceite que o que existem são caminhos à procura de soluções. À procura de soluções e nada a mais. Aceitando isso nós relaxamos mais, passamos a nos cobrar menos, nos ferimos menos com a hipocrisia do outro. Apenas ficaremos a rir, pois saberemos que todos inventam coisas para nós e para eles também porque a ilusão nos obriga a isso.

Tudo isso que acabei de escrever para você significa de fato a verdade do que sinto e de como ajo? Não sei de coisa alguma meu caro amigo. Será que isso é vero amigo Veras? De boas? Acabo por aqui... se é que acabo qualquer coisa...

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO

O SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO
“O educando e o sentido”

Procurando entender melhor o sujeito, e, principalmente, o sujeito educando, ou “aquele que sofre a ação incisiva de discursos pedagógicos formadores de mentalidades e construtores do senso de realidade legitimado pelas ciências e pelas sociedades” que eu escrevo, meu caro Souza, estes rabiscos, desta feita, o foco está no ‘sujeito da enunciação’.
O sujeito da enunciação é o mesmo sujeito da recepção. Os papeis são alternados no transcorrer do dialogo ou na epifania de ambos. Contudo, o que os une é o mesmo código, e a mesma realidade material. Pois, para que o circuito se complete é necessário que os dois comunguem de uma mesma língua e que estejam inseridos no mesmo contexto material. Não podemos, meu caro Souza, abrir mão do fato de que as linguagens estão em constante relação com as condições históricas e materiais da sociedade. O pensamento do sujeito é, portanto, em grande parte, um constructo que reflete os modelos de produção e consumo legitimados por uma sociedade num determinado tempo e espaço.
O sintagma sujeito, no mundo da linguística foi usado pela primeira vez por Benveniste. Parece que para o pensador Francês, o sujeito não é apenas portador de um código, mas, é um enunciador, ou que o sujeito precisa dizer e o faz enunciando a partir das estruturas de um código que lhe foi internalizado durante o seu processo ontogênico.
Tanto o enunciador como o receptor sofrem a coesão desse código que delimita sua capacidade de expressão no mundo, e o instrumentaliza pela sua estrutura estruturante e semiótica. O uso do código, portanto, não está amarrado ao seu complexo lexical, mas, seu corpo semântico se transmuta pela necessidade enunciativa. Assim, o sujeito diz por necessidade, e isso transcende a vontade de dizer.
É importante, meu caro Souza, observarmos que a necessidade de dizer pode ser puramente instintual. O homem fala por hábito e quase sempre nem avalia o que disse. Esse aspecto do enunciado deve ser estudado pelo campo da psicologia, pois, nos ditos do sujeito devem estar os lampejos da atividade inconsciente individual e coletiva. O sujeito que aqui se apresenta como foco, é apenas, o sujeito educando que enuncia e recebe o enunciado.
O sujeito educando está sobre o efeito do discurso da educação oficial. Logo cedo, ele entra em crise, pois, os discursos que advém de sua casa não se harmonizam com aqueles que ele encontra na escola. A realidade material de seu primeiro lugar no mundo entra em conflito com a nova realidade apresentada. Nesse contexto, o sujeito educando cessa a enunciação e entra em silêncio, ou, cria admiração e vontade de enunciar, fazendo assim, o sujeito da enunciação se integra a gigantesca malha enunciativa que constitui o fluido sociolinguístico de nossa sociedade.
Mas, qual é a força que pode calar o sujeito? O sujeito jamais se cala ou para de receber a enunciação, meu caro Souza. O sujeito pulsa em palavras que podem surgir de dentro de si mesmo e se dirigirem a si ou emergirem do seu entorno rumo a um receptor, seja real ou não. Calar o sujeito, aqui, é fazê-lo um ser monológico, isso é o mesmo que dizer que o sujeito não diz para o outro, pois, o seu dizer já é o dizer do outro, uma vez que os discursos recebidos por ele se constituíram em meros sinais sem a representação de um novo sentido. Dizer, ou enunciar pode ser entendido como representar um novo sentido.
A escola e a casa enunciam de forma diferente. Isso é o mesmo que dizer que o aluno trará consigo os discursos de suas relações primarias. Assim, uma sociedade com déficit de capital intelectual precisa de uma educação que democratize o acesso a esse capital. No nosso caso, a educação do sertão, a família também precisa ir à escola. Caso contrário, haverá um distanciamento sempre maior entre escola e sociedade. Essa assimetria na capacidade de representar o mundo faz com que a sociedade não perceba sua escola e a escola não perceba a sociedade. Ambas nada dizem para o outro, ambas falam monólogos.
