terça-feira, 23 de dezembro de 2014

E eu não vi

Que a chama do amor aqueça meu peito.

Que a paixão se apiede de mim e me faça reviver entre os escombros das cidades.

Que a mão da caridade me possua como um gênio do bem.

Que meu bicho adormeça no mais profundo inconsciente acorrentado em minhas entranhas.

Alguém disse: “Há uma pedra no caminho, no caminho há uma pedra”.

Eu não disse isso!

Eu sempre digo: “Há um bicho no caminho, no caminho há um bicho”.

Não tiraram a pedra.

Não tiraram o bicho.

Mudaram o caminho.

A pedra foi com ele, o bicho também.

Aprenderam outros rumos.

Os antigos travestiram-se na modernidade dos tempos.

Em uma gruta se esconde uma serpente.

Uma serpente, uma gruta.

Sinto cheiro de gente.

Tem gente no caminho, no caminho tem gente.

E eu não vi...
                     

domingo, 21 de dezembro de 2014

Querido Leonardo

Querido Leonardo,

A verdade é fruto das dúvidas. Se a verdade é resultante delas, é por isso mesmo que, mesmo conseguindo encontrar argumentos aparentemente sólidos e lógicos, essa verdade "descoberta" se dissolve em novas dúvidas. A vida não existe por ser vida. A vida pensa em buscar existir para tentar a qualquer custo achar algum sinônimo longínquo que exprima de uma vez por todas o que é viver. Viver é prática de espantos diante da nossa existência de cada dia. Somos um universo estranho a nós mesmos maquiado de nuvens.

Triste daquele a quem devota a verdade e a coloca em um patamar inquestionável. Triste daquele que a tem como resultado irreversível diante das sedentas variáveis que reinam em nossa cabeça-astronauta. Coitados daqueles que definem o amor enquanto um Ideal de vida e que se desmoronam por entre remédios psiquiátricos por qualquer obstáculo que passa despercebido em suas vidas. Quem clama que o amor é a Verdade, na certa será incapaz de amar a quem diz que ama, caso um dia se acabe esse amor. Amar, assim como as mágicas que permeiam nosso mundo, nosso existir, é um buscar-ser-alguma-coisa. Amar é sentir prazer e gozar pela lacuna que preenche o coração despovoado e desajustado de tantos sentidos semeados pela razão.

Somos um acúmulo de fantasmas que se manifestam em nossas escolhas, isto é, em nossos objetos eleitos por nós. Somos apenas um descanso em meio a um intervalo atemporal de suspiros. Escolhemos gestos, afetos, ódios. Apenas os escolhemos, pois cada um deles responde a uma de nossas infinitas inquietudes que carregamos dentro da alma. Eu não posso ser nada a não ser sonho. Se bem que eu sequer posso ser sonho, afinal, o sonho é uma nomeação que faço daquilo que quero responder o que é, mas... o que é não é o que tenho! O que é, significa a carência de significados, sendo apenas um mísero gesto de tentativas de buscar ser o que não se tem por certo. Atrás de mim, dentro de mim, fora de mim, à minha frente, só recorro a caminhos que talvez me prometam a paz que quero, mas que não tenho.

A sociedade anda atormentada por no fundo reconhecer que os códigos que a orienta e a direciona em sua existência não passam de probabilidades reticentes do que pensamos ter. A sociedade anda cuspindo no vácuo, sem querer reconhecer que possui o vácuo. Não quer reconhecer que a própria cultura é resultado do vácuo que busca a todo tempo se preencher em uma realidade na qual o preenchimento não passa de buscas vãs de mais e mais palavras. A sociedade está apodrecendo por querer ser eternamente viva. Mas de que vale essa vida feita de desenhos projetados, mas incapazes de se ajustarem ao tremor dos ecos do pensamento e das mãos rabiscadas que traçam desnorteadamente essas linhas tortas? Querer unicamente a forma é morrer enquanto processualidade. O vir a ser, esse sim, é o encantamento mais fecundo do humano justamente por desencantá-lo da terrível covardia de acreditar estar sempre no aconchego do alvo certo. Estamos em uma sociedade que teme a morte, mas que está enterrada em seu caixão chamado vida. As aventuras e os riscos são negados por provocarem turbulências na alma, ou seja, por encontrarem com a alma, que, apesar de aparentemente escondida no depósito das nossas falcatruas, revela-se constantemente em todo e qualquer ato que exercemos e executamos diante do outro e do mundo que nos rodeia.

A arte está marginalizada enquanto catarse, pois estamos em um mundo atolado de agendas e compromissos e incapaz de negociar seus afetos com um mercado de símbolos e inflações interplanetárias. A arte da potência-vida está se dissipando, pois estamos em meio a uma sociedade que teme a incerteza, afinal, é carregada de tanta informação! Deus não morreu, mas ficou brocha. O grito, o impulso, o atrevimento, a performatividade, a ganância em escavar a errância do universo foi deixada de lado. Até mesmo os ditos aptos a vivê-la como os filósofos e artistas, por exemplo, vivem a deixá-la em uma lata de lixo ou a empurra em qualquer arquivo morto para viverem o conforto seguro e infeliz das departamentalizações burocráticas das grades curriculares do sistema educacional.e profissional.

Não pretendo isso, não quero me lambuzar do veneno dessa alegria fajuta e inescrupulosamente procriada e reproduzida pela sociedade do consumo. Não pretendo me encaixar em modelos com regras engessadas e protecionistas para uma vida horrenda de carnavais falidos e adormecidos. Quero estar solto e cambaliante diante de uma aventura feita de incógnitas, afinal, sou humano, e por isso mesmo, carrego o segredo e o infinito. Quero me adentrar pra fora e me extrapolar pra dentro, angariar todas as lamas que me pertencem, jogá-las nos quadros rigidamente disciplinadores de uma sociedade que se enfeita de ordem e se detona em seu caos mal resolvido. Sou o caminho que me serve de passos, não de orientações que se finalizam em si mesmas. Quero brincar de errar e me estrepar de amor por justamente eu ter amor para dá, mas que esse amor seja eterno, assim como é a minha mísera provisoriedade infinita.

Quero adormecer em minha cama e me assustar por não ter chão. Quero me assustar por não ter nada e por isso mesmo agregar meus fantasmas à minha companhia. Quero contar os meus segredos para todos os meus olhos traidores, pois preciso aprender a chorar por mais que me doa, mas preciso chorar, do contrário, estarei inerte a uma vida cheia de magoas e frustrações. Que eu me traia a todo instante, que eu me encarregue de me colocar contra a parede para me socar e me dá baculejos. Ao me ver no espelho quero ser apenas retrato difuso, quero ser a ininteligibilidade que me aguarda e que me protege, pois sem ela não me vejo apto em sonhar, e, portanto, em exercer a única condição que talvez ainda me reste para essa grandiosa e dolorosa proposta que é existir.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

ENCANTO


A fria cidade de pedra encanta quem passa e até, quem trapaça; seduz as mocinhas com todas as gracinhas.
Seus corredores de asfalto, os prédios altos; as casinhas como pombais é um encanto em todo canto da urbes  de ferro, de concreto, e árvores cheias de pardais.
Quem mora lá jamais está quieto. É só fascinação, orgulho de nossa geração, quem sabe a outra só conheça uma caverna.
O encanto dos homens quase sempre destila pranto; é coisa pontiaguda, é aço, é vergalhão, e no final do dia, depois que todos seguiram seu guia, só restaram ruas vazias, uma imensa solidão.
- O que foi que eu fiz?
- Onde errei?
- O que não fiz?
- Ninguém é sábio o bastante para decifrar o que está na pintura dos homens.
A bruxaria da cidade arregala os olhos de todas as idades.
Contudo, é magia negra, é feitiço, é ebó arriado na beira do precipício.
Não te permitas que ela saiba teu nome. Esconda-se nela e dela, mas não feche a sua janela. Sempre haverá uma estrela no céu a brilhar.
Na cidade que encanta, os homens são coisinhas, são pedaços de carne e couro curtido assando ao sol escaldante.
No entanto, lamento teu pranto!
Os que nascem nessa terra viram plástico, papel, ou qualquer coisa que ela consuma.
Não chore o doravante, nem romantize o passado, as coisas também são tempo, e as pessoas se tornam retratos.
Ah, lembranças!
Os homens sonham; não há quem segure esse transito de engarrafamento, de sofrimento, de lucro e exploração, alternados com breves momentos de riso, carinho e paixão.
Ah, lembranças!
As praças, as avenidas, os teatros, os esgotos e as fezes escorridas.
Sim!
A tua e a minha!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

É vero amigo Veras?

Dedicado ao meu querido ex aluno e amigo Gabriel Veras

A nossa existência é dolorosa, e por isso mesmo criamos zonas de conforto para amenizarmos a grande merda que já é a nossa própria condição de existir. Não é de se espantar que nós criamos classificações, etiquetas, hipocrisias, aparências, pois elas são como tampas que impedem que a água transborde da panela e façam com que os nossos fantasmas venham a se revelar. Isso é cruel? É vero Veras!!! É muito doloroso.

