Dizem que o sertão nos ensina a pensar. Seu Godofredo Cruz, um dia,
disse para mim: “Meu filho, o sertão é uma escola cujo currículo é a
vida”. Lembro-me muito bem desse dia, pois ao ouvir as palavras do homem
fiquei um tempão pensando nelas. Devo confessar que não entendi bem as
palavras de Godofredo, mas, as guardo até os dias atuais porque eu pude
ver com os meus olhos que elas eram verdadeiras.
Godofredo
depois do acidente de Chiquinho caiu em depressão. A figura robusta de
um homem rosado e forte se transformara num esqueleto vivo que andava
com muita dificuldade. Quando o via, mesmo sendo ainda um jovem púbere,
minha alma chorava, pois, o velho Godofredo, embora severo em seus
julgamentos, era um homem bom, não merecia aquilo.
O Riacho do
Junco havia enchido muito por causa das trovoadas de Santana. Era
costume do velho Godofredo pescar nessa época do ano. “A pescaria alegra
meu homem” dizia dona Maria das Dores sua amada esposa.
Lembro-me
de tê-lo visto descer para as bandas do Riacho do Junco. O velho levava
sua tristeza e sua vara de pescar, e as iscas em um saco plástico. Ele
passou defronte a janela de meu quarto, por isso pude vê-lo com muita
nitidez. Seu rosto dizia para mim que Godofredo precisava de um milagre.
Ora, minha jovem pessoa num entendia muito de religião. O padre
Oliveira nos dera a catequese e a eucaristia, o resto, eu nada entendia,
na verdade, eu não sabia nada de religião mesmo, no entanto, Godofredo
fora coroinha quando menino, e quando homem feito, foi diácono da
igreja. Talvez tenha sido essa a causa de sua depressão, pois ter
servido a Deus com tanta fidelidade e perder o filho de forma tão fútil:
“Meus pêsames Godofredo!” Disse com um tom de sensibilidade o pároco da
igreja. Na missa, ele fez referência a Godofredo com as seguintes
palavras, eu tentei sorrir, mas, minha mãe beliscou-me na barriga:
“Psiu!” Amuado fiquei ao lado dela enquanto o vigário dizia: “Deus sabe
de tudo e tudo que nos ocorre é vontade dele”. Eu tentei dar uma risada,
mas, minha mãe acertou-me o topo da cabeça com um cascudo que até hoje
me recordo.
Godofredo, após a passagem de seu filho, tornou-se
como eu - um desconfiado de Deus. Desde criança que eu não entendia o
fato das pessoas não puderem ver a Deus como vemos as pessoas; eu dizia
com frequência: “Deus se ausentou e pôs a culpa no mundo”. Mas naquele
bendito dia, nossas vidas, a as pessoas de nossa comunidade teria uma
experiência que mudaria para sempre o rumo do povoado; e se alguém não
entendeu foi porque não viu a santa.
O Riacho do Junco naqueles
dias era de água tão cristalina que se via o fundo. Godofredo pescou
sete grandes tilápias. Após a pescaria Godofredo se prepara para voltar
para o povoado. Alguns macaquinhos comiam seriguelas num pé do dito
fruto que ficava na margem do riacho quase beijando as águas. Os
pequenos primatas comiam o fruto e jogavam os caroços dentro do riacho.
Godofredo observava a festa dos macaquinhos, e ao se aproximar deles,
eles gritaram e jogaram os caroços em Godofredo que tentou se proteger o
que o faz perder o equilíbrio e cair nas águas frias do Riacho do
Junco. A profundidade das águas do riacho era de dois metros; as águas
do riacho puseram Godofredo cara a cara com a santa misteriosa. Ela
tinha um manto azul que cobria seu corpo na cabeça e nas costas, na
frente um vestido de santidade branco. Godofredo a recolhe com cuidado e
nada de volta para a margem. Os macacos no alto do pé de seriguela
fazem uma festa com o estranho visitante Godofredo. A macacada balançava
os galhos do pé de seriguela fazendo as maduras cair, e elas caíam no
chão, algumas, porém, na cabeça de Godofredo.
Godofredo traz a
santa para casa. Sua mulher põe a imagem no seu altar doméstico. A santa
sem nome estava, agora, ao lado de Santo Antônio, São Francisco, Nossa
Senhora das Candeias e São Cosme e São Damião. Godofredo recobrou o
ânimo e voltou a frequentar a paroquia. O povoado ficou maravilhado com o
milagre que acontecera.
- Mulher, pois o homem num se levantou depois de ter achado a santa!
- E foi?
- Oh, você num sabe não?
- Não.