A recepção do discurso educativo da escola é precária porque o educando, na fonte, foi vitimizado por uma sociedade ignorante e iletrada. Concluímos, então, que o sujeito educando terá a educação que sua sociedade entende ou deseja. O dito, dessa forma permanece mito, um mito sem decifração. A escola fortalece os mitos sociais, ou seus ditos, e os mesmos integram o psiquismo da escola. As duas não crescem, pelo contrário, se engessam no mundo mítico do dizer sem saber, do representar o vácuo e do monólogo do discurso inoculado por uma classe que avidamente locupleta vantagens dessa realidade inerte.
Sua pessoa deve dizer que isso é algo que já foi dito e que não carece mais de discursão. Mas, minha pessoa insiste em dizer novamente sobre a escola que é a materialidade das ideologias de uma dada sociedade, sejam ideologias positivas ou negativas, desculpe-me a classificação. Se uma determinada sociedade reproduz um modelo de exclusão social no qual ela foi forjada historicamente, inevitavelmente, a escola terá ressonâncias dessas ideologias e quase que organicamente reproduzirá o mesmo modelo, pois, as ideologias ou enunciados que possuem força social formam e sedimentam mentalidades, e as mentalidades se transformam em materialidades, ou comportamento e estrutura social.
Vendo a escola a partir da enunciação, podemos concluir que o professor é o primeiro ator que deforma o processo de epifanização do sujeito; sua ação se limita a sujeitar o sujeito à ordem consagrada pela força dos enunciados historicamente legitimados. O professor assim como o educando são vítimas de uma mentalidade que se reproduz de forma quase natural pelos mecanismos de convencimento social, e um deles é a escola.
Então, será que devemos acabar com a escola?
Certamente que não! Precisamos, pois, entendê-la melhor. O educador possui o discurso que pode transformar realidades. Veja que a grade curricular possui informações que podem fazer qualquer encéfalo enxergar melhor sua realidade e tonar-se um enunciador mais consciente de seu mundo. Isso lhe oferece, não apenas, ferramentas epistemológicas para desvelar o real e ou exercer funções sociais melhores remuneradas elevando seu status social, mas, também, a capacidade de produzir novos enunciados que transformem as mentalidades. Uma geração pode ser sucedida por outra diferente, basta que os atores do processo vejam e desejem que ela surja. Esse é o grande milagre do poder dizer diferente!
O sujeito da enunciação é o sujeito da representação do real. O real é invenção do sujeito. Tudo fora da representação é natureza, é água, fogo, ar e terra. O representar o real, portanto, o criar realidades é a epifania do sujeito. O sujeito não criou o planeta, mas, tenha certeza que foram os homens que criaram o mundo. Enunciar pode ser visto como representar ou dar sentido ou entender o sentido ou perceber o sentido de outrem. Fabricamos realidades e somos engolidos por elas. São os nossos enunciados que dizem qual é a nossa escola!
A escola do sertão é a materialidade da mentalidade formada pelos enunciados históricos de nossa colonização e como representamos historicamente nossa realidade de produção e consumo.  Isso é o mesmo que dizer que o gado estará atrás da cerca e ninguém perceberá que gado é dinheiro, é poder político, é formação de opinião. O educando do sertão não dialoga com a paisagem ao seu redor, pois, sua capacidade de perceber as representações constituídas não lhe permite ir além das cercas. Assim o homem e o gado formam a mesma paisagem.
O sujeito da enunciação somente se epifaniza quando sua voz, embora, cheia de ecos de outros se constitui seu enunciado, seu momento único de dizer e representar seu mundo, seu sertão. Assim, meu caro Souza, a escola do sertão não diz o novo – é uma velha caduca, uma caixa de ecos daqueles que enunciaram no passado. Nossas crianças estão caladas, falam por instinto, e dizem o dizer do outro.
Então, como acabar o monólogo e iniciarmos um diálogo no sertão?