Por que não morrer? Ora meu caro amigo, simplesmente para vivermos a experiência do que se é estar morto enquanto acreditamos que vivemos! Engana-se ao pensar que a morte é o fim. Ao contrário! A morte é estar vivendo, pois ela é o processo, o vir a ser, o devir. Morrer é estarmos sempre tendo provisoriamente menos um pedaço de alma enquanto achamos existir. Talvez aceitando isso, passamos a entender o que é viver para morrer e morrer para viver.O morrer continuamente cheira vida, ele liberta, é só você aceitá-lo como uma condição inevitável do existir.

Se você mantém a morte como armadilha, você morre de forma ruim por desejar um Ideal que não existe enquanto vida. Morra de forma boa, renascendo, aceitando que se ama porque se trai, que se é feliz porque se chora. Isso garante forças a você, afinal, ser forte não é ter a potência da força, mas sim, a incansável capacidade de ir à lama e reencontrar meios para readquirir essa força, nem que para isso a gente a readquira cheio de hematomas e cicatrizes. Isso é a vida que rejuvenesce e que nos leva. É apenas mais um sonho bom que nos aparece, nos dá afago, nos dá colo, nos consola, mas que mais adiante nos larga e ri do fato da gente se estrepar por ter sonhado.

Caminhos seguros? Isso é vero amigo Veras? Aceite a condição movediça de sermos o que não queremos ser e de não sermos aquilo que dizemos que somos. Brinque de ilusão. A regra é fácil: não há competição, nem vencedor. O que existe são circunstâncias que antes de se definirem enquanto tais, desfazem-se feito areia em nossas mãos. Em nossa frente sempre enxergamos mais água, mas não é água que nós temos, mas temos sede... mas... sede de quê?? Pergunta de miragens. Você nunca irá querer o que tem, mas sim, o que lhe escapa. O lance é aprender a brincar, é aceitar que, apesar da seriedade toda da vida, estamos em meio a uma ilusão que é a própria vida. Crie! Se o que é dito real é ilusão; o que é criado por nós é uma ilusão com cheiro de real.

Você quer respostas? Isso é vero amigo Veras? Mas as respostas levam a dúvidas e dúvidas levam respostas e respostas a mais duvidas... Aceite o seguinte: justamente por ser racional é que você jamais alcançará o real. O real foi distanciado de todos nós a partir do instante em que nós o abstraímos tentando nomeá-lo com uma coisinha chamada linguagem a partir disso que chamamos de razão. É por isso que todos dizem verdades, mas ninguém as tem. O que resta é apenas um buraco negro rondando em todas as almas que se multiplica progressivamente ao infinito. Volto a dizer: brinque, do contrário, vai se definhar em meio a uma vida-cavalo de tróia que te deram sem ao menos você permitir.

Sei que é doloroso reconhecer que não existe porto seguro, nem âncora, mas é a condição rizomática da vida que nos revela o inesperado! Temos que aceitar isso para evitarmos frustrações, excessos de cargas dolorosas na alma por uma coisa que não existe. Não existe isso ou aquilo; o que existe é estar por estar... e nem isso, pois se assim fosse, estaríamos sempre onde pensamos, no entanto, estamos sempre com os pés adiante e nunca satisfeitos com o que temos e com o que somos! É meu caro Veras, no final das contas apenas nomeamos mais um objeto a nossa volta, não por ele representar a verdade, mesmo que assim pensemos, mas por esse objeto ser uma válvula que nos possibilita descarregar toda a angústia resultante do imenso vazio enraizado em nossas almas fruto do existir. É por isso que eu não vejo nenhuma diferença entre um evangélico, um ateu, um maconheiro ou uma criança brincando de boneca. Só muda a apropriação de cada objeto.

Sente-se culpado e angustiado por não cumprir o que muitas vezes promete? Isso é vero amigo Veras? Saiba que a culpa foi mais uma convenção criada e legitimada como lei, porém, quem me garante qualquer pressão em um solo qualquer se estamos em um lugar que convencionalmente nomeamos como planeta terra que é apenas mais um entre as bilhões de infinitas galáxias de uma coisa que nomeamos como universo? Criamos gravidade para evitarmos a imensa dor do vazio que vivemos a pisar. Aí alguns sonham em ter um filho para mostrar aos amigos e para os seus pais; aí alguns sonham em ter e viver para sempre um grande amor, mas tendo tudo isso, tem-se a re-atualização de novas forças e novas potências engendrando novos sonhos e de um filho se quer dois, de um amor se quer três.

Você me pergunta se é dessa insaciável falta que surge a arte? Sim, mas não só ela meu caro Veras. Da falta surge a arte, a filosofia, a punheta, a religião e tudo mais que houver. A gente cria rituais e sonhos para sustentar uma existência que não se sustenta. Só isso. Somos desejantes. Colocamos o pé na frente e o que temos é apenas um adiante pedindo pra ser pisado com sua cara de nostalgia pelo que passou. Reconhecendo isso terminará por exterminar de uma vez por todas as distribuições de valor que a cultura nos obriga a reconhecer hierarquicamente.

Com isso, abdicará de se anular frente aos heróis, pois saberá que não somos heróis em momento algum, a não ser um misto de poder e de privilégio que vive a se afundar na lama. Não passamos de Reis Bostas. Tornar os outros heróis e autoridades, faz com que a gente se compare a eles, e por esquecermos que, apesar de serem referências, são humanos, a gente se fode sozinho sem lembrar que os heróis cagam, fazem merda e vivem uma realidade carente de sentidos como de qualquer detento ou mendigo. Volto a dizer: não existe o melhor ou o pior; o verdadeiro ou o falso, mas sim, os que agem de forma diferente em circunstâncias diferentes.

Sofre com as reprovações que os outros fazem acerca de suas escolhas? Isso é vero amigo Veras? Saiba que esse outro é cheio de frustrações e lacunas na alma e necessita meter o cacete em você para amenizar a grande dor que ele tem por meter o cacete nele próprio todo dia por estar vivo. Tanto você quanto o outro estão à procura da verdade. Portanto, relaxe, portanto, goze, portanto, aceite que o que existem são caminhos à procura de soluções. À procura de soluções e nada a mais. Aceitando isso nós relaxamos mais, passamos a nos cobrar menos, nos ferimos menos com a hipocrisia do outro. Apenas ficaremos a rir, pois saberemos que todos inventam coisas para nós e para eles também porque a ilusão nos obriga a isso.

Tudo isso que acabei de escrever para você significa de fato a verdade do que sinto e de como ajo? Não sei de coisa alguma meu caro amigo. Será que isso é vero amigo Veras? De boas? Acabo por aqui... se é que acabo qualquer coisa...

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO

O SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO
“O educando e o sentido”