-
Godofredo achou uma santa e agora ele anda com os ombros pra cima, e
seu semblante voltou a ser feliz. Isso é um milagre! O povoado comemorou
a vitória de Godofredo, no entanto, havia a cobra chamada curiosidade. O
povo queria conhecer e ver a santa. As pessoas, no início, queriam só
dar uma olhada, mas, depois, os doentes e miseráveis começaram a chegar,
e com eles a paz da família foi embora.
- Padre Oliveira. Eu acho que num dá mais para a santa ficar lá em casa.
- Meu filho qual é o nome da santa?
- Num sei.
- Então como é que vou trazer para a igreja uma santa sem nome?
- Sua santidade não pode dar um nome para ela não?
-
Bem, vamos até sua casa e vendo a imagem pode ser que eu a conheça.
Padre Oliveira tinha um problema sério de saúde. O vigário reclamava
para seus colegas que ficava até sete dias sem defecar. Muitas vezes o
homem santo chorava no altar pedindo a Deus para evacuar com liberdade.
Oliveira ao ver a imagem não teve referência sobre seu nome, todavia,
dona das dores disse: “A sua santidade num vai benzer a imagem não?” O
padre pegou na santa e fez o sinal cruz e jogou água benta nela. Ao
devolvê-la para as mãos de das Dores, o reverendo sentiu cólicas
abdominais e saiu em disparada para o banheiro que ficava fora de casa. O
homem arriou todas as fezes que durante anos o perturbava. Godofredo,
finalmente, se convence que a santa era milagrosa. O padre retorna
aliviado e diz: “Meu filho é nas horas difíceis que Deus aparece; essa
santa veio na hora certa; seu nome ainda eu não sei, mas cá entre nós,
eu gostaria de chama-la de Santa do Rio”. A mulher de Godofredo
interrompe o vigário dizendo de forma irritada: “Minha santinha merece
um nome melhor!” “Nunca vi essa tal de Santa do Rio, não, Oxente!”
-
Bem, por enquanto, levemos para a igreja e lá Deus vai nos dizer o nome
certo dela. Com as palavras do vigário, o casal descansou.
A
comunidade do povoado do Riacho do Junco passou a fazer devoção a Santa
do Rio. Os milagres começaram a acontecer no seio da Paróquia de São
Sebastião. O povo era curado, outros deixavam os vícios, outros nada
recebiam, mas, por causa dos outros eles eram devotos da Santa
misteriosa. A devoção a Santa durou do mesmo jeito por sete meses,
depois, algo muito estranho aconteceu.
Minha pessoa, embora
adolescente viu os milagres da Santa do Rio. Na verdade, a princípio
estranhei depois vi a coisa com naturalidade, todavia, para algumas
pessoas a santa passou a ser um fardo abominável.
Recordo-me
como se tivesse acontecido hoje. Eu e Lopes brincávamos no oitão da
igreja por volta das sete horas da noite. Minha bola, por acidente caiu
no interior da igreja. Nos fundos ela tinha uma área de serviço que dava
acesso à sacristia e da sacristia para o santuário. Não sei qual a
razão, mas, a porta dos fundos estava aberta. Ao pegar a bola, tive a
curiosidade de dar uma olhada na santa. Quando a vi, tive uma forte
vontade de me aproximar. A santa foi mudando de cor. Seu vestido branco
tornou-se preto e vermelho, e em vez da posição de beatitude, a santa
fazia poses sensuais e dava gargalhadas. Fiquei sem entender. Depois
ouvi o povo falar que algumas mulheres estavam visitando a santa durante
a noite. Elas diziam “Padre, nós gostaríamos de velar pela santa essa
noite”. Algumas filhas de Riacho Fundo tiveram seus casamentos
recuperados, outras, saíram de casa. A confusão estava feita no povoado:
- A culpa dessa falta de respeito é de Godofredo! Acusou seu Bonfim.
- Não, num concordo não! Ele pensava que era uma santa. Disse dona Flores.
- E como é que Godofredo podia adivinhar que a santa ia ser duas coisas?
-
Bem, a solução é jogar a santa fora. Ela está corrompendo a moral do
povoado. O povo estava dividido: As mulheres que se chocaram com a santa
de preto e vermelho queriam sua retirada, as que tiveram a conquista de
alguém ou a salvação do casamento queriam que ela ficasse. A confusão
foi tão grande que tiveram que chamar monsenhor Xavier que morava na
sede do Município. Ao saber do fenômeno, o homem santo questionou a si
mesmo: “Como o mesmo santo pode encarnar Deus e o diabo?”