Em tempo idos já expusemos ao nosso ilustre sociólogo que entendemos que a condição natural dos homens é de diálogo. Ninguém foge dele! Conversamos conosco ou dialogamos conosco, com as coisas, e com os animais. O homem sempre será um ser em relação a outro. Foi essa posição que nos constituiu animais dialógicos desde os primeiros tempos de nossa história. Olhamos sempre para o outro que, ora somos nós mesmos, ou um ser virtual, ou um ser real. O outro ou o receptor fecha o circuito conosco e ambos se moldam em função do que dizem e da posição que os dois têm ao dizer. A assimetria ao dizer é inevitável, pois, é também condição natural a dominação do outro pelo discurso, nem sejamos nécios! O animal ainda sobrevive na civilização dos homens. As relações geopolíticas, as relações sociais, ou até mesmo o cotidiano das praças e ruas de nossas cidades atestam que o homem tende ao convencimento e dominação do outro. A nossa relação com o outro é santa e profana, é divina e diabólica e tudo isso se traduz em humanidade.
Usamos o termo monólogo acima para deixar claro que o dizer sem um contra-dizer é como se fosse um monólogo, uma realidade de uma única dimensão, um olhar numa só perspectiva. Ora, se enunciar pressupõe um ‘outro’, ou um receptor, então, naturalmente, nossa condição é de diálogo. Posto isso, acabar o monólogo não existe de fato, pois, este não existe. O que é preciso é aproximar os interlocutores, dar-lhes condições de barganha, dar-lhes sentidos que gerem mais sentidos para que as relações entre os homens se tornem mais humanas. Dialogar é humanizar a fera que urge pela carniça que está no campo.
O diálogo só é possível se as partes possuem competências para enunciar o novo. Caso contrário, os homens tem a impressão que dizem algo, mas, na realidade, sua voz é a voz de alguém que o domina e o sujeita a uma ordem consagrada pela historia das relações matérias de determinada sociedade. Ocorrendo isso o sujeito é um sujeitado, o ser sujeito único se dilui no discurso do outro. O sujeito não se epifaniza; torna-se gado, o gado além das cercas do sertão.
A epifania do sujeito enquanto sujeito único é a epifania de sua unicidade. A epifania de suas marcas compartilhadas com o todo social, e de sua unicidade enquanto sujeito único no mundo. O enunciar para ter o sentido aqui apresentado não é o dito das conversas triviais das ruas e becos das cidades, mas, deve ser o ato único, sublime, o lampejo de consciência que ilumina toda a malha que o envolve. A unicidade do sujeito lhe garante marcas próprias que são só suas. Essas peculiaridades ocorrem porque o sujeito enquanto um “devir histórico” é auto transcendente; o sujeito transcende no eixo das diacronias e se epifaniza nas coordenadas sincrônicas do ato enunciativo. Desta forma, o enunciar é um ato único do ser de ser ao dizer, de se diferenciar ou se distanciar das marcas do outro mesmo que este continue implacavelmente sendo seu hospede.
A substância do sujeito enquanto sedimento ideológico; construção semiótica e psíquica de uma personalidade que externa furtivamente sua identidade não poderia se expressar de uma forma melhor do que por meio das linguagens, e entre elas está a língua, principalmente, enquanto parole. No entanto, não devemos desprezar as outras, pois, o sujeito sempre buscará uma forma de expressão no mundo. Ele é massa-sentido e produtor de sentidos.
Mais uma vez, minha angustia toma conta de mim, meu caro Souza. Pois representar o mundo é tão necessário para o homem como ar que o mesmo respira. Ligamo-nos, de forma tão visceral ao material ideológico formador de nossa subjetividade que esse pode inervar-se e psicossomatizar doenças, até letais, na nossa máquina biológica. Sua pessoa, Mestre das Ciências Sociais e psicanalista sabe muito mais de que esse humilde pedagogo sobre os efeitos dos sentidos na maquina fisiológica.
Alhures, falamos sobre o enunciar enquanto representação de mundo ou sentido de realidade. O sujeito ao se epifanizar surge por trás de uma máscara na qual ele esconde seu animal, ou sua verdadeira face. O sujeito, sem consciência disso no momento epifânico, o faz de forma natural, é a amnésia necessária para que o seu psiquismo se adeque a realidade social. Assim, dizer da racionalidade é dizer de uma centelha de luz em um recorte no tempo enunciativo. Dizer da consciência é a mesma coisa. Essas duas irmãs trabalham juntas para negar o que somos realmente: Mamíferos falantes; animais perigosos e belicosos. Somos a mais mortal criatura sobre a terra. Assim, humanizar o animal é preciso. Essa é uma das funções éticas da Educação.