Procurando entender melhor o sujeito, e, principalmente, o sujeito educando, ou “aquele que sofre a ação incisiva de discursos pedagógicos formadores de mentalidades e construtores do senso de realidade legitimado pelas ciências e pelas sociedades” que eu escrevo, meu caro Souza, estes rabiscos, desta feita, o foco está no ‘sujeito da enunciação’.
O sujeito da enunciação é o mesmo sujeito da recepção. Os papeis são alternados no transcorrer do dialogo ou na epifania de ambos. Contudo, o que os une é o mesmo código, e a mesma realidade material. Pois, para que o circuito se complete é necessário que os dois comunguem de uma mesma língua e que estejam inseridos no mesmo contexto material. Não podemos, meu caro Souza, abrir mão do fato de que as linguagens estão em constante relação com as condições históricas e materiais da sociedade. O pensamento do sujeito é, portanto, em grande parte, um constructo que reflete os modelos de produção e consumo legitimados por uma sociedade num determinado tempo e espaço.
O sintagma sujeito, no mundo da linguística foi usado pela primeira vez por Benveniste. Parece que para o pensador Francês, o sujeito não é apenas portador de um código, mas, é um enunciador, ou que o sujeito precisa dizer e o faz enunciando a partir das estruturas de um código que lhe foi internalizado durante o seu processo ontogênico.
Tanto o enunciador como o receptor sofrem a coesão desse código que delimita sua capacidade de expressão no mundo, e o instrumentaliza pela sua estrutura estruturante e semiótica. O uso do código, portanto, não está amarrado ao seu complexo lexical, mas, seu corpo semântico se transmuta pela necessidade enunciativa. Assim, o sujeito diz por necessidade, e isso transcende a vontade de dizer.
É importante, meu caro Souza, observarmos que a necessidade de dizer pode ser puramente instintual. O homem fala por hábito e quase sempre nem avalia o que disse. Esse aspecto do enunciado deve ser estudado pelo campo da psicologia, pois, nos ditos do sujeito devem estar os lampejos da atividade inconsciente individual e coletiva. O sujeito que aqui se apresenta como foco, é apenas, o sujeito educando que enuncia e recebe o enunciado.
O sujeito educando está sobre o efeito do discurso da educação oficial. Logo cedo, ele entra em crise, pois, os discursos que advém de sua casa não se harmonizam com aqueles que ele encontra na escola. A realidade material de seu primeiro lugar no mundo entra em conflito com a nova realidade apresentada. Nesse contexto, o sujeito educando cessa a enunciação e entra em silêncio, ou, cria admiração e vontade de enunciar, fazendo assim, o sujeito da enunciação se integra a gigantesca malha enunciativa que constitui o fluido sociolinguístico de nossa sociedade.
Mas, qual é a força que pode calar o sujeito? O sujeito jamais se cala ou para de receber a enunciação, meu caro Souza. O sujeito pulsa em palavras que podem surgir de dentro de si mesmo e se dirigirem a si ou emergirem do seu entorno rumo a um receptor, seja real ou não. Calar o sujeito, aqui, é fazê-lo um ser monológico, isso é o mesmo que dizer que o sujeito não diz para o outro, pois, o seu dizer já é o dizer do outro, uma vez que os discursos recebidos por ele se constituíram em meros sinais sem a representação de um novo sentido. Dizer, ou enunciar pode ser entendido como representar um novo sentido.
A escola e a casa enunciam de forma diferente. Isso é o mesmo que dizer que o aluno trará consigo os discursos de suas relações primarias. Assim, uma sociedade com déficit de capital intelectual precisa de uma educação que democratize o acesso a esse capital. No nosso caso, a educação do sertão, a família também precisa ir à escola. Caso contrário, haverá um distanciamento sempre maior entre escola e sociedade. Essa assimetria na capacidade de representar o mundo faz com que a sociedade não perceba sua escola e a escola não perceba a sociedade. Ambas nada dizem para o outro, ambas falam monólogos.
A recepção do discurso educativo da escola é precária porque o educando, na fonte, foi vitimizado por uma sociedade ignorante e iletrada. Concluímos, então, que o sujeito educando terá a educação que sua sociedade entende ou deseja. O dito, dessa forma permanece mito, um mito sem decifração. A escola fortalece os mitos sociais, ou seus ditos, e os mesmos integram o psiquismo da escola. As duas não crescem, pelo contrário, se engessam no mundo mítico do dizer sem saber, do representar o vácuo e do monólogo do discurso inoculado por uma classe que avidamente locupleta vantagens dessa realidade inerte.
Sua pessoa deve dizer que isso é algo que já foi dito e que não carece mais de discursão. Mas, minha pessoa insiste em dizer novamente sobre a escola que é a materialidade das ideologias de uma dada sociedade, sejam ideologias positivas ou negativas, desculpe-me a classificação. Se uma determinada sociedade reproduz um modelo de exclusão social no qual ela foi forjada historicamente, inevitavelmente, a escola terá ressonâncias dessas ideologias e quase que organicamente reproduzirá o mesmo modelo, pois, as ideologias ou enunciados que possuem força social formam e sedimentam mentalidades, e as mentalidades se transformam em materialidades, ou comportamento e estrutura social.
Vendo a escola a partir da enunciação, podemos concluir que o professor é o primeiro ator que deforma o processo de epifanização do sujeito; sua ação se limita a sujeitar o sujeito à ordem consagrada pela força dos enunciados historicamente legitimados. O professor assim como o educando são vítimas de uma mentalidade que se reproduz de forma quase natural pelos mecanismos de convencimento social, e um deles é a escola.
Então, será que devemos acabar com a escola?
Certamente que não! Precisamos, pois, entendê-la melhor. O educador possui o discurso que pode transformar realidades. Veja que a grade curricular possui informações que podem fazer qualquer encéfalo enxergar melhor sua realidade e tonar-se um enunciador mais consciente de seu mundo. Isso lhe oferece, não apenas, ferramentas epistemológicas para desvelar o real e ou exercer funções sociais melhores remuneradas elevando seu status social, mas, também, a capacidade de produzir novos enunciados que transformem as mentalidades. Uma geração pode ser sucedida por outra diferente, basta que os atores do processo vejam e desejem que ela surja. Esse é o grande milagre do poder dizer diferente!
O sujeito da enunciação é o sujeito da representação do real. O real é invenção do sujeito. Tudo fora da representação é natureza, é água, fogo, ar e terra. O representar o real, portanto, o criar realidades é a epifania do sujeito. O sujeito não criou o planeta, mas, tenha certeza que foram os homens que criaram o mundo. Enunciar pode ser visto como representar ou dar sentido ou entender o sentido ou perceber o sentido de outrem. Fabricamos realidades e somos engolidos por elas. São os nossos enunciados que dizem qual é a nossa escola!
A escola do sertão é a materialidade da mentalidade formada pelos enunciados históricos de nossa colonização e como representamos historicamente nossa realidade de produção e consumo.  Isso é o mesmo que dizer que o gado estará atrás da cerca e ninguém perceberá que gado é dinheiro, é poder político, é formação de opinião. O educando do sertão não dialoga com a paisagem ao seu redor, pois, sua capacidade de perceber as representações constituídas não lhe permite ir além das cercas. Assim o homem e o gado formam a mesma paisagem.
O sujeito da enunciação somente se epifaniza quando sua voz, embora, cheia de ecos de outros se constitui seu enunciado, seu momento único de dizer e representar seu mundo, seu sertão. Assim, meu caro Souza, a escola do sertão não diz o novo – é uma velha caduca, uma caixa de ecos daqueles que enunciaram no passado. Nossas crianças estão caladas, falam por instinto, e dizem o dizer do outro.
Então, como acabar o monólogo e iniciarmos um diálogo no sertão?
Em tempo idos já expusemos ao nosso ilustre sociólogo que entendemos que a condição natural dos homens é de diálogo. Ninguém foge dele! Conversamos conosco ou dialogamos conosco, com as coisas, e com os animais. O homem sempre será um ser em relação a outro. Foi essa posição que nos constituiu animais dialógicos desde os primeiros tempos de nossa história. Olhamos sempre para o outro que, ora somos nós mesmos, ou um ser virtual, ou um ser real. O outro ou o receptor fecha o circuito conosco e ambos se moldam em função do que dizem e da posição que os dois têm ao dizer. A assimetria ao dizer é inevitável, pois, é também condição natural a dominação do outro pelo discurso, nem sejamos nécios! O animal ainda sobrevive na civilização dos homens. As relações geopolíticas, as relações sociais, ou até mesmo o cotidiano das praças e ruas de nossas cidades atestam que o homem tende ao convencimento e dominação do outro. A nossa relação com o outro é santa e profana, é divina e diabólica e tudo isso se traduz em humanidade.
Usamos o termo monólogo acima para deixar claro que o dizer sem um contra-dizer é como se fosse um monólogo, uma realidade de uma única dimensão, um olhar numa só perspectiva. Ora, se enunciar pressupõe um ‘outro’, ou um receptor, então, naturalmente, nossa condição é de diálogo. Posto isso, acabar o monólogo não existe de fato, pois, este não existe. O que é preciso é aproximar os interlocutores, dar-lhes condições de barganha, dar-lhes sentidos que gerem mais sentidos para que as relações entre os homens se tornem mais humanas. Dialogar é humanizar a fera que urge pela carniça que está no campo.
O diálogo só é possível se as partes possuem competências para enunciar o novo. Caso contrário, os homens tem a impressão que dizem algo, mas, na realidade, sua voz é a voz de alguém que o domina e o sujeita a uma ordem consagrada pela historia das relações matérias de determinada sociedade. Ocorrendo isso o sujeito é um sujeitado, o ser sujeito único se dilui no discurso do outro. O sujeito não se epifaniza; torna-se gado, o gado além das cercas do sertão.
A epifania do sujeito enquanto sujeito único é a epifania de sua unicidade. A epifania de suas marcas compartilhadas com o todo social, e de sua unicidade enquanto sujeito único no mundo. O enunciar para ter o sentido aqui apresentado não é o dito das conversas triviais das ruas e becos das cidades, mas, deve ser o ato único, sublime, o lampejo de consciência que ilumina toda a malha que o envolve. A unicidade do sujeito lhe garante marcas próprias que são só suas. Essas peculiaridades ocorrem porque o sujeito enquanto um “devir histórico” é auto transcendente; o sujeito transcende no eixo das diacronias e se epifaniza nas coordenadas sincrônicas do ato enunciativo. Desta forma, o enunciar é um ato único do ser de ser ao dizer, de se diferenciar ou se distanciar das marcas do outro mesmo que este continue implacavelmente sendo seu hospede.
A substância do sujeito enquanto sedimento ideológico; construção semiótica e psíquica de uma personalidade que externa furtivamente sua identidade não poderia se expressar de uma forma melhor do que por meio das linguagens, e entre elas está a língua, principalmente, enquanto parole. No entanto, não devemos desprezar as outras, pois, o sujeito sempre buscará uma forma de expressão no mundo. Ele é massa-sentido e produtor de sentidos.
Mais uma vez, minha angustia toma conta de mim, meu caro Souza. Pois representar o mundo é tão necessário para o homem como ar que o mesmo respira. Ligamo-nos, de forma tão visceral ao material ideológico formador de nossa subjetividade que esse pode inervar-se e psicossomatizar doenças, até letais, na nossa máquina biológica. Sua pessoa, Mestre das Ciências Sociais e psicanalista sabe muito mais de que esse humilde pedagogo sobre os efeitos dos sentidos na maquina fisiológica.
Alhures, falamos sobre o enunciar enquanto representação de mundo ou sentido de realidade. O sujeito ao se epifanizar surge por trás de uma máscara na qual ele esconde seu animal, ou sua verdadeira face. O sujeito, sem consciência disso no momento epifânico, o faz de forma natural, é a amnésia necessária para que o seu psiquismo se adeque a realidade social. Assim, dizer da racionalidade é dizer de uma centelha de luz em um recorte no tempo enunciativo. Dizer da consciência é a mesma coisa. Essas duas irmãs trabalham juntas para negar o que somos realmente: Mamíferos falantes; animais perigosos e belicosos. Somos a mais mortal criatura sobre a terra. Assim, humanizar o animal é preciso. Essa é uma das funções éticas da Educação.
Ora, meu amigo, se a epifania do sujeito via linguagem, e no caso deste breve ensaio, via enunciado esconde a realidade do mesmo, então, afinal, onde encontrar o sujeito? A resposta a essa pergunta é fundamental para que o educador exerça seu trabalho com ética e objetividade. Pois, se não conheço o homem que pretendo educar; como educa-lo, então? Para que? Qual o modelo?
A história da educação humana é a historia de teorias, de propostas, de modelos, de filosofias, enfim, a história dos mais diversos conceitos de homem que já conseguimos produzir. Portanto, infere-se pelo testemunho da história da educação humana que o homem educa as gerações em função de um sentido de realidade, e este está culturalmente ligado à malha de sentidos de uma determinada sociedade, em um determinado tempo e espaço. Estou dizendo que as relações materiais concretas dos homens é que dizem qual o sentido da realidade, assim, elas inspiram as mais diversas teorias sobre a Educação humana.
As religiões, os mitos, os heróis, os vilões, os super-heróis, os monumentos, as instituições, os títulos, as insígnias, os brasões, enfim, todos os símbolos e criação humana falam de sua relação objetiva com os meios de produção e consumo de riquezas. A divisão do trabalho, as hierarquias, as estruturas sociais e tudo mais que criamos são sentidos oriundos de nossa relação com a matéria ou com a sobrevivência. Num sentido mais amplo, com a nossa relação com as riquezas e sua distribuição. Portanto, educar é sonhar e fazer sonhar. Pois, se não há um conceito único de homem, se não há uma substância concreta, se não temos uma pista para encontrar o sujeito, então, tudo que dizemos sobre ele pode ser um sonho ou um sentido dado em um dado momento; uma atividade onírica em estado de vigília. Nossa espécie precisa acreditar que existe um sentido além da matéria, ou o sentido UNO. Quanto a este, não é propósito deste ensaio discuti-Lo.
Assim, meu caro Souza, a epifania do sujeito é um sonho para si e para o outro. Enunciar o mundo é dizer de nossos sonhos num primeiro momento. Todavia enunciar é criar na matéria pela matéria pensante, ou a vontade do homem um mundo objetivo onde nele os homens jogam o jogo da realidade, ou de sua conjuntura socioeconômica. A relação do homem com a natureza produziu uma realidade ideológica que embora sonho nos afeta objetivamente. Cabe ao educador sonhar com o educando, mantê-lo sonhando, pois, a civilização precisa continuar, todavia, é, também, um fim ético da educação fazer o sujeito perceber que não há sentido em toda a malha de sentidos, cabe, então, a ele, unicamente a ele, produzir os seus sentidos dentro das possibilidades do jogo que já está posto. Sonhar é também escolha e escolher faz parte do jogo da vida.
À percepção dessas coisas deve o educador estimular seus pupilos. Isso é possível sem comprometer a proposta conteudista das instituições de educação. Somente percebendo que sonhamos é que acordamos, e quando isso ocorre nos encontramos a sonhar novamente.
Reduzir as assimetrias discursivas entre os interlocutores; aproximá-los, e garantir ao educando a capacidade de sonhar, e de despertar para sonhar de novo, é o fim último da missão de um educador. O educando precisa saber que não existe um modelo real de sujeito, mas, que existem diferentes olhares, ou sonhos sobre o mesmo. O sujeito só pode ser percebido no ato único da enunciação.
Meu caro Souza, as crianças do sertão sonham. Há uma geração chegando mais uma vez. Minha angustia aumenta a cada passo que vejo entre nossos colegas a falta de percepção da realidade. Muitos acreditam no real como se ele merecesse plena confiança. Muitos dos companheiros estão presos a uma visão mítica de um sujeito que pode ser visto, ou tocado; de uma substância constituinte do mesmo, de uma epifania plena do ser. Esquecem os homens que somos um sendo; um perpétuo movimento de sentidos, um devir na busca do UNO.
Para concluir, meu amigo sociólogo, na natureza não há sentido. Todo sentido é criação do homem, exceto, o UNO. Não quero te excitar falando Dele, apenas digo que na matéria o verdadeiro sentido é a falta de sentido. Educando assim, libertarás a ti mesmo e aos teus discípulos. Muita paz e Luz!



