quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A arte-acidente

Decidi que neste texto eu não vou usar o termo arte de vanguarda. Creio que essa denominação é bastante problemática. Essas coisas que tendem a ser mais compreendidas e consumidas por setores intelectualizados dotados de privilégios, possuem fortes intenções segregadoras, afinal, a arte em um sistema desigual no qual o saber é poder, assume um sentido de distinção social.

Eu opto hoje em fazer uso do termo arte-acidente. Digo isso, pois eu acredito que certas expressões artísticas têm como intuito desestabilizar os sistemas canônicos rigidamente consolidados em limites classificatórios. A arte-acidente quer justamente a possibilidade do deslize, do susto, da inquietude que marca todos os espíritos humanos famintos por desejos e fantasias de todas as ordens.

A arte-acidente faz questão de deixar suas lacunas para que o leitor dela leve uma queda e precise aprender a suportar suas dolorosas cicatrizes, pois a arte que permite o desencontro e que se delicia da contingência da vida pede que o leitor se saboreie ao se reencontrar com suas dores “jogadas” em seus recônditos aparentemente inexistentes de sua alma.

A arte-acidente não busca a necessidade de fazer com que as vozes de seus leitores ressoem de modo a se colocar de forma conveniente a eles. Não. A arte-acidente quer que o leitor se desabe e se perca em seus caminhos; que precise dormir no relento por perder seu palácio, seu conforto e todos os seus compartimentos organizados por seus serviçais. Os leitores é que se percebem como serviçais de si próprios.

A arte que se acidenta pulsa a vida, pois não há em hipótese alguma, a possibilidade de alguém se encontrar em meio a uma vida sem precisar em alguns momentos se arriscar, se atrever, se ferrar. Viver implica em um jogo de traições com nós mesmos. Somos a própria infidelidade que nos acompanha, pois ao vivermos, se por um lado, realizamos nossos feitos, também nos naufragamos.

O leitor que recorre ao que se convenciona como belo, na certa se repudiará da arte-acidente, mas quem disse que ela quer carinho e proteção? Acidentalizar as concepções estéticas é revelar o entremeio, o buraco, o não-dito que se manifesta confusamente em atos que exteriorizamos em nosso convívio com os outros, mas que não nos damos conta, e por isso mesmo, nos machucamos com nós mesmos.

Narciso se afoga na própria imagem. Narciso corre e se joga desajeitadamente em uma poça de lama, pois aprender a andar na arte-acidente, significa saber achar bonito o que reconhecemos como feio do nosso próprio espelho. Degustar-se do que nos equivoca, é apreciar a nossa beleza estilhaçada em vários pedaços de um espelho vagabundo comprado em uma feirinha qualquer.

Para a arte-acidente, o belo se desmonta revelando outras belezas confusas, tristes, mas também apaixonantes por serem incabíveis, intraduzíveis, indeterminadas. São essas belezas que nos motivam a respirar, a não deixar a chama da surpresa, do encanto, do encontro com o maravilhoso se acabar. A arte-acidente quer ser repudiada, afinal, o amor, apesar de ser semeado de forças, é também marcado por crises e medos.

O despertar do humano se expressa na capacidade ousada de quebrar a ordem dos fatos. Viver é sentir a ordem dos fatos se esvair; é perceber sem clareza alguma que o tempo, antes de ser cronologia, foi e é marcado por mesclas temporais temperadas de sincronias e anacronias. O que nos define é o que construímos, é o pensável, jamais o pronto, o acabado, o instituído, o normativo.

Que se transite sem lugar, pois não se há meio, nem início, nem fim. O que há é algo que assume uma espécie de “sendo”, de processo, de tempestivos acontecimentos tumultuados. O que se apresenta na praça ontológica do nosso peito são palhaços pintados de coloridos sentimentos, de borrões, de alegrias e de tristezas. Não há nada, a não ser o que há por que se criou a necessidade de algo ser alguma coisa.

No mais, tudo é brincadeira de montar, de desmontar, de destruir, de desfazer e refazer. A arte-acidente ignora o modelo pronto das coisas, pois querer o pronto é não intervir na vida, é não avançar além do limite do que se é combinado e do que se é estabelecido. Quem não se transborda, não se confunde. Quem não se confunde, não se recria. O alvo da vida é o que se tangencia.

Exigir a recorrência dos fatos e a validação do que se delimita como perceptível, é não entrar no labirinto; é não caminhar nos trilhos desajustados. Enfim, é aceitar a condição de que vive no centro e não assumir o lugar inevitável dos deslocamentos, do que perde e se reinventa. É viver vegetativamente. É ser um acidentado sem reconhecer a arte da vida como a arte do acidente.

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