Ora, meu amigo, se a epifania do sujeito via linguagem, e no caso deste breve ensaio, via enunciado esconde a realidade do mesmo, então, afinal, onde encontrar o sujeito? A resposta a essa pergunta é fundamental para que o educador exerça seu trabalho com ética e objetividade. Pois, se não conheço o homem que pretendo educar; como educa-lo, então? Para que? Qual o modelo?
A história da educação humana é a historia de teorias, de propostas, de modelos, de filosofias, enfim, a história dos mais diversos conceitos de homem que já conseguimos produzir. Portanto, infere-se pelo testemunho da história da educação humana que o homem educa as gerações em função de um sentido de realidade, e este está culturalmente ligado à malha de sentidos de uma determinada sociedade, em um determinado tempo e espaço. Estou dizendo que as relações materiais concretas dos homens é que dizem qual o sentido da realidade, assim, elas inspiram as mais diversas teorias sobre a Educação humana.
As religiões, os mitos, os heróis, os vilões, os super-heróis, os monumentos, as instituições, os títulos, as insígnias, os brasões, enfim, todos os símbolos e criação humana falam de sua relação objetiva com os meios de produção e consumo de riquezas. A divisão do trabalho, as hierarquias, as estruturas sociais e tudo mais que criamos são sentidos oriundos de nossa relação com a matéria ou com a sobrevivência. Num sentido mais amplo, com a nossa relação com as riquezas e sua distribuição. Portanto, educar é sonhar e fazer sonhar. Pois, se não há um conceito único de homem, se não há uma substância concreta, se não temos uma pista para encontrar o sujeito, então, tudo que dizemos sobre ele pode ser um sonho ou um sentido dado em um dado momento; uma atividade onírica em estado de vigília. Nossa espécie precisa acreditar que existe um sentido além da matéria, ou o sentido UNO. Quanto a este, não é propósito deste ensaio discuti-Lo.
Assim, meu caro Souza, a epifania do sujeito é um sonho para si e para o outro. Enunciar o mundo é dizer de nossos sonhos num primeiro momento. Todavia enunciar é criar na matéria pela matéria pensante, ou a vontade do homem um mundo objetivo onde nele os homens jogam o jogo da realidade, ou de sua conjuntura socioeconômica. A relação do homem com a natureza produziu uma realidade ideológica que embora sonho nos afeta objetivamente. Cabe ao educador sonhar com o educando, mantê-lo sonhando, pois, a civilização precisa continuar, todavia, é, também, um fim ético da educação fazer o sujeito perceber que não há sentido em toda a malha de sentidos, cabe, então, a ele, unicamente a ele, produzir os seus sentidos dentro das possibilidades do jogo que já está posto. Sonhar é também escolha e escolher faz parte do jogo da vida.
À percepção dessas coisas deve o educador estimular seus pupilos. Isso é possível sem comprometer a proposta conteudista das instituições de educação. Somente percebendo que sonhamos é que acordamos, e quando isso ocorre nos encontramos a sonhar novamente.
Reduzir as assimetrias discursivas entre os interlocutores; aproximá-los, e garantir ao educando a capacidade de sonhar, e de despertar para sonhar de novo, é o fim último da missão de um educador. O educando precisa saber que não existe um modelo real de sujeito, mas, que existem diferentes olhares, ou sonhos sobre o mesmo. O sujeito só pode ser percebido no ato único da enunciação.
Meu caro Souza, as crianças do sertão sonham. Há uma geração chegando mais uma vez. Minha angustia aumenta a cada passo que vejo entre nossos colegas a falta de percepção da realidade. Muitos acreditam no real como se ele merecesse plena confiança. Muitos dos companheiros estão presos a uma visão mítica de um sujeito que pode ser visto, ou tocado; de uma substância constituinte do mesmo, de uma epifania plena do ser. Esquecem os homens que somos um sendo; um perpétuo movimento de sentidos, um devir na busca do UNO.
Para concluir, meu amigo sociólogo, na natureza não há sentido. Todo sentido é criação do homem, exceto, o UNO. Não quero te excitar falando Dele, apenas digo que na matéria o verdadeiro sentido é a falta de sentido. Educando assim, libertarás a ti mesmo e aos teus discípulos. Muita paz e Luz!