     







sábado, 25 de outubro de 2014

Por uma Rede de Auto-Gestões Micro-Associativas

Em contextos antecedentes, os interesses coletivos se sustentavam em opiniões mais gerais. Porém, com o surgimento dos meios de comunicação como os jornais impressos, o rádio, a televisão, e, posteriormente, a internet, o número de informação, assim como as trocas entre diversas culturas, fez com que aquelas opiniões antes gerais, se fragmentassem cada vez mais. Ou seja, hoje em dia o que vemos é uma diversidade de interesses a nossa volta.

É por isso que eu acho que antes de pensarmos na idéia macro de um centralismo político decidindo pelos diversos interesses que compõem uma sociedade, seria melhor pensarmos em uma alternativa capaz de atender a esses diversos interesses mais particulares e micros de cada grupo social, sem com isso perder o senso de coletividade mais ampla. Eu acredito que o caminho para isso seria o que eu chamo de Rede de Auto-Gestões Micro-Associativas.

Se tomarmos como exemplo um dos tantos grupos sociais como o grupo que luta pelo fim do racismo, por exemplo, observamos que dentro dele existem vários outros interesses, e, portanto, vários outros grupos. Esclarecendo: uma mulher negra e pobre sofre certos problemas que uma mulher rica e negra não sofre. Uma mulher negra, pobre e homossexual exige certas mudanças na sociedade que uma mulher negra e até mesmo pobre, porém, heterossexual, não exige.

Se quisermos colocar apenas a categoria mulher negra, pobre e homossexual para resolvermos o problema, ainda assim encontramos dificuldade. Se pensarmos que a mulher negra, pobre e homossexual vem de uma formação religiosa diferente de outra, iremos encontrar opiniões que se conflitam. Mesmo se as duas tivessem a mesma formação religiosa, elas, por serem indivíduos, se distanciariam de algum ponto nas opiniões de uma em relação à outra.

É devido a isso que eu acredito que a idéia de representatividade política já não funciona de forma satisfatória em nosso dia a dia permeado por tantos interesses divergentes. A idéia de representatividade diz respeito a uma organização onde um pequeno grupo é eleito para representar uma imensa coletividade. A pergunta que faço é a seguinte: esse pequeno grupo representa a quem? A coletividade? Mas qual, se essa coletividade possui uma infinidade de outros grupos?

Além de ser excludente, uma vez que a representatividade diz atender “a todos” e esse “todos” são vários, e, portanto, no final das contas vai ter que responder mais por um interesse de um grupo do que do outro, ela não faz dos indivíduos agentes autônomos. Digo isso pelo fato de que, como a representatividade implica em um grupo respondendo por todos, o resultado é que haja uma parcela maior da sociedade distante das decisões tomadas pelo pequeno grupo.

Ou seja, os diversos grupos, por ficarem à espera das decisões tomadas pela cúpula, não aprendem a agir, a exigir, a lutar e a buscar pela realização dos seus interesses. A representatividade é também elitista justamente por isso, uma vez que ela se distancia do “grupo” o qual ela diz representar. Se existissem formas micros de representação, acredito que não só os interesses seriam mais dialogados, como a relação entre os indivíduos seria mais participativa.

Antes eu preciso dizer que não sou contrário à escolha de representantes. Acredito ser necessária a escolha de pessoas eleitas por um grupo para lutar pelos seus direitos e interesses. Mas acho que para haver a efetiva participação dos indivíduos que pertencem a esse grupo, é necessário que ocorra um estímulo para a auto-gestão. Sem o respeito à individualidade não há possibilidade alguma de diálogo e de participação entre os indivíduos, o grupo e seus representantes.