A santa
foi examinada por um grupo de teólogos vindo de Aracaju. Os mesmos
constataram que o objeto era uma santa de barro, e que tinha uma idade
avançada, mas, era apenas uma santa. Em momento algum a santa virou a
mulher de preto e vermelho. Os religiosos retornaram para a capital
sergipana certos de que se tratava apenas de crendices do povo.
Foi
no mês de novembro do ano seguinte que a coisa ficou mais séria. Alguns
maridos se queixaram de suas mulheres: “Essas mulheres quanto mais
rezam mais ficam quente. Eu num tenho mais idade para isso não!” Muitos
milagres foram realizados. Seu Antônio que não podia andar sem a ajuda
de sua bengala foi curado na missa de domingo. Com os milagres e as
contradições, a santa tornou-se um objeto de todos os tipos de devoção.
As pessoas do culto afro queriam fazer uma devoção a santa à meia noite,
pois, para eles a santa era, na verdade uma Pomba Gira. O vigário
recusou o pedido. Os devotos do exu Pomba Gira foram reclamar a
Federação na capital do estado:
- Estamos aqui para fazer uma acusação grave de preconceito e constrangimento religioso.
- Calma! Pai Jorge, Calma! Qual é o problema? Perguntou a Ialorixá “Mãe Cislene de Oxum”.
-
Nós queremos fazer reuniões na igreja. Estamos apenas pedindo o nosso
direito. O exu Pomba Gira é uma santa pela metade, ou seja, ela, pela
noite, deixa de ser santa e vira uma Pomba Gira.
- Mas que é isso meu irmão! Isso é um absurdo! Onde já se viu um exu na casa de Deus!
- Cislene você conhece o oráculo de Pai Miguel que ele deu antes de bater as botas?
- Não.
-
Então, ele disse que chegaria um dia que Exu ia morar no altar com os
santos, e quando esse dia chegasse as pessoas seriam mais sinceras.
-
Deixa de conversa rapaz! Exu num vai pra casa de Deus não! Jorge se
irritou com a Ialorixá e virou a mulher em Pomba Gira, a mesma deu uma
gargalhada e disse: “Não existe coisa melhor do que um exu na igreja!” A
gargalhada da mulher acordou o povo do povoado que imediatamente
trancaram as portas.
- Que foi mulher?
- Num ouviu não?
- Não!
- Deixa pra lá.
A
federação entrou com medidas jurídicas contra a paróquia. A paróquia
exigiu seu direito ao culto a santa porque quem a encontrou era
católico. A justiça considerou o argumento da igreja mais justo. O povo
do Axé ficou triste: “É, nós estamos impedidos de cultuar nossa santa na
casa de Deus”.
A pequena paróquia do pequeno povoado do Riacho
do Junco crescia. O povo da sede do povoado passou a frequentar a igreja
de Riacho do Junco. A igreja ficava lotada. E com isso, o povo do
povoado começou a reclamar e a dizer: “Vão para igreja de vocês!” A
confusão estava feita. O povoado contra a sede, e a sede contra o
povoado. Um grupo de afrodescendentes, finalmente, sequestrou a santa.
Isso ocorreu no dia vinte e três de novembro numa noite de lua
minguante. Arrombaram a porta do fundo da igreja e levaram a santa Pomba
Gira.
- Miguelina, mulher, nossa santinha! Nunca a vi de Pomba Gira.
- Isso é invenção do povo!
- Num é o que mulher! Levaram a santa para fazer macumba na bichinha!
- Isso é uma abominação a Deus!
- Num é o que mulher!
O
povo sente a falta da santa. Os casamentos começaram a desmoronar, as
pessoas passaram a sentir ansiedade e ter depressão. A santa do Rio
fazia falta ao povo do Riacho do Junco. “Mulher, eu quando rezava pra
santa sentia um fogo por meu marido, ave, era uma coisa forte mesmo,
mas, agora, estou fria que nem mármore!” Todo mundo tinha uma coisa a
dizer para justificar a volta da santa. Padre Oliveira recebeu um aviso
que a santa estava no barracão de Pai Jorge. Segundo a denúncia
ofertaram sete galinhas dispostas em sete pratos de barro. Na missa das
cinco horas da tarde o vigário desabafa sua indignação:
“Meus
irmãos do Riacho do Junco. Saibam que há pecado para morte, e este foi
um deles. É uma blasfêmia contra Deus o uso de uma santa católica no
culto de terreiro. Como pode Deus e o diabo estarem unidos, cúmplices! É
um agrave forte. As pessoas que fizeram isso pagarão caro!” Na noite do
mesmo dia, o barracão de Pai Jorge comemorava a volta de Pomba Gira
para seu terreiro. Os tambores aturdiam o povoado, os foguetes
estralavam no céu. Era noite de Maria Padilha, a rainha do Candomblé. No
centro do altar do gongá estava a santa transformada em Exu. Em
momentos alternados Pai Jorge fazia menção a santa e dava um banho de
cerveja nela. As mulheres do terreiro e alguns homens viravam exu Pomba
Gira. A festa estava bonita até a polícia chegar. O delegado Rodriguinho
fora designado para investigar o caso. O terreiro calou seus tambores
ao ver a viatura policial. Pai Jorge vira homem novamente para receber
as autoridades.