Como seria então? Em vez de um pequeno grupo representando uma imensa coletividade composta de infinitos interesses, existiriam várias micro-associações em forma de rede representando cada um dos diversos grupos que compõem a sociedade. Portanto, cada uma dessas micro-associações representaria um grupo em específico. Uma micro-associação representando o grupo de mulheres negras, outra representando mulheres homossexuais, etc.

Como os grupos se ramificam em outros grupos, as mulheres homossexuais poderiam recorrer a um grupo feminista, por exemplo. Se os grupos se confrontassem em alguns pontos, uma mulher negra vinda de um grupo de mulheres homossexuais poderia criar um grupo de mulheres negras, homossexuais e feministas. Se esse grupo dialogasse com os das mulheres de baixa renda e entrasse em conflito, se criaria um grupo de mulheres negras, feministas, homossexuais, pobres e assim por diante.

Se uma mulher negra e rica discordasse desse grupo criado para atender seus interesses, ela criaria outro grupo de mulheres negras, ricas, feministas e homossexuais. Como os grupos iriam se afunilar cada vez mais, seria mais fácil elas dialogarem e se organizarem entre elas, exercitando a auto-gestão, como também participariam das decisões coletivas, visto que os representantes estariam mais próximos e familiarizados com elas nas micro-associações.

Poderia acontecer de uma mulher em um grupo compartilhar também com alguns ideais do grupo que defendesse os interesses dos homens homossexuais, dos músicos, dos deficientes, etc. Nesse caso, ela poderia recorrer a eles, dialogar, participar e voltar ao seu grupo ou sair de seu grupo e criar outro grupo representando as mulheres. É por isso que para mim esses grupos deveriam se movimentar em formas de rede.

Enfim, os grupos poderiam se conectar uns com outros, assim como se desconectar; poderiam se desfazer e se refazer. Surgiriam constelações infinitas em constantes diálogos. Portanto, haveria auto-gestão com cada um livre para decidir em seus grupos; existiria o exercício da participação política por escolherem seus representantes para cada micro-associação, como haveria a prática do diálogo por se mobilizarem em formas de rede em constante processo de trocas.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O partido torto

O olhar torto, confrontando algumas questões impostas como oficiais e vigentes, declara de forma bastante nítida sua posição política diante do mundo. Essa posição se reflete como desagrado acerca das convenções que nos submetem; sua posição reprova qualquer atitude que nos assujeita a uma existência imposta. Comportar-se de forma torta não implica em qualquer tentativa institucional que queira uniformizar as ações humanas.

Acredito no partido torto sem o p maiúsculo. Acredito que o torto é um partido corroído de transações, interações, associações rasteiras que se desenvolvem dentro de uma esfera micro, sejam essas relações inseridas nos espaços públicos, sejam elas inseridas no espaço privado. O p maiúsculo é, humanamente falando, minúsculo demais. O partido maiúsculo impera, dita ordens, centraliza poder, admira as decisões tomadas pela cúpula.

O partido torto é partido, mas não por funcionar igual aos aspectos burocráticos e falidos da máquina administrativa institucional, e sim, por funcionar pulsando feito um coração alimentado pela paixão e descrente com a certeza plena do amor. O partido torto é a inscrição discursiva borrada e apagada de textualidades que se amontoam de sentidos, mas que se ferem pela falta de garantia acerca de qualquer certeza definitiva.

O partido torto é partido por ser uma mera tentativa de disparar discursos, sabendo que estes não passam de textualidades cheias de fraturas que se velam por detrás das certezas. Se há um partido para o torto, esse partido me parece ser a falta que nos motiva a sonhar e que ao mesmo tempo nos derruba em uma cama amontoada de lençóis bagunçados refletindo as nossas próprias corrupções alimentadas pela dor do não-saber.

O partido torto não é partido por se encontrar ilhado e se achando um todo dono de todas as certezas para o mundo. O partido torto é justamente partido por entender que vive em um todo, mas em um todo cheio de partes que se ramificam, se aliam, se alternam, se conflitam, e por isso mesmo, sabe que não é um todo formado por um todo acabado, e sim, por vários todos se tod (ando) a todo instante.

É devido a isso mesmo que para mim, o torto é corrupto por saber que é ético, ou seja, estar no partido torto é nunca se encontrar dentro dele constantemente, mas sim, transgredindo as fronteiras que explodem os limites da territorialização do que se acredita como Partido. É reconhecer que vive em prol de uma ética por a todo instante se deparar com a inevitável auto-corrupção que acompanha qualquer humano dotado de carne, de sonhos e de osso.

Por ser político, visto que implica em debates, reflexões, conflitos, emancipações, perdas, conquistas, faltas, mudanças de ótica, de lados, de laços, de alianças, o ser torto é algo que se constrói somente quando se encontra em meio a um imenso e infinito bombardeio capaz de destruir qualquer coisa que se ergueu. O ser torto implora por não ser-sendo, pois ser por ser é anti-humano, é anti-vida.

O ser torto não sendo-sendo, aceitará a imensa deturpação que o humano faz de si justamente por não estar apto em acreditar na capacidade humana de se apropriar de um todo perfeito. O ser torto, por outro lado, não se furta da idéia de acreditar no humano como um ator concreto e capaz de se reconhecer ativamente enquanto um sujeito construtor da história e responsável pelas possíveis e grandiosas conquistas sociais.

No entanto, por ser sem ser, o olhar torto sabe que o humano se constrói sem conhecer o projeto arquitetônico de si. Por ser sem ser, o olhar torto não deixa de enxergar que, apesar do humano vislumbrar claramente os horizontes que o acolhem em sua volta, não é capaz também de detectar a mais mísera condição que se encontra descaradamente revelada em seus olhos enriquecedores e medíocres.

Quer pertencer ao partido torto? Não pertença. A entrada está sem porta e sem chave. É só entrar. E por favor, ao entrar, bagunce o máximo possível todas as estruturas e compartimentos que foram construídos por quem estava dentro dele a sonhar com a ordem e a segurança, pois estar seguro e ordenado é apenas uma mísera necessidade infantil de negarmos o verdadeiro fluxo da existência que é o não ter fim.

Participe do partido torto sabendo que a frondosa floresta cercada pelo imenso rio que se encontram a sua volta, são seus também, e que o que é seu também por certo não será completamente, pois as florestas, os rios e o torto é uma questão de achar ser alguma coisa, mas jamais o que é. Venha ao partido torto para não querê-lo e para se degustar dele não por inteiro, mas apenas a partir das partes e nada a mais.

Faça o bem, faça o mal, seja justo, seja injusto, faça calúnias, respeite ao próximo, alimente sua alma, se perca na imensa dor de ter alma, afinal, todas essas coisas são coisas construídas para serem coisas. Mais que isso, é mais nada! Devore o partido torto e o traia a todo instante, pois ele precisa da aventura humana, ele necessita da crise que repercute dentro dos corações que se querem humanos (pois apenas querem).

Cuspa com muita vontade no partido torto, pois terá todo o apreço dele. Se não cuspir, o partido torto rirá de sua hipócrita e medíocre necessidade de querer se externar enquanto Super-Herói. Quer proteger o partido torto? Crie projetos, pois estes alimentam a fome e os sonhos que sustentam a humanidade, mas manipule as supostas verdades e seja cruel por buscar exercitar a virtude do que é também ser desonesto.

Que se faça a justiça por se saber que está apto em fazer o mal, sabendo que basta apenas ter circunstâncias favoráveis para isso! Que se reconheça a possibilidade de ferir, de ser patético, de ser inútil, por saber que pode e poderá sempre que houver situações pertinentes para tal, saborear a delicia e a delicadeza da sensação de se fazer o bem. Que se faça o angu, a gororoba, a indigestão, a dieta, a guerra e a paz.

Ao votar no torto, não espere aglomerados de pessoas acompanhando as contagens de votos e torcendo para a sua vitória. Votando no torto, irá se deparar com crises como sempre se deparou. Na contagem dos votos, todos estarão simplesmente vivendo, comendo pipoca, chorando e sonhando com um mundo melhor sem sequer lembrar que existe um idiota escrevendo sobre o que é partido torto e sobre o que é ser torto...

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A arte, a carne e o vento

O humano é a sua própria tormenta. Dentro de sua alma, cidades inteiras são devastadas pela fúria das tempestades do amor. Sim, o amor não entendido, o amor não codificado. O amor é a principal ameaça que acolhe o humano. Ao mesmo tempo em que o dissolve, o liberta para uma paz penosa. A garantia do acolhimento é fogo que se alastra por todas as direções abafando-o pela fumaça estonteante da cegueira do que lhe falta.

A falta... grande enigma revelado ocultamente em nosso dia a dia. A falta é a grande anunciadora dos desvelamentos reticentes que machucam todos os corpos cobertos de espíritos. A espiritualidade, assim como a tamanha certeza do que se encontra diante dos olhos humanos, não passa de uma aventura rarefeita, amaldiçoada e tão admirada feita de carência permeada de incógnitas que perduram na alma do ser.

Uma chuva intensa que alaga os poros do conforto da vida inunda todas as possibilidades dos humanos enxergarem a paisagem a sua volta pela falta de claridade da luz que acham sempre que os norteia. Nas mãos- sensações, apenas folhas de papel molhadas que se dissolvem pela força colossal das águas que os cobrem com esses oceanos irritadiços e incontroláveis daquilo tudo que chamam de razão.

De tudo aquilo que se dissolve em suas mãos-sensações, nada mais lhes resta a não ser a convicção de que não têm ao seu dispor todas as explicações contidas acerca das suas lágrimas e dos seus surtos de felicidades provisórios que constavam naqueles papeis. Abrem seus dedos e apenas ficam a observar as folhas dissolvidas escorrerem pelo ralo do lado de fora de dentro das suas almas.

Só resta aos temerosos e covardes humanos a indignação de poder construir sentidos à sua volta em meio a uma existência claramente fragilizada e humilhada por serem cegos demais para encontrar todos esses sentidos que a falta tece e constrói. A finitude abre suas portas, convida-os para entrar e os trancam em um quarto escuro cheio de tempo, de espera, de expectativa, de eternidade de ânsias.

A arte! Sim, a arte pode ser o último refúgio capaz de acalentar uma turbulência de espírito sem porto como o coração do ser. É nada disso. A arte cinicamente termina por revelar tudo aquilo que estava escondido no fundo do navio e tudo aquilo que parecia seguro pela âncora que adormecia calmamente diante da inquietude do mar. A arte se faz presente, disponibiliza todos os seus sorrisos e devolve a morte que os acompanha.

Do prazer reaparecem os seus gritos traiçoeiros que os enganam o tempo inteiro. As janelas se abrem e os ventos de fora terminam também por entrar no imenso corredor de almas incessantes de sonhos, de desejos e de delírios. A arte concede ao humano todo o amor possível desse mundo, mas entrega uma carta-despedida descrente acerca de qualquer possibilidade de se viver intensamente esse mesmo amor.

A arte dá aos humanos a coragem de enfrentar os imensos rochedos do mar que os consome, mas os faz manter suas intensas covardias de aceitar as cicatrizes e ferimentos provocados pela mesma força das rochas corroídas pelas águas desse mar. A arte é a mãe prazerosa protetora do santificado acolhimento dos nossos medos, mas que abre a porta e nos deixa sós, permitindo que o mundo nos ensine a nos perder a todo instante.