- Recebemos informações que a Santa do Rio que havia sido subtraída da igreja do povoado está aqui.
- Não, acho que aqui num tem nenhuma santa não.
-
Mas, mesmo assim, nós iremos dar uma olhada A policia procurou pela
santa e nada. O povo do terreiro comemorava o livramento de dona Maria
quando o relógio da igreja bate meia noite. Ouve-se, então, umas
gargalhadas vindo de entre os santos no altar de exu. Era a Santa do Rio
que havia virado Pomba Gira. A santa dançava e rodava a cintura feito
uma cobra. Era de fato uma santa pomba gira. O povo do terreiro gritava
de alegria e soltava foguetes. O povo da igreja estava triste, mesmo
assim, o vigário garantia que banhando a imagem na água benta ela
ficaria santa novamente, então, começa o tumulto para pegar a santa.
Alguns irmãos católicos permaneceram em oração, enquanto isso o soldado
Henrique que também era católico mais o soldado Juracy que era
evangélico partiram em direção o altar, Pai Jorge se põe no caminho
gritando: “Só sobre o meu cadáver, minha Mãe não vai sair da aqui!” os
dois PMs ignoram as palavras do sacerdote e pegaram a santa do altar,
esta dá uma risada nas mãos de Henrique que de imediato vira uma bicha
cheia de palavreado esquisito. Coisas como: “Parem essa safadeza de
vocês, quem não sabe que dentro de vocês existem uma santa e um exu,
vocês não tem olhos para ver não?” Nessa altura, as coisas estavam sob
máxima tensão. Aproveitando que Henrique estava espiritado, pai Jorge
pega a santa das mãos dele. O soldado Juracy corre e pega a santa da
cintura para baixo e Jorge da cintura para cima. No puxa-puxa, os dois
partem a santa ao meio. O silêncio foi absoluto. Só se ouvia o coaxar
dos sapos e os grilos cantando. Por alguns minutos ninguém disse nada. O
silêncio no pé de serra do sertão falava muito alto.
Minha
pessoa, embora menino pré-adolescente, um púbere observava o desfecho do
problema. Jorge segurava um pedaço de sua pomba gira e Juracy o outro.
“Agora não havia mais nada”. Pensei eu ansioso para entender o mundo dos
grandes. Nas mãos de Juracy a santa se move, se contorce como que
estive com dores de parto. Ouve-se o sofrimento de mulher no meio do
tempo. Uns diziam que a voz vinha do mato, outros diziam que era
imaginação. A metade nas mãos de Jorge faz a mesma coisa. O enfermeiro
Valdomiro – aquele que aplica a melhor injeção em Campos pede aos dois
as partes separadas alegando que o que estava para acontecer era um
parto. O povo caiu na gargalhada sendo interrompida quando Valdomiro diz
a santa: “Força, respire forte, isso!” O trabalho de parto durou alguns
minutos que pareceram horas. O povo sem perceber intercedia pela santa
ou pela pomba gira. Pela primeira vez as duas religiões choraram juntas
por seus santos. A comunidade vendo a cena fraternal se juntou ao grupo
que rezava para que a imagem da santa tivesse um parto bom. E eu, um
menino ainda me perguntava: “Mas, o que vai sair daí?”
A santa
deu a luz a duas crianças. O primeiro a sair foi um homem. Na sua cabeça
havia dois toquinhos, parecia uns chifrezinhos, e a outra um Nossa
Senhora toda de branco. Infelizmente a imagem da santa do Rio estava
quebrada depois do difícil parto. O padre enterrou sua parte no
cemitério ao lado da paróquia, a outra parte foi jogada no rio.
O
povoado do Riacho do Junco desde então não fala mais de religião. Todos
se respeitam e sabem que Deus tem muitas histórias para contar. Eu
cresci e fui depois morar na beira da praia. Um dia caminhando na areia
ouvi uma voz que me dizia: “Menino tens visto a Santa do Rio?” Na minha
mente eu respondi que não. A voz de mulher continuou dizendo: “Então,
veja!” Sim, meu amigo leitor, hoje sou velho, e digo de coração o homem
imagina sem limites, então, cada um viva seu sonho em paz!
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