sábado, 20 de setembro de 2014

ANGUSTIA DOCENTE III

MENTALIDADES DE UMA LOCALIDADE

O que mais caracteriza o homem contemporâneo é sua pluralidade de papeis. Seus personagens são tão diversos quanto as histórias por ele escritas. Meu caro Souza, mais uma vez discorro sobre o sujeito educando. Este é um personagem multifacetado, um homem chamado para a representação de mundo. Este homem construído pelo fluído social é, sem a menor dúvida, uma representação interna de uma realidade externa. A materialização do mundo externo em suas entranhas psíquicas ocorre via condicionamentos em um primeiro turno. Somos engendrados no meio onde nos encontramos e esse exerce força coercitiva sobre nós de tal sorte que nos tornamos um com o meio e não percebemos.
Adquirimos peculiaridades comuns ao ambiente físico como o ajustamento orgânico às determinantes climáticas, nutricionais, barométricas, e outras. O saber humano já comprovou sobejamente essa premissa. Da mesma forma, o ambiente psicológico, psíquico, ou simplesmente, o ambiente cultural exerce uma força tão poderosa quanto as forças materiais da natureza. O homem, podemos dizer, é matéria bruta e espírito moldado, ou lapidado pela potente força da cultura.
Não se pode desconsiderar a ação construtora da educação informal. Essa foi e ainda é a mais poderosa forma de educação humana. O que aprendemos na escola pode até ser em qualidade acadêmica algo melhor do que aprendemos em casa ou com os amigos. Contudo, somos construídos pela informalidade da educação carreada pelas relações primárias do lar, e pelas relações secundarias e terciárias das ruas, becos, praças, etc., de nossa localidade. Foi no lar que nos tornamos sujeitos do discurso, ou sujeitos falantes. Ninguém pode questionar a riqueza desse aprendizado que ocorre na escola do lar. O ser falante é produto da educação informal e assistemática.
É esse sujeito, forjado nas chamas do calor familiar, que se apresenta a nós educadores na frieza da escola convencional. Esse sujeito, como um dente necrosado, é arrancado da educação informal para durante grande parte sua vida aprender os arcanos da civilização humana. Aqui, meu caro Souza, se encontra a mais recente de minhas angustias.
A escola é uma instituição que não se adequa às exigências de uma prática docente revolucionária como diria o nosso irmão Freire. Em nosso país, a sociedade não decide o que seus filhos devem estudar, e isso aumenta ainda mais o fosso entre o lar e a escola. O choque entre os dois sistemas é, sobretudo, perturbador para aquele que inicia a senda escolar.
A escola pública não parece ser tão pública, pois, o que vemos nela são os interesses de uma classe social sobre as demais. Assim, o público é demasiadamente interesse privado. Desde a formação dos mestres, passando pelos conteúdos das grades até a aulinha do dia-a-dia encontramos marcas nítidas de interesses hegemônicos na educação pública do sertão do Brasil.
A ideia de formação do sujeito, ou de educação do sujeito surge das necessidades da classe mais forte e do interesse de controle pelo estado. Alguém, um dia disse: “Quando a educação forma e controla o sujeito, ela lhe impõe uma concepção de realidade”. Meu caro Souza, não existe realidade humana que não seja produzida pelo homem, exceto, os acidentes ou as contingências, mesmo assim, as contingências podem ser indiretamente resultados das ações dos homens. Fora isso, só existe a natureza. Infelizmente, ninguém escapa do controle do outro. Parece que nossa espécie se especializou no domínio das populações. A base de nossa civilização está aí – o controle.
A educação seja formal ou informal cria “mentalidades”, e estas são representações, sobretudo, psíquicas de nossa cultura local. Vejamos o caso do aluno X da Escola Municipal de Ensino Fundamental Álvaro Alves de Matos. O aluno tem 8 anos de idade e nele encontramos, de forma bem viva, embriões da mentalidade presente no comportamento e discurso dos adultos da mesma localidade. O aluno X foi abordado pelo professor sobre o dever de casa. O aluno respondeu ao professor dizendo que não o fez porque estava doente. Seu colega, de imediato, meteu-se na conversa e disse que era mentira. De fato era mentira. Deparamo-nos com pequeninos que fornicam, mentem, trapaceiam, subornam, roubam, se intrometem nos assuntos alheios, e externam um grande prazer no fracasso do outro. O conjunto formado por essas ideias mentais e outras é o que chamamos de mentalidade. A mentalidade dessa criança de 8 anos reflete a mentalidade de seus pais. Nossa educação formal não tem conseguido reelaborar essa primeira educação. A informalidade do lar foi a forma como ela foi realizada, ou seja, como um meio ambiente simbólico, um meio valorativo do mundo lhe conferiu o status de natureza. Como ocorre nas relações orgânicas. Então, a criança, ou o adulto diz: “É minha natureza”.
A macro mentalidade de uma Estado tem sua sustentação na micro mentalidade das diversas classes sociais que o constitui. Isso é o mesmo que dizer que o estado é reflexo da sociedade. O monólogo do ESTADO é sua força coercitiva sobre as sociedades e força geradora de mentalidades, por isso, o estado não está livre das educações informais. O estado cria a mentalidade que deseja e por ela é também moldado. Quando o monólogo estatal atinge as camadas de baixo capital intelectual, ele recebe o retorno de sua ação na mesma proporção e medida. As classes pobres respondem por meio de sua lógica, que na grande maioria das vezes, é como o aluno X. Se analisarmos os discursos do aluno X encontraremos as marcas do discurso do estado.
Dizendo assim, meu caro Souza, estou propondo uma análise dos discursos das diversas camadas sociais presentes na escola pública para que ganhe o status de real nossa proposição: “As mentalidades sociais são constituídas de discursos hibridizados, uns representam o discurso colonial outros representam o discurso pós-colonial e todos possuem os dois, e outros discursos que destes derivam”. Essa é, no meu olhar, a grande marca presente em nossas mentalidades. Somos mestiços na cor e na alma.
Não podemos fugir dessa proposição, pois, se os textos escritos formam uma malha discursiva, pois, são constituídos de fragmentos de outros textos, podemos inferir que todo discurso trás genes ideológicos de outros discursos, portanto, sobre nós e em nós há uma imensa malha de discursos e essa rede híbrida, ou misturada é o fluído amniótico da gestação de nossa brasilidade.
O que minha humilde pessoa chama de mentalidade é a resposta psíquica do sujeito a essa teia. A teia suscitará diferentes representações da realidade de acordo com o capital intelectual de cada localidade e de cada sujeito histórico. Tomemos por exemplo o sertanejo do Jabiberi e o sertanejo da sede do município. O primeiro processa os discursos com muito mais misticismo e fetiche do que o da capital municipal. Percebe-se que o homem do campo acredita muito mais nos discursos do estado de que os que moram em cidades maiores. Em Campos é pecado usar boné, mas, no Jabiberi, tornou-se um motivo de sanções na escola. O baixo capital intelectual favorece uma abordagem ingênua da realidade.
O sujeito educando do sertão de Campos age segundo sua mentalidade. Isso faz necessária uma educação libertadora, uma educação para a formação de novas mentalidades com vistas à autonomia do ser. O sujeito do sertão encontra-se intelectualmente na colônia, nas sesmarias e latifúndios, nas plantações de cana-de-açúcar, e criação de gado. Ora, ele representa o papel de um homem moderno, interage com as tecnologias, reage quase que mecanicamente a educação da mídia de massa; parece livre e emancipado, e, ora, ele se submete ao domínio dos senhores do gado. Ele, como um único ator, representa os diferentes papeis que lhes são apresentados pela força das relações sociais do seu cotidiano. Mas, no final, ele não tem nenhuma consciência do que fez e do que se encontra sobre ele.
A mentalidade de nosso alunado e de seus pais dificulta nossa prática pedagógica. O aluno não entende o porquê, mas, ele carrega em seu comportamento para com o estudo e o conhecimento, o mesmo desprezo que o nosso governo têm demonstrado para com o homem pobre do campo ao longo dos séculos. As atitudes de desconfiança da escola, de agressão, de indisciplina e de descaso, refletem como um segundo discurso, o que o primeiro já dizia há décadas. Esse é, portanto, um discurso híbrido. De um lado ressoa a esperança de transformações sociais via educação, de outro lado, a escola é uma tortura, sem sal, sem qualidade e, sobretudo, sem verbas. No primeiro discurso, o aluno se apresenta como um sujeito ávido pelo saber, comportado, disciplinado e zelador da escola, do outro lado, no segundo discurso, o aluno esboça violência, depreda a escola, ridiculariza a instituição sem, no entanto, perceber quais são as forças que agem em sua psiquê. Porém, ele sabe de alguma forma, que a coisa pública, em nosso país não é tão confiável.
É sabido que os discursos são construídos dentro de uma situação discursiva concreta  onde existam sujeitos lotados num determinado espaço que compartilham o mesmo código linguístico, e sob uma realidade de produção e distribuição de bens materiais. Os discursos são tão materiais quanto seus produtores e os mesmos refletem as condições sociais de seus interlocutores. O discurso é uma epifania do ser, um momento único em sua existência, portanto, o discurso não apenas exterioriza o sujeito, mas, o espelha, reflete seu modelo, sua mente. As mentalidades reproduzem o que as sucessivas gerações de seres humanos pensaram. Com isso, digo sem medo de erro: “A mentalidade nacional quanto a educação ainda é a mesma das relações coloniais”.
Meu caro Souza, não se pode descartar os condicionamentos na constituição das personalidades humanas, bem como na produção de discursos. Dizem que cada indivíduo carrega uma quantidade específica de características que o define como sujeito no mundo. Essa classificação parece um tanto arbitrária, todavia, quem não sabe que todos os humanos podem ser agrupados em categorias em um dado momento? As categorias que caracterizam o sujeito não são fixas, elas são tão voláteis ou fluídas quanto à imprevisibilidade do mesmo. O sujeito é uma surpresa para si e para o outro, um ser imprevisível e incógnito, todavia, podemos encontrar evidências de sua passagem no mundo pelas marcas de seu comportamento e de seu discurso.
Somos condicionados pela cultura; somos condicionados pelo meio físico; somos condicionados pelo meio psíquico; somos condicionados pelo meio econômico; somos condicionados pela EDUCAÇÃO; seja na forma informal, seja na forma formal. Assim, urge uma ruptura epistemológica em nossa sociedade para que surja definitivamente outra sociedade e nela outra escola. Sua pessoa diria, amigo Sousa, que esse sertanejo vive uma utopia. Mas, qual é o educador que não sonha? Tanto sua pessoa como a minha sabem que viver é sonhar.
Nossa espécie constrói por aprendizagem o que os psicólogos chamam de personalidade. Aprendemos no modelo informal, até sem querer. Aprendemos por imitação, aprendemos por condicionamentos, aprendemos por modelagem, aprendemos de todas as formas, quer queiramos ou não, nossa espécie está sempre aprendendo. Saímos na rua e voltamos para casa com mais um palavrão para nosso repertório. Quer gostemos dele ou não, o palavrão que estava na boca do OUTRO, de alguma forma passou para minha. Mesmo que eu deteste música de duplo sentido, aprendo sua letra sem querer. De repente, sem intenção consciente eu estou a cantarolar essas musiquinhas repetidas nos rádios de todo o Brasil. Há, fora de nós, algo muito maior de que nós, e nos empurra a aprender tudo que a maioria acha legítimo, mesmo contra a nossa vontade e furando nossa vigilância.
A totalidade das mentalidades é tão poderosa que domina a individual e torna o a personalidade individual um pequeno reflexo da personalidade da totalidade. Será isso um esmagamento do ser? Será isso um determinismo social irresistível?
Meu caro Souza, aqui se encontra uma das maiores contribuições do pensar existencialista. O sujeito é vontade e escolha! Embora, condicionado, seu espírito arranja uma saída para que o arbítrio humano se firme sobre a terra como a bandeira de sua individualidade. O coletivo está em nós, mas, ainda somos indivíduos que escolhem um novo caminho. Com isso, afirmo sem medo de erro, apesar dos condicionamentos, nossa capacidade de arranjar e reorganizar a estrutura de nossos discursos que os tornam discursos nunca acabados, discursos que prevê outro, discursos que serão sempre o prelúdio de uma cadeia infinita de possibilidade de arranjos discursivos; e isso, amigo das letras, nos faz sujeitos que estão para o discurso assim como a o sentido para a palavra. O sujeito é único, a matriz de todo sentido!
Dizendo isso, digo que toda e qualquer mentalidade construída historicamente pode, pela produção de novos discursos ser mudada. Na natureza tudo é transformação, e mudança. Assim como as mentalidades foram forjadas, da mesma forma elas podem ser desconstruídas. Muito mais agora que dispomos de aparelhos tecnológicos que podem acelerar o processo. Alguém disse: “Uma sociedade não se muda da noite para o dia!” Eu, humildemente, digo: “Ponha os aparelhos ideológicos da sociedade a serviço de outra mentalidade e esta mudará rapidamente”. A velha mentalidade continua porque ela é lucrativa para setores da sociedade e não porque não pode ser mudada.
A criança chega à escola com seu programa mental bem definido. O novo conhecimento poderia mudar tudo isso se o aluno rompesse a fronteira da mera descodificação dos discursos e conseguisse apreender seus sentidos. Está no analfabetismo funcional e no aletramento o apoio para a sustentação das mentalidades retrógadas ou o mentalismo chulo brasileiro. Deveria ser do interesse nacional a ruptura epistemológica das crianças do sertão.
- Olhe ali! O que você vê?
- Um mandacaru.
- O que é um mandacaru? O que eu tenho a ver com isso? Tá doido professor?
- Um mandacaru é uma cactácea que nasce nas regiões áridas e semiáridas.
- O que é isso?
- É onde você mora.
- Eu num moro no sertão não!
- Você mora no sertão de Sergipe. Na caatinga hipoxerófita.
- Eu moro no Jabiberi.
- Então, o Jabiberi é seu sertão.
- O que é que eu tenho a ver com isso? O que o senhor quer dizer?
- O mandacaru nada diz a você?
- E mandacaru fala?
- Sim, somos nós que lhe damos a voz.
- O professor é doido. Fumou droga?
- O mandacaru está incomodado com as cercas.
- Que cercas?
- Você nunca viu que daqui até a capital do município tem cercas dos dois lados?
- Nunca tinha reparado nisso não!
- Seu pai tem roça?
- Não professor o Senhor sabe que moro nas “batatas”.
- Você já viu que quem mora nas batatas não tem cercas e nem muros?
- Nunca tinha reparado não.
- Professor, ave! Que conversa chata!
- Só mais um pouco. Quem eram os donos dessas terras?
- Num sei.
- Quem são os donos agora?
- É o povo rico de Tobias.
- Tem alguém rico do povoado?
- Não.
- Pra onde foram os donos de terras daqui?
- Sei não.
- Mas, você concorda que havia?
- Certo, concordo.
- Pra onde vai o dinheiro dessas terras?
- Pra Tobias.
- E as terras não estão no povoado?
- É, mas, é assim.
- E o que tem nas terras de vocês?
- Só gado. Aqui não serve pra plantar.
- As plantas não gostam de vocês?
- Os antigos diziam que aqui não nasce nada. Só capim pra gado.
- Mas, eu plantei no meu quintal e deu de tudo. Isso é mentira dos antigos.
- E nasceu professor?
- Claro!
- Sabia não...
O diálogo acima ocorreu na verdade. Meu caro Souza, minha humilde pessoa abordou um aluno do 9° ano do ensino fundamental da escola onde sou pedagogo. Analisando o discurso do diálogo podemos inferir algumas coisas que nos levam para a mentalidade que inspira o aluno, e fazendo isso, nos deparamos com a fragilidade da educação do sertão de Campos. O nono ano é o fim da primeira fase do ensino fundamental. Um aluno do 9° ano estudou História Geral, cálculos complexos como as equações do segundo grau e quadrática. Estudou nos quatro anos Sociedade e cultura de Sergipe. Estudou uma língua estrangeira, estudou ciências físicas e biológicas. Estudou geografia natural e crítica, estudou história do Brasil, redação, língua portuguesa – sua sintaxe e morfologia, portanto, em tese, esse aluno deveria saber alguma coisa do diálogo acima, mas...
[1] Seu locus existencial:
Os enunciados abaixo visaram situar o aluno em seu lugar histórico. O discurso ocorre num lugar preciso e traz suas marcas. Quando o sujeito conscientemente não reconhece isso, as marcas surgem de outra forma, por outra via, o inconsciente. O aluno abordado não tinha consciência de seu lugar; ele é um sujeito sem lugar.
/Olhe ali! O que você vê?/ /Um mandacaru./ /O que é um mandacaru? O que eu tenho a ver com isso? Tá doido professor?/ / Um mandacaru é uma cactácea que nasce nas regiões áridas e semiáridas./ /O que é isso?/ /É onde você mora./ /Eu num moro no sertão não!/ /Você mora no sertão de Sergipe. Na caatinga hipoxerófita./ /Eu moro no Jabiberi./ /Então, o Jabiberi é sertão./
- O professor evocou para o aluno seu locus de vida. /É onde você mora./
- O aluno não tinha a consciência do mesmo. /Eu moro no Jabiberi./
- Nem tinha uma posição de enfrentamento de seus conflitos. Sua posição era de indiferença e passividade. Esse comportamento é pior que o da mentalidade do negro escravo. O negro enfrentou a escravidão de diversas formas. Havia uma consciência negra de resistência nos períodos de escravidão no Brasil.
/O que é um mandacaru? O que eu tenho a ver com isso? Tá doido professor?/ A pergunta do aluno aliada ao tom de voz empregado para fazê-la mostrou nitidamente que o aluno não se sentia parte de uma história e nem se colocava na posição de produtor de discursos. Sua postura foi passiva, dominada, domada.
O enunciado interrogativo /tá doido professor?/ nos leva a crer que o aluno viu na conversa do mestre algo fora do seu programa cotidiano. Algo fora de sua mentalidade, portanto, estava fora do que ele achava ser normal. “Normal é ninguém questionar nada, professor”. Esse é o implícito da pergunta. O implícito que o aluno não tem consciência, por isso, faz uso do termo doido para censurar a ação do mestre. Todos devem dizer que tudo deve ser como é. Não pode haver uma ruptura epistemológica no sertão. Os paradigmas devem ser sustentados como válidos eternamente. Esse é o implícito presente nos discursos.
[2] Consciência sócio econômica:
Quando uma sociedade não sabe quais são as potências que orientam e movem os seus modos de produção e distribuição de riquezas, essa sociedade está intelectualmente emburrecida, e adoentada. Esse é o quadro do sertão de Campos – um povo que não sabe quem é, nem pra que veio. Um gado amansado para o corte.
- O que é que eu tenho a ver com isso? O que o senhor quer dizer?
- O mandacaru nada diz a você?
- E mandacaru fala?
- Sim, somos nós que lhe damos a voz.
- O professor é doido. Fumou droga?
- O mandacaru está incomodado com as cercas.
- Que cercas?
- Você nunca viu que daqui até a capital do município tem cercas dos dois lados?
- Nunca tinha reparado nisso não!
Os enunciados / Nunca tinha reparado nisso não!/ / Que cercas?/ / E mandacaru fala?/ nos mostram que os modos de produção e distribuição de riquezas de uma determinada população, por mais cruéis ou contraditórios que sejam, são naturalizados pelos discursos dessa sociedade (as cercas viraram paisagem natural). Tomemos como exemplo a mão-de-obra nas Américas durante o período colonial. Produziram-se discursos que legitimaram e naturalizaram a exploração do negro e do índio pelo elemento branco. Quem dissesse o contrário, era louco ou subversivo. Meu caro Souza, muito mais que minha pessoa, sua pessoa sabe que a escola enquanto aparelho das mentalidades dominadoras é legitimadora dos discursos dos que detém os modos de produção ou daqueles que dele se beneficiam direta ou indiretamente.
[3] Consciência política:
O aluno do sertão de Campos não faz a menor ideia da lógica de funcionamento de sua cidade. Ele não percebe as relações de poder nem consegue ver a relação disso com sua realidade de vida. Ele mora nas batatas cercado de gado para corte e leite, ou seja, cercado de milhões de reais. Sua pequena comunidade é constituída de pessoas pobres que certamente seus antepassados eram os donos daquelas terras que foram compradas por comerciantes de Campos. O poder no sertão é de quem tem o gado, a terra.
/Seu pai tem roça?/ /Não professor o Senhor sabe que moro nas “batatas”./ /Você já viu que quem mora nas batatas não tem cercas e nem muros?/ Esta sequência de enunciados mostra que o aluno do nono ano não conseguia perceber seu mundo. Após 8 anos de estudos na escola pública do sertão ele não conseguia correlacionar os pares semânticos:
Roça/terra; terra/poder; batata/sem terra; sem terra/sem roça; sem roça/sem poder; batata/sem poder.
/Nunca tinha reparado não./ /Num sei./ Este par de enunciados nos remete a ação pedagógica em sala de aula. Como o aluno não é ensinado a olhar focado nas questões contraditórias da sociedade, ele não percebe nada da paisagem ao seu redor. Esse mundo para ele não existe, exceto, se o mundo dele lhe for posto por meio do discurso senso comum de seus amigos de rua ou colegas de escola, o que será muito pouco provável. A escola não discute o mundo do aluno.
/... Quem eram os donos dessas terras?/ /Quem são os donos agora?/ Por sucessivas secas e suas mazelas sociais, pelo abandono do homem do campo no sertão, as terras dessa região do Brasil ficaram baratas. Os donos de lojas, os comerciantes compraram as propriedades rurais e investiram em gado. O campo vai ficando cada vez mais deserto, e as cidades mais cheia de mão de obra barata e desqualificada. O surgimento de favelas no sertão não é mais novidade, pois, a transferência da terra rural, das mãos de seu habitante natural para o lojista e criador de gado é uma das causas desse fenômeno. Nos anos Sarney e Collor muitos pequenos proprietários rurais venderam sua propriedades para investir o dinheiro da terra na poupança. Isso foi um fiasco para muitos, e o início da violência urbana de Campos. Hoje Campos conta com uma célula do comando vermelho. Existem indivíduos que pertencem ao PCC. O crime organizado encontrou na desordem e abandono do sertão um mercado fácil de controlar e vantajoso financeiramente. “Quem são os donos dessa terra?”
[4] A ideologia do gado:
- E o que tem nas terras de vocês?
- Só gado. Aqui não serve pra plantar.
- As plantas não gostam de vocês?
- Os antigos diziam que aqui não nasce nada. Só capim pra gado.
- Mas, eu plantei no meu quintal e deu de tudo. Isso é mentira dos antigos.
- E nasceu professor?
- Claro!
- Sabia não...
Tobias Barreto é uma cidade do interior de Sergipe. Uma das mais importantes cidades sergipanas, pois, a mesma congrega poder econômico, história e tradição. A antiga Vila de Campos como a chamamos em nossos textos é a cidade natal de um dos mais importante intelectuais brasileiros: Tobias Barreto de Menezes. Campos ainda é um dos mais importantes colégio eleitoral do estado, no entanto, enfrenta, atualmente, uma guerrilha urbana associada ao narcotráfico e ao roubo de cargas e gado. Campos é a segunda cidade mais violenta do estado.
O gado chegou a essas terras entre 1599 e 1622. Está na criação de gado bovino e caprino a primeira grande força econômica de Campos. O comercio de confecção disputa com o gado a supremacia na produção de capital. Estas são as duas maiores forças econômicas da região. Contudo, não existe nas escolas públicas de Campos nenhum projeto pedagógico que situe o alunado no contexto material e econômico de sua cidade. A escola se porta ingênua, indiferente aos processos que ocorrem fora de seus muros. Foi essa a causa do comportamento do aluno do 9° ano do Povoado Jabiberi.
Se a escola não funciona, as mentalidades híbridas permanecem, e com isso o sistema de exploração, e as vantagens de uma classe sobre as demais continuam.  A escola deve ser um manancial de renovação constante da sociedade. Deve ser um fórum de discussão sobre o que queremos para as futuras gerações de brasileiros.
Meu caro Souza, eu não pretendi esgotar o assunto. Reconheço que falar sobre a educação é algo muito complexo e exige muito trabalho. Eis a aqui minhas reflexões sobre minhas angustias na docência do sertão brasileiro. Muita Paz e Luz!